• 0

    Frete grátis a partir de R$ 110

A Fresta #14 – “Dias Estranhos” seguido de “Rudimentos sobre um alemão inadmitido”

por Natan Schäfer
Desenho de Ariyoshi Kondo ilustra "A Fresta #14", coluna de Natan Schäfer.

A Fresta é uma coluna quinzenal dedicada às realizações do movimento surrealista e seus entornos.


“Dias Estranhos”

por Arno Schmidt

: “Tem dias que são estranhos : o sol já nasce de um jeito só dele; nuvens mornas passam flutuando baixo; dos quatro cantos do mundo bafeja um vento suspeito. Aviões de caça desenham nós de forca no céu; todo mundo que é crente fica com vontade de cobrar seus credores; a gente ouve falar de pessoas que diante disso, assim, sem mais nem menos, deram no pé”.

Em dias como esses, mais vale a pena não fazer nada – embora, é claro, isso também possa ser um erro ! Vai saber se é uma boa ideia desligar a campainha, fechar as cortinas e se fingir de morto no fundo do divã em um canto da sala? Ler também não é de jeito maneira recomendável : do nada, cai do meio daquele um romance esquecido de 1800 uma carta escrita numa antiquíssima caligrafia amarelada, acompanhada pela silhueta de uma mocinha em trajes da época das guerras napoleônicas, e só podemos ficar é bem contentes se não é o nosso próprio nome que figura capa do livro – tem dias que são estranhos !

Agora o de hoje finalmente, e felizmente, passou. Claro que um senhor de terno preto deu as caras e tentou me converter à igreja dos mormons. Da Espanha, chegou uma longa carta de um desconhecido – cujo último parágrafo revelava não ser destinada a mim. O andarilho de sempre, todo branquinho de tão velho, também não deixou de tocar a campainha : se dizia estudante; e queria vender lâminas de barbear, usadas uma única vez, palavra !

Pelo telefone, uma senhora inglesa que desconheço me contou, enquanto me recriminava e marcava novos encontros, o seguinte causo sobre sua volta ao mundo: na Ilha de Tristão da Cunha – 120 moradores, nenhum padre, nenhum magistrado – um casal queria se casar. Só que a única pessoa da ilha que sabia ler fluentemente era contra o matrimônio, e aí que ela se recusava a ler os votos matrimoniais. Então, a única solução que sobrou foi ir atrás do letrado seguinte : que soletrou o documento ! (O que, em meio a analfabetos, só podia mesmo reforçar o clima de solenidade – mas não tem jeito, não consigo deixar de logo imaginar isso nitidamente : o jeitão do camarada lá, em frente à mesa, espremendo os olhos e pressionando as linhas com os dedos; limpando o salão nas passagens mais difíceis por causa do desespero).

Agora, como disse, tinha escapado ileso disso tudo. Até mesmo a noite já tinha caído toda atrevida em xadrez azul e vermelho : decerto uma voltinha noturna não faria mal, né?

No paredão preto da casa vizinha a porta de vidro que dava para a varandinha do térreo estava aberta e iluminada; e eles lá, só nos discos, direto; meninas se esganiçavam e pisoteavam ao som dos hits, sacudindo os cachos coloridos e aplaudindo com a sola do pé : tinha era de dar no pé ! (E aí, na calçada, não demorou para um ciclista vir bem em minha direção, como se o lugar ocupado por mim estivesse vazio e eu já não mais existisse sobre a face da terra).

Na periferia da cidade, onde a iluminação pública a gás ainda não foi substituída por lâmpadas de sódio, tudo estava quase tranquilo e ermo. O farol da lua ancorado de viés nos riachos de cirros. Gatos circunspectos e cheios de si se ocupando de negócios ignotos. Só a Romi-Isetta1 verde que encostou ao meu lado : 2 policiais rapidamente pularam do carro para me comparar com uma lista batida à máquina. Bom, todo mundo é de alguma maneira “culpado” (de acordo com Schopenhauer, inclusive digno de ir para a forca); quanto a mim, fiquei bem calmo na minha, me lembrando de umas coisas que aconteceram há um bom tempo (nada de “estupro seguido de homicídio” ou algo assim – só umas bobagens; não faz diferença). “Mão esquerda ? !” – somente após ter devidamente demonstrado que disponho de 5 dedos, desta vez escapei, ao que parece. Eles se desculparam militarmente; e eu segui de volta para casa passando pelas novas construções – hoje valia bem mais a pena dar meia-volta, volver.

Em volta do gramado em U, muralhas altas como moradias; também do outro lado da rua, aquele mesmo muro de cimento delimitando a linha de Siegfried2, da qual restavam só uns poucos quadradinhos amarelos. Ao meu lado, o enorme pato de bronze tentou cuspir na minha cara.

Fiquei estacado ali, atônito – : bem no alto da parede estava sentada a gigante azul ! À mesa, estática; ela devia ter no mínimo uns 4 metros de altura! E agora que via também os batentes da janela em volta dela, claro, iguais aos dos andares de baixo: era só uma vista que dava para dentro de um cômodo : que alívio.

(Mas não era possível ! Um ser feminino, grande como… fechei os olhos; cego, sacudi a cabeça; sabe-se-lá o que vi; talvez ela já não estivesse mais lá quando eu . . . . . )

: Sim ! Não estava mais lá ! – Ali, no meio da noite, estava a parede da casa, cinzenta e em silêncio, livre de cartazes e até que quase bonita. Depois disso eu podia respirar aliviado – mas o que é que estava dando em meu cérebro ? ! Pois é, tenho de admitir que sou dessas pessoas que tendem à introspecção e já fazia muito tempo que andava suspeitando de mim mesmo. Sem mais demora, era baixar a aba do chapéu sobre o rosto (aliás, considerando a privação de chapéu, baixar a cabeça mesmo) e simplesmente pôr tudo na conta daquele dia esquisito : não tinha visto o que vi; e agora, lar doce lar ! A toque da caixa ! Meu desobediente olho esquerdo deu uma última guinada na direção do poderoso quadro…..?

