Calí Boreaz nasceu em Portugal, onde estudou Direito e Flamenco; viveu em Bucareste, cursando língua e literatura romenas e tradução literária; e, desde 2010 no Rio de Janeiro, mergulhou nos universos editorial e teatral. Editora, tradutora de literatura romena, autora de três livros — outono azul a sul (Editora Urutau, 2018), tesserato (Caos e Letras, 2020) e a tela finalmente escura (Kafka Edições, 2023) —, publicada em antologias e revistas do Brasil, Portugal, Galiza, Cabo-Verde e México, bem como em exposições de Portugal e da Índia, calí, que também é atriz e dramaturga, interpreta e funde sua poesia em múltiplas criações autorais, como espetáculos de jam poetry sessions, saraus, podcasts e filmepoemas.
[a solidão de um carrinho de pipoca]
[que o mundo volte III]
agora que consegui visitar-te
para lá da serra
ainda sinto no teu abraço-menino que não perdoaste
o meu abandono das palavras
poemas cartas com que nos prometemos salvar para um novo mundo
o meu aparente silêncio diante dos teus prolongamentos
silenciosos de amor
não foi por não te ver
não foi por não te ver
é que andei implodindo e as respostas iam por outros caminhos
mais por dentro, já te disse mas
eu ainda te peço perdão, poeta
parti para o norte e regressei ao sul debaixo das bombas da vida e da morte
tive de aprender o descontrole
porque o amor tenta sempre voltar ao amor
as ruínas sendo ruínas já estão tentando se tornar
algum tipo de construção espalhada
— é duro deter a beleza
lembras quando pensamos sobre
a melancolia das janelas
a melancolia de tudo que se debruça
daquilo que cai do que é
imóvel
quando olhos se seguram
para nunca mais
como brechas depois
para nunca antes
eu tive de aprender a cair passado afora
até chegar aqui—agora
acho que estou quase chegando
tenho trocado os fusos para terminar um livro
acho que é com ele que chegarei de vez
perguntas-me qual o título
e eu ainda não quero dizer
a arte dos títulos, que dizes que aprendeste comigo
e que eu relativizei com as demolições
— não há síntese possível
quero continuar o nosso sonho no méxico
olhar a música que se vê da janela do carro
ouvir os perfumes que amanhecem nos cactos
e lamber as cores
ah! o novo mundo
desde que trocamos de ampulhetas
e passei a ter 15 segundos para inverter os polos
e declarar eis um tempo que começa
nunca mais esqueci de lembrar da minha risada
ela precisa rir um pouco mais, só mais um pouco, tu declaraste
podes descansar tua memória dentro das minhas raízes, acabaste assim
a primeira carta depois da travessia, à qual já não sei se respondi
como a outras tantas que me enviaste, não sei se respondi
não foi por não te ver
não foi por não te ver
agora já sabes?
cada vez menos, mas vez ou outra ainda preciso expirar demoradamente
a técnica que peguei dos teus áudios quando soltavas longo os cigarros
e que ficou registrada como a melhor das técnicas imediatas de não morrer
será que chegaremos mesmo a esse novo mundo
tu já sabes?
tu levaste os pássaros para são paulo
e eu deixei as luas no observatório do hemisfério norte
tão de avalanche vim que só pude trazer a força de não fazer força alguma
tão bom quando a gente acorda e
alguma coisa saiu do lugar
foi uma de nós que disse, ou as duas
em tempos diferentes ou ao mesmo tempo
tanto faz
tanto jazz
na vitrola do nosso abraço
dane-se o novo mundo, o velho também
é bonito ver o sol nascer de um lugar em movimento
essa foste tu que disseste na estrada
e eu fiquei pensando sobre isso de cruzar
um movimento na vertical com um movimento na horizontal
o que se concentra nesse ponto de intersecção
capaz disso ser o único título que existe
capaz de amor ser isso
a dor também é uma concentração
e nós estamos cansadas de doer
estamos cansadas de doer
quantas vezes qualquer coisa precisa ser repetida no mundo até virar
pássaro?
por enquanto [é sempre por enquanto]
sinta-se a beleza desse cansaço
lembra das palavras do cohen
toma aqui o cohen bebe o cohen
nesse chá de capim-limão
durante o banho no claro-escuro desse lugar desconhecido que te acolhe
tu levaste os pássaros para são paulo, é o que importa
no rio de janeiro, é pura ilusão o momento vermelho do semáforo
o momento verde também, pura ilusão
os semáforos aqui estão sempre amarelos intermitentes
eu acho que gosto disso
americanamente gosto disso
sei lá, parece com descontrole
com coisas saindo dos lugares quando menos se
expira
lembro os nossos olhos debruçados
na mesa de um café por entre dois edifícios de livros
que delicadeza quando a janela é a outra
o ponto de intersecção
de uma chuva compartilhada
de um cansaço compartilhado
não, não foi por não te ver
não foi por não te ver
estou amarradona no cansaço, tu me disseste afinal
e eu então fiquei feliz
casa será qualquer lugar onde eu abrirei a porta pra ti
não canso de lembrar as coisas que tu me dizes
a casa, assim como o livro como o amor como um título
— tentativas de concentração
ainda te dá vontade às vezes de aparecer desaparecendo?
por 15 segundos ou 3 minutos — os tempos das ampulhetas, que,
no fundo, duram o mesmo:
o tempo da queda —
peguemos na locomotiva do horizonte escarpado a parte mais alegre dos nossos corpos
para dançar o extravio de todos os mundos
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Fotografia: Álbum Cia. Docas de Santos – Novas oficinas – Autoria não identificada (Acervo Instituto Moreira Salles).