Cecília Lara é nascida e vivida em São Paulo, 41 anos, doutoranda em Literatura, programadora da Biblioteca Mário de Andrade, mãe do menino Bernardo e da cachorra Miranda. Escreve poemas e gosta de cachorros e cinema. Vai publicar seu primeiro livro em 2024, pelo edital Proac-SP.
separação e queda
olha me desculpe não ter te li-
gado eu estava ocupada esses
dias carregando meu corpo can-
sado por uma estrada de tijolos
brilhantes. levando minha tristeza
pelo braço esperando que ao final
do caminho eu ao menos encon-
trasse o abraço quente da minha
mãe. essa queda até a lua me deixou com
fome e eu entendo que você pretenda
esquecer meu rosto e meu nome mas
favor não me abandone mais em pleno
carnaval. não escreva poemas com
ritmo e métrica para outras mu-
lheres nem use minha escova de
dentes outra vez para limpar o
rejunte do banheiro.
eu te ofereço o que posso:
o som do meu alvoroço,
meu dedo no seu gatilho,
descanso no fundo do poço,
a risada do nosso
filho
uma palavra que descreva exatamente
ser criança nos anos oitenta brincar no mar até tornar-se mar
até que as vísceras sejam mar
os olhos sejam mar
os ossos sejam mar.
exige tempo, entrega e infância
ter treze anos nos anos noventa chegar numa festa e ver
o menino que você gosta
a beijar outra garota.
o nó na garganta que fica
vazia com a música alegre
tocando pra ninguém dançar
ter sessenta anos nos anos vinte perguntar pra tua mãe já velhinha
o que houve durante a tua gestação
e teu primeiro ano na terra.
anotar o que ela se lembra a respeito
ser bebê quase no fim de um século com uma mãe não letrada na
linguagem do amor
um bebê se perguntando sem saber que se pergunta
“se ela me ama, por que não me olha?
se ela me ama, por que não me vê?”
notícias
hoje em algum lugar
uma avó colocou um colchão no chão da sala
fez uma cabana com lençóis limpos
deitou-se com seu neto para que pudessem
assistir tv até adormecerem juntos
(o instante que já nasce destinado a ser uma memória)
em outro lugar, foi noticiado no jornal local
que um homem ficou grávido de gêmeos
já nas redes sociais apareceram os pescocinhos
moles das crianças mortas
os olhinhos fechados das crianças que não dormem
não se esqueçam das crianças mortas
as notícias atravessaram
oceanos montanhas costas cidades inteiras
cabos telas ouvidos fios de fibra ótica
bairros moribundos pedidos de jukebox
cochichos em restaurantes lágrimas sobre pratos
corpos enormes de cobre, ferro e aço
eu vim pra cá andando sobre a neve
com calça fina e um tênis muito leve
meu pé congelou mas não senti dor
pois já há muito tempo meu corpo
fala uma língua que não compreendo.
fui pega pelas notícias distraída,
em frente à máquina de café.
a esse respeito, uma amiga um dia me avisou:
um bailarino de collant nao protege o castelo
um cavaleiro de armadura não dança o balé.
Desenho de Ariyoshi Kondo.