: E lá estacava ele de novo, um homem vencido ! : Lá em cima, onde há pouco a gigante estava se refestelando, florescia agora um jardim ornamentado com pedras. Suculentas de um verde fosco, florzinhas amarelas estreladas e pontudas, e um caminho de brita apontando reto à sua frente : naquela cadeira de praia ! Solidão : o passarinho no tanque todo duro.

A escuridão varreu aquilo como uma mão – e, logo em seguida, uma nova imagem: a Senhorita Gigante num plano aquático. O líquido robusto a envolvia justo feito uma tanga azul; o rosto sumira, a grande cabeleira loira estava toda torta, inteira para um lado só. (E já se foi de novo : que dó ! )

Mas então será que aquilo que estavam passando lá em cima eram slides coloridos ? ! Será que penduraram a tela de projeção em frente à janela sem se dar conta ? : da minha parte, escolhi bem confortavelmente o ponto de vista mais favorável e cruzei os braços sobre o peitoral para aguentar o tranco.

Cidades foram ficando para trás (quase igual Hamburgo, hein?) ; uma feira-livre (e os tomates vermelhos reluziam tão decorativos ! ). Carros em ruas compridas. A barraca nas dunas : o rosto dela encapuzado atrás de um alambrado de capim-praieiro. Fiquei assim um bom tempo no meio da noite limpa. Às vezes passava um casal, olhavam comigo para cima dando umas risadinhas, mas tinham mais o que fazer e seguiam em frente com seu intenso passeio. Uma hora a lâmpada ao lado da porta da casa se acendeu : um bebum saiu capengando com 2 gladíolos compridos nos ombros e passou reto por mim, caminhando sobre pernas deveras independentes.

Até teria dado para ir lá, apertar o interfone e simplesmente dizer : “A senhorita de azul na imagem ali em cima é você? : Então, eu te amo !”. Ela, por sua vez, abriria a janela e, achando graça, daria uma olhada para baixo . . . (É bem capaz que uns poucos segundos depois dois homens atarracados viessem para cima de mim, me dando mais que muitos sopapos com suas mãos musculosas ! ). Numa dessas era mesmo uma mulher de terras longínquas, que jamais seria vista; por alto, seu endereço, e olha lá.

Numa dessas, aquele pessoal lá em cima só tinha encontrado uma maleta cheia de diapositivos. Ou o laboratório fotográfico tinha trocado as etiquetas e eles agora estavam admirando o destino alheio cheios de curiosidade – em dias como esses de fato tudo era possível !

Ou era uma amiga falecida, de quem a gente se lembra com saudade – e aí resolvi dar mais uns passinhos à frente, bem cuidadosos; já não sou mais jovem e indiferente o bastante àquele tipo de complicação !

Preferi dar de ombros; subi de volta para casa, covarde e decidido; graças a deus já tinha passado da meia-noite – e amanhã oxalá tudo de volta ao normal.

Arno Schmidt
Tradução por Natan Schäfer

NOTAS

[1] Nota do tradutor: Isetta é um modelo de microcarros, similar aos smarts de hoje, projetado por Renzo Rivolta, proprietário da Iso Autoveicoli, no início dos anos 1950. Naquela mesma década, passou a ser produzido pela BMW e utilizado na Alemanha como veículo policial. Atualmente, a única Isetta ainda em serviço numa frota policial alemã se encontra na cidade de Stade, na Baixa Saxônia, onde serve de veículo reserva. No Brasil, o modelo ficou conhecido como Romi-Isetta.

[2] N. do t.: Localizada na fronteira oeste da Alemanha e construída nos anos 1930, a Linha de Siegfried, ou em alemão “Westwall”, era um sistema de defesa que tinha por função proteger o país de invasões vindas dos Países Baixos, Bélgica, Luxemburgo e França. Além de bunkers e túneis, contava com “dentes de dragão”, isto é, pequenas pirâmides de concreto — os tais “quadradinhos amarelos” — destinadas a conter o avanço de carros de combate.


Rudimentos sobre um alemão inadmitido

por Natan Schäfer

Quando a Primeira Grande Guerra começou em 1914, Arno Schmidt nasceu. Até hoje considerado o James Joyce alemão, Arno somente passou a publicar seus escritos após completar trinta anos, depois do fim da Segunda Grande Guerra. Antes disso, trabalhou como almoxarife na indústria têxtil e serviu às forças armadas. Faleceu em 1979, uma década antes da queda do muro de Berlim.Em 1963, dois anos após o início da construção do muro, a quarta capa de sua coletânea de ensaios, O delicado desumano [Der Sanfte Unmensch], o definia da seguinte maneira:

Desde sempre, Arno Schmidt é não-conformista no modo como pensa, escreve e pontua.

Desde então tido como um excêntrico outsider da literatura de língua alemã, Schmidt (sobrenome que corresponde ao nosso Silva, ou ao Smith dos ingleses, e que se pronuncia aproxidamente sh-mê-t), pertence a uma estirpe cujos rebentos hoje fazem falta meio que sempre, dado que as condições de sua eclosão são drasticamente perturbadas pelo modo de produção e o modelo econômico e moral hoje no comando de mundos e mentes. Afinal, em 2024, que artista notável teria coragem de afirmar aos quatro ventos que “um bom escritor não deve ter nem amigos, nem pátria, nem religião”?

Apesar de seu obstinado não-conformismo, como outros dezessete milhões de alemães — a título de comparação, número aproximado da população das capitais do Rio de Janeiro e de São Paulo somadas —, Arno não escapou de ser recrutado para a artilharia nazista em 1940, pouco depois do início da guerra. Para sua sorte, a tropa à qual pertencia foi deslocada para a Noruega, onde ficou estacionada, portanto, não exigindo que ele participasse de nenhum combate por ali. Se em 1945, no auge da derrocada alemã, ele se alistou voluntariamente para retornar à Alemanha e servir na frente de batalha, havia uma razão maior que o movia: a esposa. Voluntariar-se para lutar no front lhe facultava um breve período de férias, graças ao qual efetivamente pode auxiliar sua esposa, Alice, a refugiar-se na Baixa Saxônia antes que as tropas do Exército Vermelho chegassem à sua porta.

