12 de julho de 1994. Praia Vermelha do Norte, Ubatuba, Litoral Norte de São Paulo. Um fim de tarde gelado. Foi a última vez que eu a vi. Eu mullets, bigode, ray-ban e chinelo estilo Rider. Ela um vestido longo florido, cabelos negros com um ou outro dread, alargador de 6mm na orelha esquerda, pés descalços, a sobrancelha fina, desenhada perfeitamente para dar um ar ainda mais delicado ao rosto, e olhos pequenos, quase fechados. Porra, qual era mesmo a cor dos seus olhos?
(Era incrível como, naquela época do ano, fazia calor pra caralho durante o dia, mas bastava começar a escurecer e tudo ficava gelado. O vento gelado. E o mar bravo. As ondas enfureciam repentinamente, e parecia que iam quebrar na nossa cara. Lembro das suas costas nuas e sua alva pele se confundindo com a neblina de fim de tarde que vinha do mar, ao mesmo tempo em que o negro do teu cabelo e a tatuagem na parte de trás do seu braço faziam um ponto de contraste perfeito. Eu deitado na rede e você deitada em meu peito. O cabelo salgado e a pele ainda ardida por conta do sol)
A casa dela era espetacular. Lá no alto. Na encosta. Com aquelas janelas gigantes, de frente para o mar. E dizem que é lá onde ela vive até hoje. Nunca mais foi vista na areia, e reza a lenda que dorme de dia e fica acordada à noite. Levanta, veste um roupão, coloca um disco na vitrola e abre um vinho. Todos os dias. Mas isso é lenda, não se sabe ao certo. Fato é que eu deixei Pillar Velásquez para nunca mais voltar, em um puro gesto de covardia e deslealdade não só com ela, mas, principalmente e primeiro de tudo, comigo mesmo. Ela deve achar que eu estou morto, e talvez eu esteja mesmo.
(Sim, ela é espanhola. E achava que a Espanha ganharia a Copa do Mundo naquele ano. Uma pena ela não ter visto o Brasil ser campeão ao meu lado)
A verdade é que a gente nunca daria certo, mesmo. Eu jamais disse que te amava, e a única coisa que nos mantinha juntos de verdade era o tesão. Você tinha peitos muito grandes se comparados à sua baixa estatura, e isso me deixava assanhado pra caralho. Mas foda-se. Você não sabe, mas eu te traí duas vezes, e a situação acabou ficando insustentável. Eu estava bem louco. Nas duas vezes.
Na verdade, eu sempre estava bem louco. Você também, às vezes. E a gente sempre acabava transando em algum canto sujo da festa. Isso quando você não me chupava no banheiro. Era tudo um nojo. Mas a gente agia como se fosse tudo normal.
A gente realmente não tinha muita pretensão. Um dos meus maiores desejos era fumar um baseado com você, mas você insistia dizendo que não gostava. Eu era a porra de uma chaminé, e perdi as contas de quantas vezes tive que parar de te beijar por estar passando mal de tão chapado.
No fundo, seu irmão sabia. Ele fazia boxe, e falava que queria lutar comigo qualquer dia desses. Sem luvas, é claro. Em vez da lona, me derrubaria de cara no asfalto. Mas eu sempre fui um fraco de merda, e vivia me esquivando como podia.
Ele sempre gostou de armas, exército e a Lista de Schindler. É, ele sempre foi um puta fascista, e curtia mesmo essa parada de incitar o ódio. Ela não… Ela era poesia. Pura poesia. MPB e literatura. Fã de Frida Kahlo, antinazi, Esquerda-progressista. Legalize. Evolucionista. Culta, e cultuava a cultura. Não parava de falar sobre livros, músicos e artistas que eu sequer conhecia, mas fingia que entendia tudo. Até dava opiniões.
(Ela sempre foi mais inteligente, culta e sempre teve mais repertório que eu. Nada surpreendente. Mulheres são sempre mais inteligentes, cultas e sempre têm mais repertório que homens. Mulheres amam. Homens não sei o quê)
No fim das contas, no entanto, eu sucumbi. Não soube lidar com porra nenhuma. Me deixei levar pela luxúria, violência, futilidade e desprezo e me desvirtuei. Me inspirei nas tendências bélicas de seu irmão e, de certa forma, a matei. Uma punhalada pelas costas, e depois uma na minha própria cabeça.
Vi o vermelho do seu sangue escorrendo e o preto da morte tomando conta de mim. Senti o corte da espada e o perfume da rosa. Me molhei na chuva sem nenhum abrigo. A cara fechou, o coração pulsava forte e foi-se o nó do marinheiro e o déjà-vu. Os aromas e o beijo sabor baunilha. A fome na África continua, e Karl Marx estava mesmo certo. Deixei um recado no seu diário empoeirado. Clichê, como eu sempre fui. Mataram a porra do Pablo Escobar.
