Leo de Sá é jornalista, escritor e ator. Formado pela Escola de Comunicações e Artes da USP e pela SP Escola de Teatro, desde 2015 atua entre o campo das artes e da comunicação. No teatro, é autor das peças “O Estado contra George em Alcolu” e “As colônias”, ambas publicadas pela Editora Efêmera, além de “O devir animal”, vencedora do Concurso Jovem Dramaturgo da Escola SESC do Rio de Janeiro. Também é autor de “Murro em ponta de faca”, livro de poesia publicado pela Editora Primata. Colabora regularmente com textos para a Plataforma Fleuma, espaço de curadoria sobre arte e cultura em geral.
O Parcêro agora tinha um carro, era um Fiesta que a mãe dele emprestava, o Daniel já era mais maconhêro que eu na época, e a Nanda curtia andar com a gente, todo mundo na PUC (menos o Daniel, que era da ECA), e naquêle dia eu tinha sido demitido do estágio, era quase fim de ano, a advogada veio me falar algum tipo de sinto muito e eu sinceramente nem liguei porque queria mesmo era sair de lá. O Parcêro e o Dani estavam armando um basquete no CERET de noite, e foi o tempo de chegar em casa depois de ter saído mais cedo que o comum, contar pro meu irmão que eu tinha sido demitido, meter a bermuda e o Parcêro passou de carro na porta de casa, e mostrou sua nova aquisição: um pipe de prata que parecia um objeto extraterrestre, eu nem sabia como usar! Mas a onda agora nem era mais marijuana, fazia um tempo já, foi o Dani quem mostrou pra gente a primeira vez: belalú o nome da parada, tipo um prensado, mas de uma flor roxa, dava uma brisa da hora e uma larica fenomenal depois.
Todo mundo tava na sêca, e alguém tinha que fazer a missão. A Nanda não manjava o rolê, o Dani apesar de saber onde vendia era cagão que só, e o Pacêro estava pilotando o carro, então logicamente sobrou pra mim que sempre me meti a besta pra fazer as coisas que os outros não queriam. Daí por isso que fui fazer Direito, talvez. Pensava ser o único capaz de sair das enrascadas.
O Prima era a biquêra mais perto onde vendia a parada. Depois eu descobriria outras, teria que descobrir outras, é claro, mas hoje já tem gente que entrega de carro no Anália Franco, você que é playboy não precisa passar pelo que eu passei. Eu sou playboy. Eu assumo. Uma arma apontada para mim eu nunca tinha estado defronte, ainda pensei, quando pisei na calçada para a vielinha de lama e barro e entulho, atolada de coisas derramadas na encosta entre o chão e a parede lateral de concreto. Cinquenta conto bem dobradinho no bolso, pra gente fazer a festa e ir jogar basquete no CERET felizão, e estrear o pipe de prata do Parcêro com a belalú.
O Prima ficava atrás de uma construção abandonada, era uma favelinha, e eu dei o primêro passo, o segundo, o tercêro, e no quarto fui puxado do revólver do meu imaginário prum revólver apontado para mim de verdade: puta susto! Era o revólver de um Policial Militar, agachado, na esquina entre a vielinha e a entrada da favela, o polícia apontava a arma para mim e eu ainda pude ver (por que não tinha visto antes?) o capô de uma viatura. Meu instinto falô alto: levantei a camisêta pra mostrar que não estava armado. Ele me fez sinal pra continuar caminhando, e eu fui.
Enfiei de vez o pé na lama, ainda pensei sem saber muito bem o que eu tava fazendo, o que tava acontecendo, e na hora lembrei da minha cartêra roubada no carnaval com todos os meus documentos dentro. Tô sem identidade, sou sem identidade, nulidade social na biquêra.
