Bruno Madeira estuda cinema, trabalha numa livraria e escreve. Seu lance é a palavra, seu lugar de brincar e se desdobrar. Faz parte do coletivo Gugudada, onde experimentam com a poesia e a performance algo que ainda não sabemos, mas chegaremos lá, seja onde for, da forma que der.
Ainda que a literatura te chateie
você está sentada à mesa
e eu no chão
o corpo caído sobre os azulejos gelados
você na mesa
o corpo gelado
o chão
o corpo
a mesa
você faz planos para o novo ano
enquanto eu tento buscar algum motivo
pra não te engravidar essa semana
sua mãe disse que você podia ser tudo que quisesse
mas escolhemos amar
mais um dia amanhece
e a ameaça de que ao menos um de nós permaneça vivo
ao menos um de nós resista à noite
e dê de comer ao anjo que verberamos fome
a fome consumindo tudo
seus olhos brilhando negros
o cabelo frisado
os cigarros finos e mentolados
são o conluio pra que algo sobreviva a esse ataque
(sobrevivemos)
daí então
que você se encontre aqui
parte cachorra domesticada
parte piranha moralista
cada vez mais bela
e mais puta
e eu gosto de você assim
veja,
agora penso que nunca soube te dizer o que sentia
– ou – de que adianta te dizer o que sentia?
se não na hora certa
e com as palavras certas
for that matter Marino Marini when he didn’t pick the rider as carefully
as the horse
veja,
a maneira com que nos falamos é sempre bem descontinua
e literária
esse poema mesmo podia ter vinte páginas
alguma dignidade excedente
formas e estruturas
ou digamos a
rebeldia delicada de Guilherme Zarvos
mas nada disso importa quando ainda aqui:
você sentada à mesa
eu no chão
a mesa
o chão
o corpo
No quarto ao lado dois homens rezam de joelhos uma carcaça amarelada
eu poderia te escrever uma carta
e pedir para Deus te contar
tudo que tem se passado
nos últimos meses
& dias
eram como singelas agressões
pré-acordadas
não importava falar a verdade
nem olhar nos seus olhos
nem respirar normalmente
[o importante era manter a compostura
e jamais esquecer o caminho da porta
aqui,
do lado oposto da sorte
a vida corria taciturna
[o isqueiro
a gasolina
a coragem
entranhas se revirando como
dois cães que brigam entre si
e na verdade
são o mesmo
sendo então
três cães
[o verdadeiro
o ilusório
e os dois virando quatro
e os quatro procurando o rabo
veja,
minha mãe que cruzara o atlântico
em memória
e carregara em si dois peitos palpitantes
agora habita um íntimo buraco na terra
cujo o cheiro carcomido
me excita em confidência
veja,
por mais troncho
e sem sentido
seguimos rezando assim:
de joelhos
com olhos fechados
[pois Deus só escuta desse modo
quando nos vemos perto
bem perto do diabo
eu estou contando os órgãos do seu corpo
e os números batem exatos
às mulheres que te amaram
– inúteis
afogadas com pedras nos bolsos
não esboçam um sorriso sequer
[só olhos
de repente você se pergunta pra que todo o trabalho e esforço do mundo em nascer
uma vez,
conheci homens que se amavam – como rezavam
[de boca cheia
o peito erguido
e dos joelhos frágeis roçando o taco
brotavam pequenos lírios cor de sangue
pequenos ramos
aos quais chamávamos carinhosamente:
mamãe
subitamente,
mamãe nos canteiros
mamãe nas florestas
no quarto ao lado o som se intensifica como dois cães virando quatro
– um poema é uma reza sem dizer amém
– uma mãe é uma carcaça um pouco mais amada
Desenho de Ariyoshi Kondo.
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Meu poeta contemporâneo favorito