Contudo, as dificuldades do casal não cessaram com o fim da guerra. Durante muito tempo os Schmidt viveram na penúria, fazendo bicos de tradução e redação para pagarem as contas. Não bastasse isso, como lembram os críticos Ralf Schönfelder e Mario Osterland1, a publicação de Paisagem lacustre com Pocahontas [Seelandschaft mit Pocahontas] em 1955, fez com que um par de advogados movesse uma ação judicial contra Arno, o acusando de “blasfêmia e distribuição de escritos obscenos”2. Vale ressaltar que este processo constituía uma ameaça real à existência do casal Schmidt que, vivendo à beira da miséria, corria o risco de ser arruinado por completo pela multa que poderia resultar do veredito. Para alegria deles, isto é, dos Schmidt, ao fim do processo o juiz decidiu por absolver Arno, alegando que

A narrativa em questão consiste em uma obra literária séria, ainda que contenha
uma série de passagens audaciosas. Com seu estilo peculiar e revolucionário, Arno
Schmidt é uma das mais interessantes revelações de nossa literatura do pós-guerra.

Esse processo e sua sentença nos convidam a seguir pensando a recepção da obra de Schmidt, porém não na Alemanha do século passado, mas na língua portuguesa neste século XXI. Ao digitar “Arno Schmidt” no Google e pressionar a tecla “Enter”, logo abaixo de um conjunto de seis retratos do escritor, aparece a seguinte definição, automaticamente pinçada e traduzida da Wikipédia em inglês:

Arno Schmidt foi um autor e tradutor alemão. Ele é pouco conhecido fora das áreas
de língua alemã, em parte porque suas obras representam um desafio formidável
para os tradutores.

A leitura da minibiografia acima não dá a impressão de que a própria ferramenta de busca está tentando justificar-se? Como se estivesse reagindo de antemão à indignação que se manifesta, ao menos no espírito de um leitor lusófono e curioso, com a descoberta de que nenhum escrito de Arno Schmidt jamais foi traduzido no Brasil; e que a primeira tradução para o português apareceu somente depois de seu centenário, em 2017. Foi só então que a editora lusitana Abysmo fez Arno debutar em português lançando dois livros em um: Leviatã ou O Melhor dos Mundos seguido de Espelhos Negros, em tradução de Mário Gomes. Mais recentemente, em 2023, a mesma Abysmo publicou em Portugal A República dos Doutos, outro texto fundamental de Schmidt.

Assim sendo, é lamentável que em 2024 no Brasil possamos seguir citando, quase sem pôr nem tirar, o que em 2001 disse o crítico João Barrento em Portugal: Arno Schmidt é um dos mais singulares autores da literatura alemã contemporânea, nunca traduzido no Brasil.

Desde que descobri Arno Schmidt através dos arredores joyceanos que venho quebrando a cabeça para entender este fenômeno de inadmissibilidade, a meu ver absurdo e inaceitável, que é o fato de sua obra, hoje indiscutivelmente parte do cânone alemão3, seguir absolutamente inédita no meio literário brasileiro. Pois, se hoje “Arno Schmidt” efetivamente consta na base de dados de muitas livrarias do país, isso é fruto de algo curioso e do qual nos ocuparemos adiante.

Uma explicação para o fenômeno de inadmissibilidade é, de certo modo, fornecida pelo tradutor lusitano Mário Gomes. Recolhida pela jornalista Carolina Franco no artigo “Os desafios de traduzir ‘autores difíceis’”, ela parece reforçar aquela justificativa do Google: “não existe nenhum escritor que escreva daquela forma estranha como o Arno Schmidt”.

Então, aplicando o argumento de Gomes ao contexto lusófono d’além-mar, quer dizer que se não temos nenhuma edição de nenhuma obra de Schmidt disponível em português brasileiro é porque, em tese, ele escreve em idioleto e, logo, seria muito difícil traduzi-lo? Ora, se assim fosse, me parece que tampouco teríamos traduções — sublinho, traduções, no plural mesmo — do Ulysses, de James Joyce, e muito menos do Finnegans Wake, para nem falar em textos ainda mais distantes, como A epopeia de Gilgamesh, de Sin-léqi-unnínni, e a Alexandra, de Lícofron.

Neste mesmo artigo, aliás publicado pelo Instituto Goethe em dezembro de 2022, Carolina, provavelmente com base nas afirmações de Mário, ainda supõe que

o desafio de o trazer para Portugal [i.e., de levar uma obra de Arno Schmidt para
Portugal] prendia-se não só com a sua escrita hermética e humor nem sempre de fácil
agrado, mas também com a falta de conhecimento no circuito literário, e sobretudo
de leitores portugueses, sobre a sua obra.

Desta vez voltemos por um momento ao Brasil.

Ainda que a fama de muitos escritores tenha chegado ao Brasil antes de sua obra — vide, por exemplo, o necrológio de Stéphane Mallarmé publicado no segundo número da revista simbolista curitibana Pallium em fins do século XIX4 —, me parece estranho que o ineditismo de um autor estrangeiro seja justificado pela falta de conhecimento por parte de um público leitor que, justamente, não falando a língua na qual aquele autor estrangeiro escreve, em grande medida dependeria da publicação de uma tradução para conhecê-lo. Por outro lado, de fato tenho de concordar que, apesar dos esforços de competentes germanistas, como um todo, a literatura alemã dos séculos XX e XXI não goza do mesmo prestígio que, por exemplo, a literatura de língua de inglesa da mesma época ou, ao menos na editora Aboio, os escritores escandinavos em geral. Mas este suposto desprestígio seria suficiente para impedir uma empreitada de tradução?

