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Drummond foi o maior poeta da depressão, além de tudo

por Diuli de Castilhos
Desenho de Ariyoshi Kondo para ilustrar os poemas de Diuli de Castilhos.

Diuli de Castilhos, 27, nasceu em Jaquirana (RS) e vive em São Paulo, onde estuda Letras na FFLCH. É poeta, proletária e provável vizinha pelada. Flanêuse wannabe, tem diploma de maître, scrum master, mediação de leitura no metaverso e modelo vivo. Sua seleção de poemas pequenas brutalidades ganhou o 30º Prêmio Nascente da USP e seu livro Kitnet de vidro está em pré-venda. Gosta de ler no ônibus, nomear playlists e garimpar bibelôs em bazar beneficente. Aceita pix.


drummond foi o maior poeta da depressão, além de tudo

se cada vez que eu lesse uma mulher como Berlin
soubesse o que fazer com a voz como você,
não precisaria enfeitar a porta da geladeira
com um xerox chinfrim de ana c.

não assimilei a mais-valia relativa dos atalhos.
a vida se abre a cada passo rolando pedra
duvidando do apocalipse em cada virar de esquina.

na bicicleta uma garota muito lista ereta sentada no ferro
— as pernas tão finas quanto ele.
duas facas por cinco, uma dor sem origem.
preciso de um esforço muito grande pra escrever.
você deve achar isso uma besteira —
precisar de uma certa ponta de caneta,
um ponto certo de resistência da tecla ao toque.

a tentação do trilho do trem é invisível ao estado:
saber que não há um braço que se atreva a ajudar.
anterior à linha amarela, engulo o minuto, não travo tráfego.

em dois anos aprendi que existem
chácara klabin teatro do absurdo chat gpt
tio anatol mascate de gravatas charanga
voto em trânsito milei helena igñez barão
de mogi big louis sesc trap e baião de dois.
e gosto ainda mais do jupiter maçã.

procuro meu lugar: o que restou levava um papel dobrado.
um jovem de sapatão e fluorescentes calças
parecia detestar qualquer um que sentasse ali.

não parecia me detestar por mudar o papel de assento.
esperei que falasse a respeito ou deixasse pra próxima,
pra quem não vazasse dos fones a voz de rita lee.
rita lee morreu.

alguém ousaria simplesmente sentar no papel?
não me ocorreu reduzi-lo apertando suas vincas
dele eu desejava alguma comoção:
algo sobre o jovem, a maçã ou essa indecência de
não se ter o direito de sentir a roupa um pouquinho
antes de sair de casa.

em vez disso, duas senhoras.
no fundo de rita uma voz pedia dez ou vinte centavos,
qualquer coisa que tocasse meu coração.
uma prendeu o corpo antes de pegar o papel.
sentaram.

nítida a mão pendida negava atenção
segurou uns segundos ao lado do banco,
até o soltar displicente
olhando alto através da amiga —
como não fosse outra prática disponível:
trem de duas da tarde nesse barulho.

sacolas muito em frente ao peito,
gesticulavam pra não perder o equilíbrio.
a outra esbarrou na caneta.

duas estações. junto o papel do chão
quase pra incomodar a que soltou,
mostrar que vi a performance
desatinada lacônica sub-reptícia.
versículos esparsos, numa fonte
serifa de máquina sem toques,
seguem no meu lugar.

erro a catraca e um soco ignoto me aviva de novo.
você deve saber vomitar as coisas sem tanta resistência,
nem um dedo dúbio na garganta.
pesquiso um corte de cabelo que melhor disfarce
os cinco dias sem forças pra tomar banho.

pátina negra cicatriza a decoração sem partidas.
os chocolates perdem metafísica uma porção por vez.
não mais pedagogia do respirar no cigarro.
só uma janela fixa aberta no sexto andar.

de que vale a força do pulso no lápis
sem o lastro dum orgasmo em apneia?


viver é tedioso

acordo com o gôsto do dia na ponta dos dedos
ferrugem chiclete gasto boneca com canetinha
andar sem cinto com um desconhecido
se for de acidente é porque era pra ser
se nenhum olho oferece espelho
borrar a máscara logo de início

gôsto de frase malescrita malentendida
tão definitiva quanto súbita
de epigramas no qrcode pro cartão de visitas
do relógio que se adianta um minuto
cada vez que tento acertar
da nova tradição da semana
de estar toda hora o outro

gôsto de filtro de cigarro
língua de começo de carreira
um gato sua única visita
areia úmida no piso limpo

gôsto de coxinha insossa
se revisitada seria ironia à coca gelada
estante cheia de suvenir de turista
comprado em bazar de igreja

passar resolvendo encruzilhada
o sentido na rua no meio do ciclone menino
do deslizamento de terra
                          do ânimo
                          da voz afetada

gôsto de frase feita
embalada legendada
pronta pra ontem


nascente

tudo começa com uma coceirinha atrás do umbigo
tem algo de orgástico algo de cócega
uma palavra joga um charme a sintaxe cochicha
e o que sai tem cheiro de pinhão sapecado
som de cãibra no mindinho

depois tem algo de apneia
algo de virar cambalhota e perder as calças
de voltar atabalhoada depois do quebra-mola
de adivinhar o futuro num miado de rua
de largar uma coisa no meio porque sim
vontade de ser o que não dá
fé numa coisa que se não correr o olho não bate

e há que se hidratar em antoníssimas letras
doces ácidos sonrientes que desviram o tutano
coçam até arrancar couro na unha
tantos que esqueci tremetremenda na condução
tantos que ouvi de graça pelo telefone
taí…

caio f disse que escrever é enfiar o dedo na garganta
vomitar o que se leu e virou alimento
aí peneirar moldar a gosma etc mas
primeiro, dedo na goela


Desenho de Ariyoshi Kondo.

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