Adriane Figueira é paraense, nascida e criada às margens do Tapajós, mas vive há uma década na capital carioca. Tem um gato amarelo chamado John Lennon. É licenciada em Letras (UFPA), mestra e doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas (USP). Entusiasta da escrita, pesquisadora, revisora, professora e poeta intimista. Revoada do dragão (Patuá, 2021) é seu primeiro livro. Filha do raio e da tempestade, uma lírica desassossegada. Escreve quase todos os dias para não sucumbir ao labirinto dos sonhos e das vontades.
“O corpo de uma mulher faz mil coisas”
Elena Ferrante
Elena Ferrante é o pseudônimo de uma misteriosa escritora italiana. Desde que vi “L’amica geniale / My Brilliant Friend” (2018), série distribuída no Brasil pela HBO, e me apaixonei veementemente por Lena e Lilu, venho ensaiando iniciar a leitura da tetralogia napolitana — um projeto para já. Meu primeiro contato com sua obra literária foi em outubro de 2021, quando decidi ler A filha perdida (Intrínseca, 2016) por conta da película que em breve será lançada pela Netflix. Levemente inspirada pelo romance de Ferrante, Maggie Gyllenhaal — a diretora, retira as icônicas personagens dos cenários napolitanos e adapta para a língua inglesa lugares e nomes.
O romance A filha perdida é o terceiro livro da autora e foi agrupado junto aos dois primeiros: Um amor incômodo (Intrínseca, 2017) e Dias de abandono (Biblioteca Azul, 2016), respectivamente, como parte de “Crônicas do mal de amor”, mas aqui no Brasil as três obras foram publicadas de modo independente. Uma tentativa editorial de encaixotar as narrativas de Ferrante, ainda que estas histórias girem em torno de um mesmo mote — a maternidade e as relações entre as mulheres e suas paixões —, gosto de pensar nos ecos particulares que cada uma dessas obras produz nas leitoras(es) e de como as protagonistas — Delia, Olga e Leda — se imiscuem e desenham tantas possibilidades de interpretação e leitura.
Não segui a ordem de publicação, fui do último ao primeiro. Comecei por A filha perdida, depois passei por Dias de abandono e agora estou imersa na história de Delia de Um amor incômodo. Refaço esse itinerário para que a interlocutora possa me acompanhar e não sinta demasiada estranheza nas minhas colocações enquanto leitora recém encantada pela majestosa obra de Elena Ferrante.
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O termo frantumaglia é algo que perpassa grande parte das narrativas de Ferrante e que aqui pretendo usar como mais um modo de ler A filha perdida. A própria autora designa frantumaglia como: paisagem instável, passagem do tempo sem ordem histórica, efeito da noção de perda, angústia dolorosa, zumbido crescente e vórtice que decompõe matéria viva ou morta, entre tantas outras definições. Vou me deter na narrativa de Leda e de como essa mulher reconstrói essas teias emaranhadas e desenha os sentidos a uma interlocutora distante, invisível.
No romance, os nomes e cenários funcionam como parte indissociável da trama. Há um jogo entre sentidos e sons que estabelecem alguns parâmetros de compreensão e leitura: “As línguas, para mim, têm um veneno secreto que de vez em quando aflora e para o qual não há antídoto”. Nesta narrativa, a língua napolitana e seus dialetos são, praticamente, personagens que se movimentam ao sabor dos humores de quem fala.
A filha perdida é uma obra que acompanha as férias de Leda — uma mulher de 48 anos que decide pegar o carro e sair em busca de sol e descanso. Ela é uma professora de literatura inglesa, separada e com duas filhas já adultas que vivem com o pai no Canadá. Talvez, dizendo assim, não pareça ser algo tão interessante, mas avançando pelas páginas a leitora fica cada vez mais envolvida por Leda e suas histórias tão escancaradamente reais, por isso mesmo tão humanas. Seus erros, arrependimentos, seus excessos, sua coragem. Leda é uma mulher que escolheu a si mesma e que se mantém alerta o tempo inteiro. Os custos são quase sempre muito altos para bancar seus desejos.