Prosseguindo com a leitura do artigo Carolina, Mário por fim nos apresenta indícios de um argumento que pode ser considerado de peso para explicar o ineditismo, ou melhor, a inadmissibilidade de Schmidt no Brasil, argumento que já parecia latente naquele “humor nem sempre de fácil agrado”:

[Arno Schmidt] foi censurado, foi acusado de pornografia, e sempre foi muito crítico
em relação à igreja — esse tipo de coisas que nos anos 50 eram muito escandalosas.

Ao mesmo tempo que tenho de parabenizá-lo pela franqueza do comentário, tenho de dizer: sinto muito, Mário, é aí que você se engana.

Infelizmente, no Brasil tanto o erotismo, que aliás não é o mesmo que pornografia, quanto o anticlericalismo não são “coisas que (…) de um ponto de vista do século XXI, não é algo que choque”.

Prezado Mário, imagine você que no sábado, dia 18 de maio, poderosos alto-falantes estremeciam as janelas dos edifícios da região central de Curitiba, tomada de fiéis em “Marcha para Jesus”; gente gozando ao som de palavras de ordem cristãs que convidavam a louvar de segunda a segunda o tal Jesus da marcha. Sinto dizer, Mário, que suspeito que muitos daquela multidão, e pior, não só daquela multidão, mas, provavelmente, de meios supostamente não massificados também, estivessem, e sigam estando, absolutamente preparados para tomar atitudes enérgicas contra “intolerantes” que, na perspectiva deles, atentem contra à instituição da crença que manifestam — mais ou menos como aquele par de advogados fez com Schmidt à quase setenta anos.

Mas, se por aqui Arno Schmidt segue inédito por razões mais ou menos obscuras, por outro lado na França, há quase sessenta anos, mais precisamente em 16 de junho de 1965, numa carta-aberta ao editor Maurice Nadeau, o grupo surrealista de Paris afirmava que:

Para nós, Surrealistas, a publicação, pela [coleção] Les Lettres nouvelles, de obras
de Norman Brown, Gombrowicz, Arno Schmidt [grifo nosso], Norman Cohn,
Savarius, Anthony Shafton e de Literatura e Revolução, de Trotsky,
tem contribuído com um aprofundamento teórico e um enriquecimento sensível essenciais.

Faço questão de traduzir este trecho da carta endereçada pelos surrealistas ao lendário Nadeau pois atesta não só interesse deles pela obra de Schmidt, mas também indica a circulação dos escritos deste último em ambiente de língua francesa há pelo menos sessenta anos. De fato, naquela época já se contava com boas traduções para o francês dos romances Cenas da vida de um fauno e A república dos Doutos, os quais, vale lembrar, tendo sido escritos originalmente em alemão, seriam em tese tão desafiadores para um tradutor francófono quanto para um lusófono.

Se bem me lembro, tive a oportunidade de falar sobre Arno Schmidt com Alain Joubert que, tendo participado da aventura surrealista ao lado de André Breton desde os 1950, esteve envolvido na redação da carta e em 2016, no prólogo aos “fragmentos desordenados para um manifesto impossível” reunidos sob o título de A chave está na porta [La clé est sur la porte], mencionava a “agressiva e desestabilizante poesia que emana de autores como Arno Schmidt (…)”. Entretanto, foi sua companheira Nicole Espagnol, também participante do grupo surrealista reunido em torno de Breton, que infelizmente não tive a oportunidade de conhecer pessoalmente, quem dedicou ao alemão uma breve e incisiva nota de leitura publicada no primeiro número da revista Le Cerceau (verão de 1994).

Antes de passar à nota em questão, gostaríamos de notar que Nicole a justifica alegando “prazer egoísta de devolver àqueles que para mim importam aquilo que para mim importa, pois tristes são os entusiasmos não partilhados”, justificativa esta que não é em absoluto estranha À Fresta.

Bom, na nota Nicole diz que:

Nos antípodas de Robert Walser, Arno Schmidt, igualmente único e magnífico,
inventa uma escrita essencial, rigorosamente encenada. Vide seus segredos de
escrita nos “Cálculos”, reunidos em Rosas & Alho-poró [Roses & Poireau] (este
buquê não é irresistível?). Trinta anos depois de Cenas da vida de um fauno, Brand’s
Haide e Espelhos negros concluem a trilogia dos Filhos de Nobodaddy’s. Literatura
feita a buril, rasurada de raiva, afiada, escalpelada viva, triturada, desbastada,
depurada, irônica, cruel, fulgurante, de coração flechado, armada, adestrada na
base do chicote, telescopada5. “Gralhas”6, interferências, contrapontos,
lashes, compassos, tensão. Fogos de artifício jorrando de palavras-sílex. Arno
Schmidt, poeta inimigo da retórica, dândi fustigante, rondando as terras do “Some daqui, guerra!”7.

Muito poderia ser dito a partir deste comentário lapidar. Aqui, vamos nos ater a algo que atravessa a segunda metade do texto de Nicole, e se manifesta sobretudo no epíteto “inimigo da retórica”, que costuma ser atribuído a Platão pelo seu Górgias. Mas não podemos prosseguir sem antes acrescentar algo sobre a atitude surrealista perante a literatura, para isso citando outro participante desta movida. Com a palavra, Édouard Jaguer, esposo de Anne Ethuin8 e líder do movimento Phases:

(…) a atitude surrealista decorre primeiramente de uma adesão apaixonada ao
princípio de prazer, enquanto que o comportamento essencialmente normativo e
analítico da “crítica literária” está irresistivelmente ligado ao “princípio de
rendimento” que preside todas as coisas neste fim de século e, como consequência
absolutamente lógica, procura extrair do texto aquilo que as palavras deixam passar,
mas nada mais do que isso e de jeito nenhum outra coisa – a “cor clandestina”
da obra que é aquilo que mais nos interessa9.

Dito isso, voltemos ao “inimigo da retórica” e sua luta.

