Felipe Ribeiro Pires estuda arquitetura, mas também arquiteta palavras. Entusiasta da prosa de ficção, acredita na potência da literatura como uma forma de multiplicar sua própria voz e ser outro.
Em uma noite fresca de dezembro (quente, mas perturbada por uma brisa úmida), precedida por um dia ainda mais quente, tem vontade de sair à rua, primeiro com ar despreocupado, depois com ar raivoso, conforme cresce a madrugada, mas, por algum motivo, permanece em casa e dorme e o sono é leve e nervoso: por uma janela aberta o vento entra no quarto e cai sobre o corpo quase nu, evaporando a camada de suor aderida à pele e provocando um estranho frio, que percorre os músculos como uma corrente elétrica, e os sonhos, breves, cômicos e apaixonados, se misturam com as imagens do quarto na penumbra, como se a noite, essa noite de dezembro, fosse menos real que as figuras do sonho. Acorda às 10:00 com o sol ardente inundando o quarto, vai até o chuveiro, despeja um jato de água fria sobre o corpo, que se enrijece e se relaxa, entre o preguiçoso e o enérgico. Volta ao quarto, deixando um rastro de gotas d’água pelo chão e levando nos ombros uma toalha, para frente ao espelho e começa a se enxugar, olhando fixamente para os próprios olhos refletidos, como se olhasse para uma pintura que se move. Percorre o corpo com a toalha, desenha a curva quadrada e máscula dos ombros, os braços magros, o torço rígido, as ancas angulosas, que deslizam para a direita e para a esquerda, quando para por um momento e se encara hesitante. Depois joga a toalha sobre os cabelos cacheados e requebra todo o corpo e gira a cabeça e o mundo se torna um borrão e então desliza a toalha pelo rosto, revelando com jeito de odalisca os olhos de antílope, o nariz sutil, os lábios carnudos de forma arredondada. Então abre o armário e percorre com o indicador os cabides e escolhe com precisão o que vestir naquele dia de folga. Não demora, não hesita: camisa manga curta, branca e com botão de pérola, calça flare verde de cintura alta.
Vai à mesinha de cabeceira ao lado da cama, abre a gaveta, seleciona brincos, colares, braceletes e anéis (os escolhe rápida, porém meticulosamente). Senta na cama e encara os objetos sobre a mesa: um abajurzinho; dois frascos de perfume; um anel prateado; uma edição de As Ondas, dada por Sérgio; e um porta retrato que exibe uma folha arrancada de um livro na qual, no meio da página em prosa, se destacam com caneta grifa texto, dois versos dizendo:
“Não temas mais o sol ardente
Nem do inverno a gélida fúria”
Veste os sapatos. Sai, tranca a porta e deixa a chave sob o tapete da entrada. Caso Nina resolva voltar.
Uma mão imóvel decepada, ostentando um anel, um corpo só torso fincado a uma haste, como um estandarte, exibindo um vestido de seda pura, um vendedor de compleição forte, barba e olhar compenetrado e o vidro da vitrine olhando para a rua. As vitrines, resquícios da época em que as pessoas caminhavam ao monte pelas ruas e que todos vibravam e palpitavam em uma mesma frequência, e paravam e observavam, por trás do vidro os signos do seu desejo. Como Clarissa Dalloway, que lhe mostrou Sérgio, parada em frente à vitrine de uma livraria, lendo os dois versos de Shakespeare (de Cymbeline, dizia Sérgio), para depois seguir no fluxo contínuo da Bond Street. Em seus dias de folga, sai à rua (e aqui não havia Clarissa Dalloway, não havia Bond Street, não havia multidão nem vibração comum), procurando algo por trás da vitrine. Vagar, se perder controladamente, deixar se surpreender pelo acaso, manifesto nos signos expostos na vitrine. Todos aqui vagam, buscando algo. Os olhos do vendedor convidam a entrar e a experimentar o anel.
O sol queima sua pele, fica impaciente, e é como se precisasse entrar para se proteger. Quando entra, o vendedor se aproxima, pergunta se quer algo. Ah, sim, o anel da vitrine. Tira os anéis que usava, coloca-os no bolso, experimenta o que o vendedor traz , frente a um espelho, ergue a mão na altura do rosto, com os dedos bem abertos, e depois colocá-a à altura da coxa, deixando a calça verde como pano de fundo para o anel que brilha solitário em seu dedo ossudo. O vendedor espera pacientemente, observando. Tem olhos licenciosos? Insinua alguma coisa? Às vezes sorri, com o canto da boca. Joga as ancas ossudas para o lado, com requebro de mulher, faz as largas barras da calça dançarem, e sorri para ele, retribuindo. Depois diz que vai levar. Vão ao caixa, pergunta o nome do moço, que coloca o anel em uma caixinha, a embrulha em papel de seda e depois a põe em uma sacola rosa. “É Fernando. É um presente?”, ”Sim, para mim”. E ri com delicadeza. Toma um cartão de papel sobre a mesa, anota seu número de telefone e entrega a Fernando, sorrindo novamente. “E o seu nome?”. Se cala, aponta para o papel e deixa a loja, andando, balançando os quadris, de um lado pro outro.
A praça é como um bosque, suas sombras são uma penumbra clara, de suas árvores vazam os sons de cem mil cigarras em uníssono, e é possível sentar em um banco, sentir a atmosfera um milésimo mais fresca que a da rua, ver um mendigo passar, cochichando algo consigo mesmo, um pedestre com ar solitário, uma pomba pousando sobre uma poça d’água. Parece-lhe melancólico, mas não sabe dizer o porquê.