A narrativa de A filha perdida é toda centrada nos relatos desta personagem, ela nos revela segredos de família, a infância em Nápoles, a difícil relação com a mãe, o rompimento com o mundo conhecido e pacato do interior da Itália. Com ela percorremos os corredores da faculdade, as primeiras experiências de mulher casada, a maternidade, o reconhecimento intelectual e uma paixão arrebatadora pelo professor vindo de Londres. Leda não é uma mulher covarde, ela encara com convicção o universo dos homens e busca com dedicação a independência, seja ela afetiva ou financeira. Não vacila nas prioridades, não se intimida diante de olhares alheios que se chocam ao ver uma jovem mãe abandonar suas duas filhas para viver o que lhe foi negado, suspenso — como para a maioria das mulheres.
Uma breve digressão e estamos em sua infância, diante da crueldade de uma mãe que parece repetir os gestos, num ciclo que jamais se encerra. A criança Leda brinca entretida com sua boneca Mina. Um salto e voltamos à juventude quando, aos 20 e poucos anos, Leda teve sua primeira menina de carne e osso — Bianca. Dois anos depois, Marta. Duas filhas com personalidades tão destoantes, dois pesos tão duros de suportar. Para uma mãe é sempre mais difícil se manter mulher depois da maternidade, as cobranças surgem de todas as direções, tanto quanto os julgamentos.
A narrativa toma fôlego a partir do momento em que Leda, após atravessar o pinheiral, se senta em frente ao mar e passa a observar o comportamento dos outros banhistas que preenchem os espaços na areia. Seu olhar estaciona em uma jovem mulher que brinca com uma criança e sua boneca. É pelo olhar de Leda que passamos a saber sobre Nina, sua filha Elena e a boneca que está sempre entre elas duas — Nani.
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No Brasil, La figlia oscura se transformou em A filha perdida, talvez essa escolha da tradução soe um pouco estranha a quem lê a obra. Eu encaro como um pequeno spoiler. Não é possível estabelecer quem é essa filha perdida, há muitas filhas e mães perdidas nessa história e a boneca é esse lugar de memória, esquecimento, apodrecimento e continuidade.
Não pretendo aqui traçar uma linha temporal e espacial entre acontecimentos e personagens, mas provocar na leitora o desejo de conhecer e percorrer junto com Leda esses lugares de dor e mudança. Leda é uma personagem cheia de personalidade, cruel, muitas vezes dissimulada e algumas desconcertantemente direta. Os outros assistem incrédulos seus discursos altivos. Ela é uma mulher que testa a disponibilidade e a tolerância de estranhos. Sabe ser doce e gentil, sabe fingir tão bem. Ela precisa de cuidados, mas ninguém enxerga. O mundo é injusto e interesseiro.
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Quero trazer para esse espaço o que chamei de “a trindade” do livro: Leda, Nina e a boneca Nani que como nos diz Ferrante em Frantumaglia: “As bonecas nos sintetizam como mulheres, em todos os papéis que o patriarcado nos atribuiu”. Essas três figuras femininas funcionam, nesta leitura, como metáforas que acompanham o olhar. A mulher mais velha que é mãe e amante, a jovem linda e sedutora que também é mãe e amante e a boneca — simulacro da perfeição ou da incorruptibilidade — que carrega em seu ventre de plástico uma viscosidade orgânica.
Estes ciclos iniciados e encerrados nas páginas do romance oferecem uma visão privilegiada das mudanças, as nuances sutis do comportamento humano feminino esfacelado, espelho espatifado em mil partes que não se reconstituem: “O corpo de uma mulher faz mil coisas diferentes, dá duro, corre, estuda, fantasia, inventa, se esgota e, enquanto isso, os seios crescem, os lábios do sexo incham, a carne pulsa com uma vida redonda que é sua, a sua vida, mas que empurra você para longe, não lhe dá atenção, embora habite sua barriga, alegre e pesada, desfrutada como um impulso voraz e, todavia, repulsiva como o enxerto de um inseto venenoso em uma veia”.