– Encosta ali na parede, playboy, faz favor…
Eram três meganhas. Um ôgro, protótipo de ser de ficção científico, meio sem pescôço, homem de academia. Usava óculos escuros, o cabelo besuntado de gel, e me mandou
tomar no cu sem eu saber porquê, a princípio. O segundo era nêgro e magro, mais velho, tinha um cabêlo grisalho, um ar mais complacente. Era o policial bom. O tercêro era eu.
Quando digo que o tercêro era eu, não tô dizendo que era parecido comigo, sei lá, era eu mesmo. Ele me olhou e eu olhei pra ele e na hora a gente se reconheceu, e entendeu que tava rolando alguma coisa bizarra. Ninguém notou que eu era o tercêro policial, ninguém percebeu, a não ser nós dois, que instintivamente disfarçamos.
Na parede, já rendidos, tinham uns quatro caras, tipos comuns de biquêra, homens comuns, gente que compra droga, consumidores. Lembro especificamente de um dêles, um careca de bigode e cavanhaque que usava uma pólo vermelha e uma corrente de prata de camelô. Este tinha uma pasta de couro debaixo do braço, meio office boy. Me marcou esse daí.
– Tá olhando o que, playboy?
Era o ôgro. Me mandou tomar no cu de novo. Tinha fixação com o cu, principalmente o dos outros. Veio comprar o que aqui?, e eu disse: nada, estou cortando caminho. Cê acha que eu sou trouxa?, perguntou, e eu quase cedi à gana de responder a verdade, mas fiquei mudo, porque diante de um revólver, meu chapa, eu não sou burro. Veio comprar o que aqui?, respondi, de novo: nada, estou cortando caminho, moro ali em cima. Ali em cima? Qual é o nome da rua? Domingos Santos Gomes, respondi. Onde fica essa rua? Fica ali em cima no Jardim Iguatemi, atrás daqueles predinhos, tá vendo? Cê acha que eu sou otário, moleque? Fala que nem homem. Emudeci.
Veio me revistar. Apalpou minhas pernas, minhas coxas, demorou na minha bunda, a barriga, o peito, enfiou as mãos nos bolsos, no direito encontrou um molho de chaves, no esquerdo meu Bilhete Único e a nota de cinquênta dobrada.
– Tá andando com o dinhêro da maconha certinho no bolso… Acha que eu sou trôxa, seu arrombado?
“Acho. Nem era maconha que eu ia comprar, otário. Quer dizer, não, não acho, seu coxinha. Quer dizer, não, não acho, seu polícia. Quer dizer: acho que você particularmente não é trôxa: você é um pé rapado inútil que recebe uma merreca do Estado pra disseminar um tipo de violência militar entre os civis. Você, no fundo, é um doente”. Foi tudo que eu imaginei dizer naquele momento. Mas fiquei em silêncio. E diante do meu silêncio, ele foi revirando o chão de terra, com um prazer nos olhos, tá ligado?, até achar um recipiente descartado por alguém há dias, e lá dentro colocar minhas nota de cinquênta reais e tocar fôgo nela. Respirei fundo. Féladaputa. O meganha ali na minha frente tocando fogo na minha grana! Depois, satisfeito, foi pegar alguma coisa na viatura.
Queimou minha grana e da galera ali, na minha frente, por motivo nenhum, porque até então eu sequer tinha encostado em alguma droga, até aquele momento eu só estava ali de passagem, a princípio, então não tinha muito do que ele me acusar. E outra: todo mundo sabia que o Prima ficava ali, era visível, não tinha essa de eles terem descoberto. O que tinha rolado era que alguém deixou de molhar a mão de alguém. Biquêra tomada. Biquêra ocupada sem comércio assustando a freguesia até que os impostos alternativos fossem quitados. E quanta grana há de se ter pra se sobreviver na burocracia, né não? Se até na biquêra a lei valia, desse jeito…
Mas ali, naquela hora, eu já tinha coisas demais pra me preocupar, que era o fato de que aquele era um dia que tinha tudo pra ser massa, eu tinha sido demitido, e foda-se, eu era playboy, eu ia curtir a noite com a galerinha, a gente ia fumar a belalú no pipe de prata do Parcêro e tudo ia ficar tudo na paz, aquele calor bom da noite do Tatuapé ao redor do parque, talvez a gente tomasse uma brêja, e depois ia matar aquela larica intensa comendo um temaki, e depois o Parcêro ia me deixar na porta de casa, êta dia bom, êta vida boa. Mas ali, naquele instante, eu não só tava prisionêro na biquêra tomada como eu tava rendido por mim mesmo em uma versão policial, um eu alternativo, um eu-polícia.