(Os Los Pepes eram sanguinários, e ainda tinha o FBI e a DEA. Mas porra, Pablo Escobar era Pablo Escobar. O filho da puta encheu o cu dos norte-americanos com toneladas e mais toneladas de cocaína e matava pessoas como se mata um pernilongo zunindo na sua orelha. O maluco era frio…Ele me lembrava aqueles caras do Laranja Mecânica, o seu filme favorito que eu acho uma bosta e até hoje não consegui entender direito. Na verdade, você gostava mais do livro, eu acho. Fato é que eles também eram maus, mas invadiram a casa daquele velho e bateram nele até deixá-lo paraplégico. Aquela cena me deu calafrios)
Eu gostava de me vestir igual ao Escobar. É, eu sempre me espelhei em um bando de idiotas, e posso dizer que isso não mudou até hoje. Você tinha um estilo foda. Autêntico. Quando colocava aquela calça boca de sino eu ficava louco. Era a minha preferida. Às vezes ainda sonho com as badaladas da Catedral de Notre Dame, jaqueta de couro, botas vermelhas, a camiseta da minha banda favorita que caía tão bem em você e pulseiras no tornozelo. (Não, não eram tornozeleiras. Eram pulseiras, só que no tornozelo)
Eu queria mesmo saber o que se passa naquela peça que não conseguimos assistir porque estávamos caindo de bêbados. Acho que era um show, na verdade. Caetano Veloso, não era?…Porra, era Caetano e Gil. Perdemos. Eu gastei 80 reais no buteco do pescador e na hora a gente achou aquilo legal pra caralho. A gente achava tudo legal pra caralho, na verdade. Tudo mesmo. Até All Star, do Nando Reis… Eu queria mesmo ter assistido àquela sua apresentação de ballet que nunca aconteceu. Eu amava o jeito que você abria as pernas vestida naquele apertado collant rosa bebê, calçando aquelas sapatilhas com ponta de gesso que caíam tão bem nos seus delicados pés tamanho 34.
Mas eu joguei tudo pro alto e fui pra Bahia. Fazia calor. Muito calor. E eu só conseguia ver o sol refletindo no seu piercing e cegando meu olho. O céu azul, o verde mar, a maresia na cara, a menina no mirante, o vendedor de coco que me ofereceu cocaína e a puta que eu comi naquele quarto minúsculo que mal dava pra andar. Às sete da manhã eu mandei ela embora e ainda tive tempo de matar a garrafa de vodka que tinha na geladeira. Procurei jogado embaixo da cama e achei o último cigarro do maço. Fumei, escrevi uma poesia de bosta e capotei.
Me remoí até o último fio de cabelo por conta disso, não nego. Por outro lado, você nem chorou quando eu fui embora, e foi muito fácil inventar uma desculpa para mascarar o real motivo da minha partida. Eu queria o mundo. Mas o mundo inteiro só pra mim. E eu estou realizando sonhos. Estou mesmo. Nunca pensei de fato estar nessa posição, mas agora eu estou. Sonhos podem ser reais, sim. O céu pode ser meu. E eu já estou subindo as escadas…
O grande problema disso tudo é perceber que o topo não é lá tão alto e nem tão colorido quanto parecia.
(Na verdade, cada dia ele parece mais cinza e mais profundo, ou às vezes acho que uma hora eu vou dar de cara com uma parede e assim vou perceber que fui feito de trouxa o tempo inteiro. Tipo no Show de Truman… Já me disseram que eu não ia conseguir nada com esse negócio de querer abraçar o mundo todo com braços e pernas, mas eu nunca dei ouvidos)
Todo esse paradoxo pois toda conquista tem um sabor de derrota, é inevitável. Um sabor amargo. Pior que café sem açúcar ou cerveja sem álcool. Vejo as roupas jogadas no chão, o escuro do quarto e confetes. Um palhaço em cima de um monociclo, jogando confetes para o alto e fazendo malabarismo com três laranjas podres enquanto o mundo inteiro explode. Nós dois esperando a NASA, e o universo era todinho nosso. Conspirava inteiramente a nosso favor. Deus se escondendo atrás das nuvens, e o som do choro abafado por gargalhadas. O palhaço rindo, rindo, e os confetes ironicamente colorindo o ambiente. A penumbra quente e o coração gelado. Me despedaço em mil pedaços. Cada um como um presente à noite.
Eu me joguei. Fui para São Paulo e andei pelos lugares mais sórdidos daquela cidade imunda. A terra da garoa e do desamor é realmente tudo aquilo que falam dela. Pernas brancas pretas amarelas de raros amigos quase não conversam, andam depressa e te olham sempre com um olhar de desconfiança e desprezo. É tudo frio, e eu conseguia te enxergar em cada esquina onde, madrugada adentro, milhares de almas vazias sopram a vida para o alto e bebem um vinho da Rússia dividido em quatro copos plásticos.