O estômago ronca e é tempo para um café. Olha para o relógio, ainda há muito tempo, e Sérgio sempre se atrasa para o almoço. A padaria tem aparência grosseira. Suas paredes são amareladas, nos balcões estufas exibem pães e velhos de olhar melancólico tomam café sentados. Um café. O homem por trás do balcão, é velho e tem um olhar repulsivo, um olhar odioso. Fala com impaciência, quase cospe em sua xícara. É preciso engolir a raiva (mas nunca aquietá-la; sua raiva é necessária para seguir, lembra-se) e sair. O café é amargo. Mais açúcar. O velho entrega o açucareiro com ódio, poderia lançá-lo contra a sua cabeça. O velho pensa consigo “aberração” e é preciso deixar a padaria com o máximo de decência. Se dirige ao caixa para pagar. Franze as sobrancelhas, imprime firmeza no olhar, abre a carteira e entrega o dinheiro. Pose de machão. A moça do caixa ri desconcertada e em seu olhar se mistura a curiosidade e uma pontada de desejo (de uma forma obscura e inimaginável). Estende o troco com um sorriso indeciso. Devolve o olhar com seriedade, mas sorri, com ar licencioso. Ela tem o cabelo preso em um rabo de cavalo rígido, usa brincos de argola, batom vermelho, morde a caneta inocentemente. Poderia beijá-la.
Na entrada do restaurante pede a mesa, a mais do fundo, que Sérgio gosta. Está atrasado. Chega com o mesmo papo de sempre. O Rodrigo enrolou para sair de casa. Viajou para ver a mãe. Eu não quis ir. Você sabe, não? Ela até aceita que o Rodrigo seja gay, mas eu… eu ela nunca aceitou. E estamos muito velhos para esse tipo de briga, como se fossemos adolescentes namorando… Já somos casados. Mas, sabe, disse que ia ficar em casa e precisei esperar ele sair, e gosto sempre de esperar ainda mais uma meia hora, caso ele esqueça alguma coisa e tenha que voltar, porque ele sempre faz isso… E não pode saber de nada. Mas só volta amanhã. Temos a casa só para nós hoje. Depois o almoço, duas taças de vinho e o de sempre: a universidade, a literatura inglesa, o teatro elisabetano, Virginia Woolf, Shakespeare, ou Pope, ou Milton e porque nunca encenam Cymbeline em São Paulo? É uma bela peça.
No carro de Sérgio, rumo a seu apartamento, encosta a testa no vidro e vê a cidade girar com rapidez. O sol do lado de fora queima com fúria de verão e as pessoas, no fim do ano, parecem estar sempre a ponto de surtar, à espera do anjo exterminador. Circula pela cidade, busca em todas as vitrines o nome do que deseja, os versos que um dia explicarão tudo, o grande amor, o antídoto para a raiva. Circula, dorme, acorda, trabalha, deseja, ama, transa, compra, vende, vive e um dia morrerá pela cidade. Às vezes o dia parece muito longo e solitário, mas o tempo, ou a vida, escorre rápido em meses e anos. Sem que perceba, chegam ao apartamento de Sérgio, estacionam o carro, sobem o elevador.
Sérgio está sentado na cadeira frente à cama. Observa a figura deitada, nua. Ao lado do corpo a camisa branca e a calça verde e, enfeitando a pele clara, brincos, colares e braceletes. Um lençol cobre as partes e uma réstia de luz solar cai sobre o peito.
“Não temas mais o sol ardente
Nem do inverno a gélida fúria”
Recita Sérgio, e vê naquele corpo que une os atributos do feminino e do masculino uma divindade vulnerável e indefesa, sozinha no mundo, circulando pela cidade, sem temer o sol, nem o frio, mas talvez temendo a solidão e o desamor. Depois Sérgio pensa em Rodrigo, pensa no casamento enfraquecido, no corpo envelhecendo. Pensa na vitalidade da figura, que ama e que beija e que adora, e que descansa dormindo profundamente sobre a cama. Sérgio nunca foi capaz de compreender aquela figura.
Quando Sérgio ama, beija e sente, conjura uma série de conceitos, de ideias, de poemas, mas esquece da realidade imediata do corpo, que arde ali na cama. Sérgio lhe cansa, é um amante egoísta, um homem arruinado e neurótico, que deseja às escondidas. Deseja romper com Sérgio, deseja nunca mais vê-lo, mas se cala e o ama como pode, talvez por resignação. É a ordem do dia.
“Vai fazer alguma coisa essa noite?” Pergunta Sérgio.
“Vou a uma festa”
“De quem?”
“Não sei, me convidaram”
“Uma perfeita Clarissa Dalloway, sempre esperando sua festa”
Usa kimono branco, calças largas de barras curtas, salto alto. No peito semi-exposto uma grande medalha dourada. Olhos circulam, corpos circulam, pessoas circulam, orbitam, observam, tocam, conversam, alguns examinam com curiosidade, outros com amizade libidinosa. Todos bebem, alguns fumam e também tem os que se drogam. Lembra-se do final de Mrs Dalloway? Um livro inteiro esperando uma festinha que não dura cinco páginas. Encosta na janela, bebe, fuma um cigarro, se entendia. A noite de dezembro, a madrugada crescendo, mais um ano que se acaba, e depois outro e depois outro, tudo muda e nada muda, as vitrines estão sempre vazias. Alguém se aproxima, conversam, fumam. É uma moça bonita. Se beijam. Faz pose de homem viril. É impressionante sua habilidade para trocar de figurino apenas trocando o gesto. O dia de folga já quase ao fim, e amanhã ninguém sabe o que será.
Manhã, sol, outro dia, a mesma cama, a mesma solidão.
O telefone toca.
“Quem fala?”
“Fernando. Achei melhor ligar, do que mandar mensagem…”
“Ah, sim”, desconcertado, desconcertada
“Angél, seu nome, não?”
Foto de Luísa Machado.