Que loucura pra resolver. Aos poucos a biquêra tomada virou péga trôxa, depois de mim vieram mais uns dois incautos consumidores do Prima que foram pêgos na mesma situation. Os côxas realmente não queriam nada além de dar uma prênsa, dar uma cansêra na gente, e fazer a gente ficar lá esperando um tempo, perder um tempo, perder um tempo de vida. Néssas, eu tentei estabelecer contato visual comigo mesmo, mas nisso o outro polícia, o nêgro, começou a me olhar desconfiado, e então veio ter comigo: disse que trabalhava há 12 anos na polícia, que sentia o chêro de um maconhêro de longe, que eu devia contar a verdade, que tava na cara que eu tinha ido lá comprar droga, que eu era um viciado, que eu devia procurar tratamento, que meus pais tinham vergonha de mim, doze anos de força tática, olha, ali, tá vendo o que tá escrito na porta da viatura, força tática! Você tá rindo, rapaz? Não senhor, você tá rindo rapaz? Enquanto ele me encarava, eu podia ver que eu tava de longe me observando intrigado, e era muito estranho me ver ali, um pouco distante de mim, vestindo aquela roupa cinza, aquele colete, com aquela pistola na cintura, logo eu, que sempre fora tão avesso a violência, eu tão da paz, me ver ali de policial era uma situação bizarra.
– O que cê tá olhando, seu arrombado?, disse o ôgro, me surpreendendo, e me deu um tapão na cara
Aí ardeu. Ardeu até na alma.
– Posso ver a identificação de vocês?
Outro tapão na cara. Pensei em dar a cartêrada, falar que eu era advogado, mas eu nem era, eu tava tão somente no segundo ano da faculdade, eu nem sabia muito bem o que fazer pra ser sincero além de sentir raiva. Lembro de ter pensado naquele momento pela primeira vez que “arma se combate com arma”, e eu ainda volto aqui pra dar um tiro na mão de cada um desses filhos da puta. Não na cara, nem no peito, que morte e gozo devem ter qualquer coisa em comum, e pra eles eu só quero sofrimento, cachorro! Um tiro na mão, pra nunca mais nenhum deles estapear a cara de ninguém, nem a minha, nem a de suas mulheres, nem a de ninguém. Ou um tiro no joelho, para que ficassem mancos e jamais pudessem correr novamente. Eu sei ser cruel na imaginação.
Um urubu passou no céu. O sol tava no fim pra iluminar o Prima, Jardim Primavera, e um urubu passou no céu. Ao nosso redor, somente os esquelêtos dos barracos abandonados e o chêro da lama que inundava os seus debaixos. Por um momento o sadismo dos gambés perdeu a graça até pra eles, e ficamos contemplando, eu e os outros que tavam rendidos comigo a inutilidade daquela cena. “Será que meu amigos já sacaram que eu rodei?”, pensei. Onde estariam? Teriam ido embora, já, no carro do Parcêro? O ôgro parecia consciente de sua burrice: pegou uma prancha em que estava presa uma folha de sulfite, rabiscou qualquer coisa, riscou o que escreveu, e me fez ficar na dúvida se ele de fato sabia ler e escrever. Mas acho que pra entrar na Polícia Militar precisa pelo menos assinar o próprio nome, né? Então talvez soubesse.