É comum ouvir dos arautos da literatura nas escolas e academias aquela nem tão velha ladainha que preconiza não confundir o narrador de uma história com o autor que a assina. Embora a princípio conveniente para dirigir a atenção dos leitores às nuances do texto que têm diante de si, a rigor esta abordagem parece supor que o autor seria desvinculado e independente de sua produção e, no interior de seu isolamento opaco, translúcido. Como se ao olhar para a sucessão de fatos e declarações cujo conjunto simboliza uma dada pessoa física, tudo que é interior a esta pessoa estivesse visível dentro dos limites de seu perfil, sem lacunas. Isso desde que, sublinho, o olhar seja dirigido à pessoa física do autor, e não para sua ficção que, aparentemente gerada in vitro, não manteria nenhuma espécie de vaso comunicante com quem lhe deu passagem pela primeira vez. Logo, o texto literário é tratado como uma entidade autogerada e absolutamente bastarda, dotado de marcas que conduziriam somente ao próprio texto e à textualidade, jamais à mão que traçou suas linhas. Isso nos levaria a abordar a letra e a caligrafia, nos devolvendo ao último capítulo da quina sobre Alexandrian, mas por enquanto não é aí que queremos chegar.

Qualquer um que tenha lido ou ouvido uma história narrada em primeira pessoa sabe que a abordagem acima, que preconiza dissociar autor e narrador, é contraintuitiva. E ainda que, por exemplo, a teoria heliocêntrica, segundo a qual é a terra que gira ao redor do sol, e não o contrário, sirva para invalidar a contraintuição como argumento, me parece que a resistência suscitada pela proposta de dissociação completa entre autor e narrador depõe sobre algo digno de interesse. Algo para onde convergem as biografias, autobiografias e compilações de cartas: tudo indica que no escrito tendemos a ver e ouvir os gestos e gestas de uma pessoa de carne e osso e uma atitude moral.

Seguindo o raciocínio que supõe o escritor como um ente translúcido, que mediante a luz de sua trajetória ofuscaria a verdade da letra e da estrutura narrativa — o que foi efetivamente provocado pela figura do autor nos tempos dos estudos literários tipo “vida & obra”, brilhantemente combatidos por Roland Barthes, Jean Ricardou e outros —, podemos supor que, por outro lado, quem fala de si, quem relata um fato ou uma memória pretensamente não-ficcional, estaria sempre dizendo uma verdade inteira. Como se “eu” fosse um pavio de verdade. No entanto, uma vez que sabemos que a escrita se funda numa ausência e que, como afirma o psicanalista Jacques Lacan, ninguém jamais diz a verdade toda pois isso é “impossível, materialmente”, todo relato ou fala não seria justamente uma liga, no sentido químico do termo, isto é, um amálgama de factual e ficcional? Além disso, considerar o imaginário e a fantasia como partes fundamentais da realidade do sujeito, e este por sua vez como sujeito do inconsciente, não torna obsoleta a tão difundida e escolar oposição entre autor e narrador10 e, finalmente, não conduziria à tão famigerada quanto incompreendida injunção de que “a poesia deve ser feita por todos”, anotada por Isidore Ducasse? Não é justamente aí, na brecha, onde fazem falta tanto o narrador quanto o autor, que se deve buscar a eclosão daquela “cor clandestina (…) que mais nos interessa”?

Um aspecto eminentemente negativo da não dissociação entre autor e obra seria, justamente, a confusão entre fabulação e passagem ao ato, que pode, inclusive juridicamente, ocasionar consequências bastante deletérias.

A rigor, a partir do que Vincent Bounoure afirma sobre a collage em 1978, podemos dizer que também a arte

cita seu executante a comparecer perante o tribunal secreto que Breton considerava
como intérprete de uma ‘justiça suprema’. (…) Somente o imaginário ergue as
fogueiras íntimas que serão alimentadas por aquilo que não valia a pena ter sido feito,
aqueles excedentes grotescos e feitos para agradar.

Mas o campo é mesmo escorregadio: se por um lado convém que o autor responda por sua fantasia, ainda que ela seja a do seu tempo, a lei que a rege não necessariamente coincide com a do Estado. Vemos algumas das piores consequências desta confusão quando artistas têm de responder a processos judiciais movidos por conta de alguma obra de sua autoria, sendo que a própria Constituição de 1988 em seu Art. 5º garante a “livre a manifestação do pensamento” e “a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Em outros termos, o próprio Estado de direito garantiria o direito à sublimação das moções pulsionais mais agressivas através do fazer artístico e sua circulação.

Além disso, embora extrapole nosso escopo, é necessário notar de passagem que é de uma leitura rasa e desavisada da relação entre autor e obra que parece resultar o pior da assim denominada autoficção de nosso século. Superando este estado de coisas, é enquanto uma espécie de síntese entre as duas tendências acima evocadas, a saber de afastamento e aproximação entre autor e obra, que entendo a leitura que, por exemplo, o tradutor e pesquisador Caetano W. Galindo faz do Ulysses11, de James Joyce.

Aliás, sabemos que nos anos 1960 Arno Schmidt leu o Finnegans Wake, último livro publicado por Joyce em vida — o qual, tudo indica, fez o alemão angustiar-se baixo sua influência ao longo de pelo menos uma década. Tanto que Arno começou a traduzir o FW, isto é, o Finnegans Wake, para o alemão, empreitada que não teria levado a cabo sobretudo por restrições de seu editor. Os resultados do trabalho inacabado de Schmidt sobre o FW vieram à luz com a publicação da coletânea Tritão de guarda-sol na mão [Der Triton mit dem Sonnenschirm] em 1969 e depois, em 1984, com a edição fac-símile do datiloscrito de sua tradução parcial, que acompanhou a publicação, também em fac-símile, da edição do FW utilizada e rabiscada por Schmidt em seus trabalhos.

Embora Arno tenha tido de fracassar na empreitada de tradutor joyceano, ele foi um dos leitores que efetivamente atendeu à demanda formulada por Joyce com e em seu último livro12: isto é, não segregou sua própria criação da leitura que fez do FW, agindo como um leitor imaginativo, nos termos do psicanalista Jacques Lacan, “colocando algo de si”, ou ainda, como dizia o próprio Arno, estabelecendo seu “modelo de leitura” [Lesemodell] e, por fim, seguindo por antecipação o conselho de Cesar Aira no excelente “A tradução” (publicado no Pequeno manual de procedimentos, organizado e traduzido por Eduardo Marquardt), que diz que:

Traduzir poesia é o mais néscio dos passatempos adolescentes. (…) A tradução de
poesia só ganha interesse quando se dá uma passagem de tonalidade, como na
tradução de Marianne Moore das fábulas de La Fontaine.

