Maria de Lourdes Hortas nasceu em Portugal e aos dez anos veio para o Recife (PE), Brasil. Poeta e ficcionista premiada, participou de várias coletâneas. É ativista literária: fez parte da coordenação das Edições Pirata; organizou a antologia Palavra de mulher (1979); durante vinte anos, foi Diretora Cultural do Gabinete Português de Leitura de Pernambuco, onde editou a revista Encontro. Além disso, também atua nas artes plásticas. Romaria, sua coletânea poética, está à venda pela Macabéa Edições.
PRISÃO PERPÉTUA
Então
o masculino Senhor disse:
vai, Eva, e nutre a vida
com o suor dos teus sonhos.
Não te esqueças, mulher,
que inventaste o amor.
E isso é imperdoável.
CONFIDÊNCIA
No início de tudo,
quase menina,
o poema deitava-me de bruços
no chão frio da varanda
como se me rendesse sobre
as carumas de um pinhal:
escrever era necessário
e compulsivo.
Agora
não me assalta.
Nada me exige.
Chega de mansinho,
pés de lã,
gato inaudível,
cochilando se aquieta
numa réstia de outono.
Se insisto e o chamo
Se espreguiça e dói.
PASSOS DO TEMPO
Ainda ontem era manhã bem cedo:
cinzento o céu, molhadas as vidraças,
e a neve sobre a paisagem acolchoava o mundo.
Ainda ontem era manhã cedinho: ouvia o pai
partindo para a caça
e o avô contando histórias da França.
A avó, junto à lareira, tricotava meias.
E a mãe, com seu perfume doce, as mãos de
pétala, pairava em surdina
no quarto das meninas (minha irmã e eu),
aconchegando mantas e
sussurrando canções para embalar-nos.
Ainda há pouco Maninha me chamava e
de mãos dadas corríamos pela praça
pulando poças d’água na chuva.
Ainda ontem era meio-dia: estava na escola,
me vestia de anjo.
Depois embarquei num navio para longe e chorei.
Ainda há pouco rodopiava no baile e depois
esperava o noivo no portão.
Ainda ontem entrei na igreja com véu de tule no
rosto e rosas brancas nas mãos
sob pesado silêncio de pedra.
Ainda há pouco os meus avós eclipsaram-se.
E de repente o meu pai também partiu.
Ainda há pouco tive filhos, fui levá-los à escola.
Acompanhei-os por caminhos
e descaminhos e fiz festa quando reencontraram
a casa pródiga.
Ainda há pouco as mãos de pétala da mãe
cruzaram-se sobre o peito,
e o acalanto dela em minha vida
congelou-se para sempre.
De repente sou avó.
Daqui a pouco vai anoitecer.
DIÁLOGOS
Gosto de falar comigo
e, comigo falando,
converso
com as amadas mulheres
que partiram:
Avó, Mãe, Sobrinha, Irmã.
Às vezes rimos como loucas.
Outras vezes choramos até a exaustão.
Mas há dias em que apenas
ficamos sentadas na varanda
olhando o mar
e o eco do nosso silêncio
resgata um antigo verão.
A LÁGRIMA DO MAR
Tinha apenas três anos quando
cavando na areia da praia
assim falou o meu neto Manuel:
– Vovó, vou cavar bem fundo
até achar
a lágrima do mar.
Você acabou de ler uma seleção de poemas de Romaria (Macabéa Edições, 2022), coletânea poética de Maria de Lourdes Hortas. Gostou dos poemas? Adquira o livro clicando aqui!
Mais sobre a obra
Reunindo poemas de dez obras, Maria de Lourdes Hortas lança Romaria, o seu mais recente livro, que conta com textos marcantes de sua obra poética e, também, poemas inéditos. Dona de uma extensa carreira literária, é autora dos premiados: Aromas da infância (1963); Fio de lã (1979); Fonte de pássaros (2001) e Caixa de retratos (2004).
A escritora, que hoje está com 81 anos, assina essa coletânea poética pela Macabéa Edições, abarcando mais de cinquenta anos de sua trajetória como poeta, ficcionista e ativista cultural.
Arte: The Old Barn Under Snow, Newport, de John La Farge.
Comment (1)
Maravilhamento absoluto. Acabei de comprar Romaria!
Abreijos,
Luciana
lulupisces.blogspot.com