Lá no fundo, de longe, vi o menino chegando. Mais novo que eu, mais baixo, uns 16 anos no máximo, negro, cabelo quase raspado e descolorido. Magrinho bem, de regata laranja, bermuda, chinelos. Veio vindo calmamente até cruzar com seu olhar o vermelho da sirene da viatura. Eu pude sentir: o vermelho da sirene da viatura cruzando com seu olhar e um segundo depois ele correu. Correu com o instinto de quem não era playboy como eu, já sabia o que viria pela frente. Não corre, menino! Durou muito pouco, tudo, foram segundos. Eu olhei pro menino correndo, eu-polícia vi que Eu olhei, virei pro menino, mandei ele parar de correr, eu tava nervoso pra porra, de longe me vendo ganhei que era minha primêra vez na rua fardado, primêra operação, que eu-polícia não sabia nem podia manipular uma pistola, e aí mandei o menino parar, ele não parou, e atirei no menino. Antes do ôgro ter sacado sua presença e do nêgro ter corrido em seu encalço, eu-polícia já tinha atirado no moleque.
Todo mundo levou um susto com o tiro, foi treta demais, eu nunca tinha estado diante de uma arma antes, só naqueles momentos que eu tava preso na biquêra tomada eu já tinha me cagado de medo de quando o ôgro apontou pra mim na entrada, quando eu caí de gaiato naquela situation, êta pôrra, um tiro! Os caras encostados na parêde comigo também levaram um choque, um deles virou a cabeça pra baixo, um deu até um grito na hora do tiro.
Os coxas todos congelaram. Eu-polícia fiquei tremendo, sem entender o que tinha feito. O nêgro virou o corpo do menino, sentiu sua pulsação. Foi tudo muito rápido. Eu-polícia olhei pra mim encostado na parede, rendido, o ôgro veio gritar na minha orelha:
– Que merda você fez, filho da puta, que merda foi essa, quem vai resolver essa cagada agora, porra, não era pra atirar, caralho!
Antes de nada, do nada, assim, eu-polícia olhei pro ôgro, olhei pro corpo do menino, olhei pra mim, enfiei o cano da pistola na boca e disparei. Foi uma cena horrível, vi minha cabeça-de-polícia explodindo num baque seco uma pequena chuva de miolos e vi meu olho sair da órbita explodindo em gosma seca, um estampido, e no segundo seguinte meu corpo-de-polícia caia no chão da biquêra tomada.
– Ah, não, puta que me pariu… Quem vai limpar esta caralha, disse o ôgro.
O ôgro sem pescoço passou a mão na testa, suado, a noite caía, dois cadáveres na biquêra tomada, ele deu um cansaço, caçou no bolso um maço de Malboro Light. Tem isquêro?, ele perguntou pro PM nêgro, que olhou pra ele e em seguida vomitou, tem isquêro?, alguém tem isquêro?, ele dirigiu a pergunta pra gente, a gente na parede demorou pra entender que podia responder, tem isquêro?, ele perguntou ainda uma terceira vez, ao que um de nós disse que sim, e tirou um isquêro e deu pra ele do bolso, e ele disse: tão liberado, vai, vaza dessa merda, todo mundo, liberado, porra, circulando, circulando, circulando, ai meu cacete, quanta merda pra eu resolver…
E eu fui saindo assim meio incrédulo de ter visto tudo aquilo na biquêra tomada, era de noite já, eu não sabia nem pra onde ir o que fazer, eu só sei que corri, corri, corri, tentando esquecer a imagem de ter visto eu matando uma criança e depois ver-me a mim de fora matando a mim mesmo, eu corri corri corri não consegui encontrar o carro do Parcêro nem naquele dia nem nunca mais, nunca mais vi aquelas pessoas nem nunca mais fui naquela biquêra do Prima, hoje tenho um delivery.
Foto de Luísa Machado.