Obviamente, ao promover esta “passagem de tonalidade” em sua tradução, Arno não angariou muito mais do que, junto ao público “leigo”, a indiferença de costume em se tratando de uma empreitada como esta e, dentre os acadêmicos, um ostensivo descrédito. Até porque para ele a ação do FW ocorre não em Dublin, mas em Trieste, e o assunto central do livro seria a rivalidade entre James e seu irmão mais novo Stanislaus Joyce, que estariam disputando o amor de Nora Barnacle, esposa de James. Como se isso não bastasse, Arno ainda sustentava que “toda e qualquer reescrita [do FW] em outra língua” — o que, lembremos, ele mesmo começou a fazer — “seria melhor do que o próprio original”13.

É preciso dizer que a relação de Schmidt com Joyce passa pela amizade do primeiro com Hans Wollschläger, discípulo de Arno e autor da sem dúvida mais competente tradução do Ulysses publicada em alemão, e culmina em sua obra mais famosa e menos lida, Zettels Traum [Sonho do (bilhe)tecelão]. Publicado em 1970, este livro superlativo de mais de mil páginas em formato A3 e título shakespeariano — no século XVIII o nome do personagem Bottom, da peça Sonho de uma noite de verão, foi traduzido para o alemão por Christoph M. Wieland como “Zettel”, que além de “tecelão” significa “papelzinho” —, necessariamente nos levaria à considerações sobre sua gênese e à atraente “teoria do étimo” desenvolvida por Arno — uma investigação intrincada sobre as articulações entre linguagem, inconsciente e literatura —, o que, no entanto, nos afastaria dos “Dias estranhos” que trouxeram a gente até aqui.

Portanto, voltemos ao conto, ao começo, melhor ainda: ao título.

Mas, antes disso, uma rápida observação sobre outro título.

Acima disse que, apesar de inédito por aqui, o nome de Arno Schmidt consta nos catálogos de muitas livrarias brasileiras. Isso porque Arno Schmidt é o título de um romance de Marcelo Rezende, publicado pela Planeta em 2005. Naquele tempo os escritórios da editora, diga-se de passagem hoje uma das maiores do mundo, deviam estar sendo assombrados por algum editor nada ortodoxo em termos de mercado, metas e métricas. Isso porque foi nessa mesma época, mais precisamente em 2003, que ela publicou o magnífico Curva de rio sujo, coletânea de escritos fragmentários e memorialísticos de um ainda nada premiado Joca Reiners Terron. Ter há poucos dias encontrado — e comprado por não mais que sete reais — um romance homônimo do escritor alemão que vem me ocupando, tem algo da surpresa experimentei ao puxar das estantes de um sebo aquele que foi por muito tempo meu livro preferido de Terron — e que comprei por dez reais. Matemática financeira à parte, já que o livro de Rezende apenas alude a Schmidt de longe, utilizando-o como elemento coadjuvante e metabolizando a influência de maneira a não deixar traços esquemáticos, deixamos o comentário sobre o romance Arno Schmidt também à parte, destinado à um futuro “Tabuleiro de respiros” da revista CAÇA E PESCA.

Portanto, agora sim, voltemos ao título traduzido.

O conto que trouxemos do alemão para o português foi publicado pela primeira vez num jornal em 1956 como “Em dias como esses” [“An solchen Tagen”], para então ser incluído nas coletâneas Tamborista do czar (1966) e Meteoro de verão (1969) como “Dias estranhos”.

Uma das possíveis traduções para o adjetivo referente aos “dias” que nomeiam o conto poderia ser “raros”, mas com a acepção que a palavra tem em castelhano, onde significa “estranho”, “insólito”. Vale notar que em alemão há outra palavra para significar “estranho”: trata-se de “unheimlich”. Aqui não cabe abordar as anfractuosidades desse termo explorado por Sigmund Freud e seus pósteros14. Vale, sim, sinalizar que “unheimlich” é aquilo que não é de casa, sendo também traduzido como “infamiliar” ou “inquietante estranheza”; ao passo que “seltsam”, nas redondezas de “selten” — que em alemão significa “raro” e “pouco frequente” —, aponta para o que acontece extra-ordinariamente, escapa ao cotidiano e é fundamentalmente diferente daquilo que se espera ver no dia a dia15. Contudo, no conto de Schmidt o estranho extra-ordinário tampouco se limita à irrupção do mistério e do maravilhoso, ou da catástrofe, do trágico que todos nós tememos em maior ou menor grau, mas se trata também de uma incômoda ameaça de acontecimento. Em termos aristotélicos, é como se, com medo do automaton, o personagem e narrador do conto provocasse a tyche.

Ainda quanto a isso, notamos que em “Dias estranhos” há um aspecto paranoico que aparece como ressonância, atmosfera. A ameaça se faz sentir difusa no jeito que o sol nasce e as nuvens deslizam, podendo saltar de um antigo livro aparentemente inofensivo ou de um minúsculo e hostil automóvel verde. Pois quem conta a história, e que aqui propositalmente identificaremos com seu autor Arno Schmidt, ao que parece está projetando o desejo inconsciente sobre pequenas incidências em seus arredores. Algo similar a isso acontece n’O caso Schreber analisado por  Sigmund Freud, em que o juiz Schreber se supõe perseguido pelo doutor Flechsig, quando ao que tudo indica é o próprio juiz quem possui pelo doutor uma atração homossexual que o próprio Schreber ignora, inclusive porque ela lhe seria profundamente inadmissível.

Ou seja, em “Dias estranhos” parece que quem está estranho não é propriamente o dia, mas aquele que o atravessa e por ele é atravessado. Neste ponto cabe a pergunta: o que sem saber Schmidt estaria buscando naquele dia tão estranho?, busca que aliás culmina em uma cena noturna, como se ele conhecesse o provérbio: “tem dia que de noite é fogo”.

