Luís F. Ferrari nasceu no Paraná em 1998 e atualmente mora em São Paulo. Estudou letras na Universidade de São Paulo, onde hoje desenvolve projeto de mestrado em teoria literária.
Momento na janela
A chuva parou.
As pessoas saíram em conjunto
dos cafés, lojas, restaurantes.
Uma mulher veio na calçada
varrer as folhas empapadas para a sarjeta.
A vida recuperou o rumo após uma pequena perturbação.
Mas um cheiro entre o acre e o doce recordava
a qualquer um que não devia
ignorar ser móvel e inseguro
o hábito de indivíduo que vestiam:
gesso sem liames, ou água que corre de uma mangueira
que o jardineiro esqueceu aberta no gramado.
Entremuros
Lá fora o vento percorre o mato,
e as coisas não entregam suas formas
a um mundo ainda moço. Quase
acredito que viver será possível.
Assisto pelas frestas do portão
ao sol que não lustrou nenhum caminho
ㅤㅤㅤㅤ(por mais acidentado)
e à pretensão de agir que em mim germina.
Na sombra desta garagem,
observo ao meu redor a vida não vivida:
e contra quem deveria rebelar-me?
De repente a tarde se esborralha.
Na cozinha, escuto atordoado
a água que estala contra o barro.
Ninguém
– Não pergunte quem sou. Não sou ninguém.
Não pergunte da vida. Não há nenhuma,
fora a árvore queimada e torcida
e as heras que recuam no escuro.
O não nunca trai a razão do mundo.
Tenho a garganta rouca, já muito pratiquei os gestos de renúncia.
Vê essa criança, que balança contra o ar
a sua espada de madeira
e pensa dar no inimigo um golpe fatal?
Tudo o que sei é fazer que nem ela.
Coração… coração…
É um peixe que se bate sobre a terra,
o anzol o feriu, ele está sangrando,
se esfrega no barro e não quer morrer.
“Não me chame não vou segui-la”
Não me chame, não vou segui-la
até o amor. Não sei aonde me levaria
esta ponte estendida em teu rosto
entre duas ilhas.
Em algum lugar, na noite baça e amarela
do seu olhar, uma cidade despontava,
e lá uma criança dormia.
Não me estenda a mão, mas corte a minha.
Bastava tomá-la e flutuaríamos
pela casa como uma canção antiga,
e as distâncias acolheriam o nosso passo cambiante
ao amanhã que já não era de fracassos.
Mas o peito, imaturo, receia
toda palavra transitiva. Só conhece,
mudo, um tempo de fel e brita.
Noturno da Rua Rocha
De repente, escuto as primeiras vozes. Levantam-se e emudecem, como um fio de tungstênio apaga pouco a pouco o seu rastro de luz.
Não sei de que janela se levantam. Quase vejo seus corpos distendidos, como laocoontes ofendendo a noite. Sua voz os lança por cima dos parapeitos. Seus músculos pairam suspensos sobre as calçadas. Um grito se atira no ar como uma bala e ecoa metalicamente entre os prédios.
Então outra e outra mais se juntam. Vê os acrobatas! De repente eles pulam no ar. Eu também me atiro do chão e atravesso a janela e dançamos e dançamos sobre a rua.
Fotografia: Rua Primeiro de Março – Autoria não identificada (Acervo Instituto Moreira Salles).