Peço licença para revelar segredos. Há um episódio muito importante em A filha perdida que descortina todo o restante da história, quando a menina Elena some na areia da praia e depois de muita procura é encontrada por Leda, mas a boneca Nani, que a pequena carregava sem jamais abandonar, desaparece. Essa cena é reveladora. A criança sofre pela perda, adoece, chora e não há nada que os adultos possam fazer para acalmá-la. Leda se compadece, oferece ajuda aos familiares da criança, mas nós leitoras sabemos do seu segredo, somos cúmplices do rapto: Leda roubou a boneca.
Esse roubo fragiliza nossa protagonista. A boneca funciona como antídoto e veneno na mesma medida. É moldável, plástica, mas emana um odor pútrido e é preciso “limpá-la”. Leda está à deriva na vida — sua vida, ela necessita de um porto mesmo que provisório. Carregar a boneca nos braços, cuidar, limpar, trocar suas vestes faz com que ela se sinta útil e saudosa. Ela sente o cheiro podre do dentro, das entranhas da boneca e busca na náusea um consolo. A boneca está “grávida” e é preciso fazer o parto para torná-la, mais uma vez, “imaculada”, “viva”.
Leda recorda sua infância, a infância de suas filhas e o desamor que a acompanha. Ela encontra com Nina e Elena e observa fria as lágrimas da criança que está com febre e mau humor, mas ela se mantém firme no fingimento. Ela diz que não viu a boneca, mas segue em busca e que cedo ou tarde será encontrada. Ela ensaia largar Nani em algum lugar na praia, mas teme ser vista, pois sente que é observada o tempo todo.
Leda é a filha, a mãe, a amante, a amiga, a mulher que não volta atrás; tantas mulheres habitam esse corpo discursivo que enuncia a desilusão, sofre, mas se mantém alerta, luta todos os dias para não sucumbir ao “acaso”, a existência. Ela recalca os sentimentos, ensaia seus movimentos. Eu me compadeço, me envolvo e caio na perdição da vida dessa mulher, humana e má. Eu sou um pouco Leda, somos todas. Chega de spoilers, o filme será lançado em 31 de dezembro para quem não leu o livro ficar conhecendo a história de Leda, mas eu insisto na leitura da obra, vale cada momento.
A narrativa de Elena Ferrante nos desloca dos lugares conhecidos, nos desconcerta, mas nos faz mais atentas, talvez mais solidárias com as mulheres mães, com as mulheres filhas, com as mulheres crianças, com as mulheres amantes e tantas facetas que podemos assumir no decorrer de nossas existências.
Observações: Todas as obras citadas aqui de Elena Ferrante foram lidas e consultadas em formato digital, por isso não há menção ao número das páginas.
Referências
FERRANTE, Elena. A filha perdida. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.
____________________. Frantumaglia – os caminhos de uma escritora. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2017.
Foto de Luísa Machado.
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Mais sobre a obra
“Eu nunca escrevi diários! Isto aqui é um extravasamento, um inventário estilhaçado, sem datas fixas no calendário, sem horários demarcados — guiado por Kairós”. Assim escreve no preâmbulo a autora de cacos retidos na margem, nomeando Kairós como preceptor de sua jornada entre a prosa e a poesia e, nesse simples ato, recusando a medida, a exatidão e a linearidade.
O tempo da palavra de Adriane Figueira é o do extravasamento. Os textos desse livro são desenhos sutis, quase oníricos, de um labirinto de memórias e vertigens que, solitário e vigilante, assoma como possibilidade de um contágio verbal que desoculta as tempestades da nossa experiência.