A esta altura é conveniente não apenas observar que o conto parece dividido em dois momentos distintos, um correspondente ao interior/casa e outro ao exterior/na rua16; também vale considerar a manifestação de uma perspectiva voyeurista. Pois Arno Schmidt, o homem “à luneta”, que passava horas observando os arredores de sua casa meio que no meio do nada, no fim das contas e do conto fica à espreita, frestando a céu aberto vizinhos que desconhece. Isso, claro, depois dos temores de ser interpelado por acontecimentos insólitos — que apontam para a noção de acaso objetivo.

Ademais da diferença estabelecida acima entre “estranho” e “raro”, ou “unheimlich” e “seltsamer”, é importante marcar também algo do que singularizaria acaso objetivo. Aqueles que possuem alguma familiaridade com esta noção, ao lerem o conto certamente terão comprovado que é quase inevitável não vê-la no horizonte ao longo de toda a história. No entanto, antes de prosseguir, lembremos do que se trata o acaso objetivo.

Embora o próprio André Breton a atribua a uma tentativa de conciliar Friedrich Engels e Sigmund Freud, ele parece ter formulado a noção de acaso objetivo a partir do Vocabulário técnico e crítico da filosofia [Vocabulaire technique et critique de la philosophie], organizado por André Lalande de 1902 a 1923. Neste célebre livro de referência, o filósofo Paul Souriau afirma que o acaso consiste no “encontro de uma causalidade externa com uma finalidade interna”. A partir disso, e claramente influenciado por G. W. F. Hegel e Freud, em O amor louco (1937) Breton define o acaso objetivo como a “manifestação de uma necessidade exterior que abre um caminho no inconsciente humano”. Descrições deste tipo de manifestação podem ser encontradas no tríptico que se inicia com “Espírito novo” e conclui com “Coda em três partes para um tríptico em três tempos”, ambos publicados n’A Fresta, respectivamente em de 24 de maio de 2023 e 25 de outubro de 2023.

Em síntese, poderíamos dizer que o acaso objetivo re-apresenta um espelhamento: aquilo que vem me ocupando em foro íntimo repentinamente irrompe também na realidade que me aparece como exterior, de imediato provocando suspense e estranhamento — como quando, pouco antes de anotar este texto, uns poucos minutos após evocar um par de motociclistas amigos de minha família e que conheci na infância, saí para a rua e, logo ao cruzá-la, uma grande e ruidosa motocicleta passou por mim, o que prontamente me chamou a atenção.

Isso de início parece substancialmente diferente não só do que Schmidt relata em “Dias estranhos”, mas também do que aconteceu naquele mesmo dia em que anotei o ocorrido acima, quando um transeunte, girando na mão direita feito um io-iô uma chave pendurada na ponta de um barbante, parou ao lado de minha namorada e eu na esquina enquanto todos esperávamos para cruzar a rua, apontou para minha calça e meus calçados, e disse algo de maneira tão atrapalhada e confusa que tudo que sou capaz de restituir é o seguinte: a juventude não gosta mais de usar sapatos marrons e calças de veludo cotelê, mas em Blumenau as pessoas ainda usam. Ora, Blumenau é a metrópole que meio que serve de capital ao Vale do Itajaí, onde nasci e que, apesar da rixa histórica entre minha cidade natal e ela, costumo utilizar para situar minha origem quando perguntam de onde venho.

Aquela menção inopinada a Blumenau, que por sinal não costuma ser assunto ao meu redor, me espantou. Embora não viesse me ocupando desta cidade naquele momento, lembro que, por ocasião das recentes inundações no Rio Grande do Sul, nas últimas semanas fizera referência às grandes enchentes ocorridas em Blumenau e região nos anos 1980. Além disso, enquanto escrevia o quarto capítulo da quina sobre Sarane Alexandrian, me surpreendi ao descobrir que em O cemitério dos vivos, publicado pela Planeta em 2004, em um dado momento do livro Lima Barreto menciona Blumenau17, algo aparentemente pouquíssimo usual no corpus das letras brasileiras. Aponto isso também para sublinhar que a temporalidade do acaso objetivo é outra e que, muitas vezes, acontecimentos cronologicamente distantes podem se aproximar uns dos outros repentina e radicalmente.

Caberia ainda investigar o sentido destas convergências mas, enfim, estas são discussões cujas filigranas transbordam o cerne destes “rudimentos”, que não por isso deixam de fazer com que nos perguntemos se o acaso objetivo seria mesmo e sempre um espelhamento estruturado como um binômio.

Voltando portanto à rara estranheza dos “Dias estranhos”, como dizíamos, ela parece emanar do próprio Arno que, aliás, em momento nenhum do conto se detém para deliberadamente questionar em si de onde poderia estar partindo aquela sensação que ostensivamente toma conta do seu dia. Pelo contrário, ao que parece ele quer mais é não saber o que está passando pela sua cabeça: “sabe-se-lá o que vi”, diz ao sacudi-la, enquanto vemos indícios de seu querer despontando, por exemplo, no suspense daquela cadeira de praia e na fantasia de agressão diante da porta. Por fim, é como se a projeção daquelas memórias fotográficas alheias, que ele vê através de uma janela pelo avesso, emblematizasse algo sobre a própria situação em que se encontra Arno, embora ele pareça estar preocupado não só em manter-se atrás da tela de sua memória, mas que esta última conserve uma certa opacidade.

A partir deste emblema poderíamos pensar que o que há do outro lado da memória é o olhar, o que levanta a pergunta que nos levará à conclusão deste escrito: então, o que há atrás do objeto? Se, etimologicamente, objeto é “o que é lançado à frente”, onto e topologicamente, o que haveria atrás do objeto em si? Ao se esconder atrás do ser de, por exemplo, uma pedra, uma geladeira ou um prendedor de roupa, quem se encontra ali é o sujeito?

Ou seria, afinal, algo absolutamente estranho?