Você lembra de tudo. Barão Vermelho e Paralamas do Sucesso nas caixas. Meia arrastão, bota preta, batom vermelho e unhas negras. Luzes coloridas piscando e fumaça de balada. Seu corpo dançando Odara como nos frenetic dancing days dos filmes dos anos 80. O discurso de Fidel Castro. Viva la revolución e os falsos revolucionários. Eremita moderno. Tudo que fingíamos ser. Eu odeio os Beatles, e você tem um pôster gigante do John Lennon no seu quarto. A porra do Chorão se matou.
(O Chorão tinha tudo pra ser o maior ídolo que eu já tive na vida, mas morreu de overdose de cocaína em um apartamento em Pinheiros. Porra, eu achava que aquele cara era tão distante de mim, tão intocável, mas ele morreu aqui do lado, em Pinheiros. Cheirado até umas horas. Bem que eu falei que sempre me espelho nas piores pessoas. Por outro lado, eu aprendi mais com ele do que em onze anos naquela bosta de escola onde eu te conheci, e foi ele que me mostrou que sonhos podem ser reais, mesmo que todos os dias, todas as pessoas tentem me provar o contrário)
Você curtia Charlie Brown também. Quer dizer, era o que você falava. Você costumava contar que foi seu pai quem apresentou a banda pra você, embora eu não consiga imaginar ele tendo a mínima simpatia com uma pessoa com as características do Chorão. Na verdade, eu não consigo imaginar ele fazendo mais nada além de ser um chato do caralho e sempre me olhar com aquela cara de negação… A minha música favorita que me lembrava de você era justamente do Charlie Brown, e olha que na época eles ainda nem tinham lançado o primeiro álbum. Hoje, dez discos depois, posso dizer que nada mudou.
Guardo rancor mais do que guardo datas de aniversário, presentes de ex-namorada ou qualquer outra coisa inútil, então há uma cicatriz. É claro que há uma cicatriz. Daquelas que precisam de uns 20 pontos (ou anos) para fechar, mas eu vivo utilizando diversas coisas como curativo a fim de estancar o sangramento. No começo parece funcionar, mas a realidade é que a raiz do ferimento está sempre lá, mais viva do que nunca. E o sangue sempre volta à tona.
Parece que eu gosto mesmo desse negócio de colecionar cicatrizes e tenho várias delas, é verdade. Mas você foi a maior, e utilizando a escala perfeita, pintou cada marca em minha pele com a mesma cor que as estrelas que esquecemos de contar pintam o céu. A lua continua bonita, mas eu não posso mais falar com tanta certeza sobre o brilho dela, que parece esmaecer-se cada vez mais, levando consigo tudo aquilo que nos acendia.
Não há uma noite em que eu coloque a cabeça no travesseiro para dormir e não lembre dessa porra toda, mas, afinal, onde foi parar? Onde foram parar os textos escritos de madrugada, as conspirações, a crença na Esquerda, os planos de dominar o mundo como Pink e Cérebro, a certeza de que existe vida em Plutão, os shows das bandas independentes, o curso de Ciências Sociais com pós em Filosofia e doutorado em Biologia Marinha, a fé no budismo, a ideia de se filiar ao PT, o grupo de MPB, a Belle de Jour, a investigação sobre a morte de Vladmir Herzog, os ídolos? A ideologia enfraqueceu, assim como a chama que habitava o âmago do meu ser. E é foda ver tanta vida se esvaindo. Escorrendo pelos dedos. Na ausência do apanhador, desabando do campo de centeio.
Azul meia-noite, anil, e todos os tons mais escuros. A estrela cadente rasga, brilha e pinta o céu da minha boca. O mel do Vale de Saricayir contrapõe o amargo dos meus lábios e marca o meu pescoço. Pétalas de rosa são Nero e meu corpo preso em ínsulas ao som daquela maldita lira que não para de tocar. Nunca. Quando eu menos espero, a música volta a soar em meus ouvidos, fazendo meu pensamento voar livre, leve, solto, louco, e eu acabo por revelar todas as minhas facetas mais íntimas.
É primavera em Ubatuba. O carcará tentou falar com a rosa, mas logo notou a impossibilidade imposta pela língua, pela distinção social e sobretudo pela sua forma não muito ortodoxa de amar. O girassol que nasceu singelo à beira-mar observou em silêncio e deu um toque amarelo alegre ao quadro pintado por Deus. As ondas incessantes quebram mais suaves do que antes, soprando uma brisa confusamente amena. O vento leva a maresia, ruma o carcará e estoura nas gigantes janelas da sua casa. Nas janelas do seu quarto, de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é. Abra, o deixe entrar. Permita-se sentir o sopro refrescando o seu rosto. E então dorme, anjo. Não vale a pena preocupar-se por tão pouco. Se não virar amor, pelo menos poesia virou.
Guilherme Serrano é jornalista, poeta e escritor.