André Balbo nasceu em São Paulo em 1991. É contista e tradutor. Autor de 4 livros e tradutor, dentre outros, do escritor italiano Alberto Moravia.
Tudo o que Igor mais queria naquele momento era ver de longe o Celta branco da mãe quebrando a esquina, ou já perto buzinando para ele enquanto estava distraído com o Game Boy. Chegaria em casa a tempo de cochilar, lanchar e assistir a Dragon Ball Z. Alguns empecilhos: a professora tinha liberado quase meia hora antes, a mãe costumava se atrasar às segundas-feiras e ele nunca teve um Game Boy. E Leonardo fazendo merda, é claro. Dessa vez, no entanto, não podia ficar parado. Não podia permitir coisa tão perversa acontecendo bem na sua frente. Mais que isso: na frente de trinta ou quarenta meninos e meninas, na rua da escola, divididos entre medrosos e coniventes.
Que Leonardo era um valentão todos sabiam na Escola Estadual Lysanias de Oliveira Campos e nas outras duas de que tinha sido expulso em Araraquara, mas aborrecer Otávio – nerd, doente, sem amigos – bem na semana em que tinha voltado, depois de meses afastado para tratar de um câncer, era coisa de filho da puta. Era o que Igor acharia em qualquer circunstância e não somente por ter visto a própria mãe quase morrer de câncer dois anos antes. Decidido, se destacou da multidão de garotos de dez a doze anos e parou à frente de Leonardo e Otávio, formando um triângulo.
Para de encher o saco dele, Leozão.
Se toca, Igor. Você tem dois palitinhos de altura, o Otávio é grande, gordão, não precisa de você pra se defender. Fala aí, gordão, você precisa desse anãozinho?
Se você não parar, eu vou na diretoria agora falar pra Carlota que você tá arrumando briga. Aí você vai ser suspenso e vai apanhar do seu pai que eu sei.
Quem é você pra falar de pai, moleque, seu pai é jardineiro, ele cuida de flor. Vai, pede pra ele umas rosas pra você dar pro Otávio. Você fica querendo defender ele tanto que só pode ser isso. Diz aí, gordão, esse anãozinho é seu namorado?
Pelo menos meu pai não bate em mim quando eu tiro nota vermelha. Quantas recuperações esse bimestre, Leozão?
Do lado direito de Igor, Otávio tirou as mãos dos bolsos da bermuda tactel e ajeitou os óculos. A camiseta do uniforme, apertada demais, suada demais, ganhou um pingo vermelho, muito mais vermelho do que seu rosto e pescoço. Encostada num poste, Beatriz, namoradinha de Leonardo e por quem Igor tinha uma queda, gritou apontando o dedo: ele tá sangrando, que nojo! Todos voltaram a atenção para Otávio, que esfregou o nariz com as mãos, se sujando ainda mais. Ali Igor viu uma expressão inédita no rosto do garoto: os olhos sem cílios de criança injuriada pela radioterapia se arderam, os lábios estavam intumescidos, os dentes castanholavam. A boca se abria como a de um peixe quase morto.
Não se mete nessas brigas, disse o pai de Igor certa vez ao ouvir sobre as provocações sofridas por Otávio, que moleque tem que aprender a se defender sozinho, ainda mais moleque grandão igual teu colega. Mas, pai, ele é bobão. Esses é que são um perigo, que um dia chegam armados na escola e atiram em todo mundo, tipo Estados Unidos, ouve o pai. Era o dia, Igor pensou na frente da escola, ainda impressionado com o semblante de Otávio.
Apreensivo com os próximos segundos, Igor olhou para Leonardo em busca da feição briguenta que tão bem conhecia. Para sua surpresa, e de todos que ali estavam, o provocador tinha recuado um ou dois passos e estava com as mãos levantadas, trêmulas, vacilando em frente ao peito. Beatriz parecia preocupada e Igor tirou algum prazer da cena toda. Otávio coçou a careca muito branca e, olhando para o chão, falou pela primeira vez:
Você acha que eu preciso de alguém pra me defender?
Calma aí, Tavinho. Eu tava só te enchendo, cara. O Igor que veio se intrometer à toa.
Não, você pediu, agora você vai ver se eu não sei brigar. Quer que eu prove? Quer que eu prove?
Igor sentiu um tímido entusiasmo ao ver Otávio se desvencilhar da mochila e a jogar para o lado. E por um segundo desejou que a mãe nunca chegasse. O entusiasmo desapareceu com os dois passos de Otávio em sua direção. Veio o primeiro soco; o medo se converteu em pavor com a queda na calçada. O pavor virou pânico quando, zonzo e incapaz de tirar Otávio de cima de si, Igor sentiu os ossos da cara latejando, a gengiva superior gritando um trec-splash bizarro, o gosto quente de sangue nos lábios rasgados. Cada segundo equivaleu a um minuto de propaganda antes de um episódio de desenho animado e Igor foi esmurrado até Otávio ser imobilizado por duas vigilantes que se apresentaram depois de Beatriz correr até o portão da escola e gritar: rápido, rápido, o gordo maluco da 6ª c vai matar o idiota!
Em pé, sufocado do vento forte, ou mais provavelmente da surra testemunhada, Leonardo evitava o olhar suplicante de Igor para não correr o risco de sentir culpa. Contraído, os olhos apertados como gambá-de-orelha-branca capturado, rompeu num choro convulso ao ver o Celta branco da mãe de Igor se aproximando, cena que seria lembrada pelos dois garotos em meio a risos, seis anos depois, durante seu discurso conjunto de oradores da turma de formandos.
De Otávio, expulso da escola, ninguém mais teve notícia.
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Mais sobre a obra
O desaparecimento dos objetos do apartamento de uma mulher, uma chuva misteriosa sobre um cemitério à beira da privatização, uma descoberta tardia em um orfanato de meninas, a luta pela sobrevivência de uma nova espécie, uma partida de dominó em Araraquara, o segredo de um casal de búfalos, os dias de um dragão na praça de uma pequena cidade, o testemunho de um anão de jardim, as relações entre divórcio, dentes e autoritarismo.
Esse apanhado serve como um desenho do caminho trilhado pelo novo livro de contos de André Balbo. Como escreve Cristhiano Aguiar na orelha, Sem os dentes da frente segue uma tradição insólita latino-americana, ficando, no campo das referências, entre um Julio Cortázar e uma Mariana Enriquez.
Fotografia: Nane