Natan Schäfer
Maio de 2024


NOTAS

[1] C.f. o episódio intitulado Arno Schmidt: Espelho negro [Arno Schmidt: Schwarze Spiegel] do podcast Blaubart & Ginster, levado ao ar em 22 de novembro de 2022. Disponível em: < https://youtu.be/xhNMFVdaJzo?si=dTJUy62Nu-Jx9nWb >; acesso em 31 de maio de 2024.

[2] Crime tipificado pela Lex Heinze, isto é, a Lei Heinze, polêmica emenda acrescentada em 1900 ao código penal alemão, a qual dizia respeito aos costumes. Em termos gerais, ela é bastante similar ao artigo 234 do código penal brasileiro de 1940.

[3] Vide O cânone: de Joseph Roth a Arno Schmidt [Der Kanon: Joseph Roth bis Arno Schmidt] (Insel, 2003), organizado por Marcel Reich-Ranicki.

[4] Pallium foi uma revista simbolista dirigida por Julio Pernetta e Silveira Netto e que tinha por divisa “Pelo sonho”. No seu segundo número, de outubro de 1898, as últimas linhas do necrológio de Stéphane Mallarmé, falecido em setembro daquele mesmo ano, dizem o seguinte: “Não conhecemos todos os trabalhos d’este Poeta. Sabemos, entretanto, que, alem de poderosas obras originaes, deixa-nos elle uma traducção maravilhosa das poesias de Edgard Pöe (…)”.

[5]  Termo pouco usual para, segundo o dicionário Aulete, indicar que um veículo penetrou no outro “em consequência de choque, como, os tubos de um telescópio ou luneta, que se encaixam um dentro do outro”. Apesar de hoje em desuso, optamos por mantê-lo, uma vez que aponta para a luneta que, de fato, é um objeto-chave no que diz respeito a Arno Schmidt e sua obra.

[6]  Referência a Noitinha de borda dourada [Abend mit Goldrand], última obra publicada por Arno em vida em 1975 e cujo subtítulo é: “uma farsa de fadas. 55 figuras do (t)ermo para amantes das artes da gralha”. “Gralha” aqui tem o sentido de erro tipográfico. O jogo de palavras que traduzimos por “(t)ermo” aparece em alemão grafado como “ldlichkeit”, podendo portanto ser lido como “ruralidade” (“ländlichkeit”) ou “finitude” (“endlichkeit”).

[7] Referência a um “ciclo” de nove desenhos da pintora Toyen, acompanhados por texto de Jindřich Heisler, publicado em 1944, isto é, pouco antes do fim da Segunda Grande Guerra.

[8] Em 22 de junho de 2022, publicamos a primeira tradução para o português de um escrito de Anne Ethuin. O poema intitulado “De face e de perfil”, assim como ensaio que o acompanha, pode ser encontrado em: < https://sobinfluencia.com/texto/de-frente-e-de-perfil/ >; acesso em 21 de maio de 2024.

[9] Excerto de “O surrealismo em face da literatura”, em tradução de Aida Wailer Ferrás, Noêmia Guimarães e Robert Ponge, publicado graças aos esforços deste último em O surrealismo pela Editora da Universidade/UFRGS em 1991.

[10] Como não mais que uma sugestão para incrementar este debate cujo desenvolvimento parece reservar boas surpresas, não poderia deixar de indicar as produções audiovisuais dos holandeses do KIRAC, acróstico de Keep Art Critic Real. Desde o primeiro contato até hoje, a indecidibilidade entre o que é factual e o que ficcional em suas realizações é algo que me desconcerta.

[11] Em seu Sim, eu digo sim. Uma visita guiada ao Ulysses de James Joyce, publicado pela Companhia das Letras em 2016, Galindo afirma que “Joyce mostrou como transformar o singular em universal, como depurar sua personalidade, suas experiências, sua vida, em um molde que não se sufocasse no biografismo estreito, mas partisse dele para uma manifestação mais ampla da humanidade”.

[12] Em 1930 Joyce teria dito ao intelectual tcheco Adolf Hoffmeister que o FW, então ainda “Work in Progress”, seria “mais satisfatório do que outros livros, porque ele dá aos leitores a oportunidade de suplementar o que estão lendo através da própria imaginação. Haverá pessoas que ficarão interessadas pelas origens das palavras; pelos jogos de técnica; pelos experimentos filológicos em cada um dos versos. Cada palavra tem toda a magia de uma coisa viva. Toda coisa viva pode ser moldada”.

[13] No diálogo para o rádio “Tritão de guarda-sol na mão” [“Der Triton mit dem Sonnenschirm”] (1961), de Arno Schmidt, o locutor C se pergunta: “Será que é herético demais que me venha espontaneamente esta observação, de que toda e qualquer re=escrita numa outra língua seria melhor do que o próprio=original?”, ao que o locutor B responde: “Muito bom”.

[14] Aos interessados no debate, sugiro O incômodo, de Sigmund Freud, em tradução e edição de Paulo Sérgio de Souza Jr. publicada pela editora Blucher em 2021.

[15] Um das etimologias aventadas para a palavra é que ela seria originária de “selten zu sehen” — parecendo inclusive uma contração desta locução —, ou seja, “que raramente se vê”.

[16] Olhando mais de perto, poderíamos dividir este conto de Arno Schmidt em três partes aproximadamente do mesmo tamanho e a partir do lugar onde transcorre a ação, a saber: a casa, a rua e a tela de projeção na janela.

[17] Em O cemitério dos vivos (Planeta, 2004), de Lima Barreto, há duas menções a Blumenau. Uma delas é a seguinte: “Um louco perguntou-me se Lisboa ficava em Minas Gerais e V. O., aliás doutor, não sabia onde ficava Blumenau”.


Leave Your Comment

faz um PIX!

Caso dê erro na leitura do QRCode, nossa chave PIX é editora@aboio.com.br

DIAS :
HORAS :
MINUTOS :
SEGUNDOS

— pré-venda no ar! —

Literatura nórdica
10% Off