1.
Havia uma porta azul à esquerda da escadinha que levava às salas de aula da catequese, na paróquia da Igreja de São Judas Tadeu. Azul-bebê, da mesma cor que as mesas e cadeiras e bancos e batentes e alguns pisos da escola; da mesma cor que meu uniforme; da mesma cor que o céu, dependendo do dia; da mesma cor que o algodão doce que o Tio vendia na rua de cima; da mesma cor que a capa de Lolita. Era uma porta de madeira que parecia pesada, embora pequena. Todo sábado, às 9h e às 12h30, eu passava por essa porta, e olhava para essa porta, às vezes de relance, às vezes demoradamente. É a casa do Padre; é a cozinha da cantina; é um armário; é o esconderijo de Jesus. Nunca perguntei às Tias o que a porta trancava, porque sabia que elas mentiriam. Tentávamos, eu e X, adivinhar, sem impor quaisquer limites às nossas ideias, meio felizes em nossa ignorância, mas torcendo para que um dia, por benevolência divina, um presente por nosso bom comportamento, um atestado de existência, ou por pura e mundana distração da Supervisora, a flagrássemos aberta.
2.
Havia um painel de azulejos pintados à mão nos fundos do altar, reconstruindo a Última Ceia em azul. Azul-marinho, do mesmo estilo que os azulejos da Fonte Judith; do mesmo estilo que os azulejos do painel do Dedo de Deus num posto à entrada da cidade de Teresópolis; do mesmo estilo que os azulejos portugueses da cozinha da casa de Vó Lúcia. Passava a maior parte da missa escrutando Bartolomeu, Tiago, André, Judas Mau, Pedro, João, Jesus, Tomé, Tiago de novo, Felipe, Mateus, Judas Bom e Simão, especialmente quando o sermão do Padre se estendia por mais de dez minutos. O artista pintara-os, todos, cabeçudos e então eu até acreditava que tinha algum propósito, nem que fosse o de tornar a cena mais amigável, embora encimada por uma reprodução exageradamente grande e fidedigna de Cristo Crucificado. Na missa de Páscoa do nosso primeiro ano de catequese, eu e X contamos os azulejos, um a um, mas chegamos a resultados diferentes — ela, pra menos; eu, pra mais.
3.
Havia doze vitrais na igreja, que cobriam a história do nascimento, morte e ressurreição de Jesus em cenas sucintas e predominantemente azuis. Azul-cobalto, como o olho turco no chaveiro de Mamãe; como o colar de pedra falsa de Vó Filipa; como a capa do livro de Ciências do segundo semestre da 4ª série; como a tinta guache que X jogou na minha blusa porque eu não quis emprestar a minha Bíblia de bolso. O meu vitral favorito ficava bem à direita do altar e era Jesus no colo de Maria, moribundo, a cabeça caída para trás e os olhos revirados, como se absurdamente entediado. Me fazia rir. Era um Jesus para cada vitral e esse era o Jesus De Saco Cheio, batizado por X. Dois vitrais adiante, ficava o Jesus De Banho Tomado, o favorito de X, e batizado por mim, mas que para ela tinha outro nome. Sempre que entrávamos na igreja, se não pudéssemos percorrer toda a narrativa, no mínimo parávamos diante desses dois, primeiro o meu e depois o dela, e eu me divertia e ela suspirava, antes de nos sentarmos o mais à frente possível do altar.
4.
Havia uma imagem de Nossa Senhora Auxiliadora guardada na ante-sala da nossa sala de aula na catequese, coberta de poeira branca e pelo seu manto azul. Azul-anil, que uma das estolas do Padre copia; que meu porta-Bíblia artesanal copiava; que o tecido do manto no qual me puseram para a festa de Natal falhou em copiar. Nossa Senhora Auxiliadora é a que segura Jesus Bebê no colo, dum jeito impossível de segurar qualquer bebê. Juntavam pó, além dela, uma TV de tubo de 49 polegadas, um abajur sem cúpula, 24 volumes duma enciclopédia já antiga à época, cadeiras e mesas inutilizadas, molduras muito grandes e muito pequenas, um espelho quebrado, potes de plástico, dois pares de tênis de corrida, uma panela de pressão, um cabide de pé de madeira, uma fantasia de Papai Noel. Por motivo que me escapa, uma das Tias pedira para que eu e X verificássemos se o cajado de Moisés estava esquecido ali. Não estava. Nessa mesma sala, eu e X demos nossos primeiros beijos. Ela beijou o menino que eu gostava e eu beijei o menino que ela gostava. Só me lembro do nome do que eu beijei, era Rafael.
5.
Havia um banheiro debaixo das escadas que levavam às salas de aula da catequese, minimamente funcional e espaçoso, e azul. Azul-turquesa, da mesma cor que os ladrilhos da piscina da casa de X; da mesma cor que o biquíni que X usava quando tentou me afogar pela primeira vez; da mesma cor que o rabo da Barbie Sereia; da mesma cor que a bermuda favorita de Papai; da mesma cor que a bebida que provocou meu primeiro PT. Uma ou duas semanas antes da nossa primeira comunhão, X se enfiou no banheiro comigo e, aos prantos, disse que estava apaixonada por Jesus. O período de confissão já havia passado e ela tinha medo de morrer se aceitasse a hóstia no dia da cerimônia guardando um segredo, um pecado, como aquele. Eu já achava que, pelo contrário, quanto mais apaixonada fosse por Jesus, mais merecedora da hóstia ela seria. Disse que freiras nada mais eram do que as esposas terrenas de Jesus. Isso a reconfortou e enfureceu. Ela estudava em um colégio de freiras.
6.
Havia um cartaz anti-aborto perpetuamente colado no quadro de avisos à entrada da igreja, elucidando sobre todas as formas terríveis pelas quais um bebê pode ser assassinado, em letras azuis. Azul-petróleo, como as janelas e a porta de entrada e os guarda-corpos da minha casa; como as paredes dos quartos do hospital onde fizeram minha esplenectomia; como a capa do primeiro caderno que fiz de diário; como o jogo lençol-e-fronha da cama de Matheus, o segundo menino que eu gostei. Tem muitos jeitos de matar um bebê, mas nenhum envolve chorar até que ele morra. Às vezes, eu e X chegávamos tão cedo pra missa que ficávamos ali, instaladas junto ao quadro, brincando de jogo da memória com as ilustrações do cartaz. Da esquerda para a direita: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8. Número 7. Aspiração. Quando muito entediadas, incluíamos a descrição, para dificultar. Decoramos o cartaz antes de decorarmos o Credo.
7.
Havia, enfim, a lista dos sete pecados capitais e havia a lista dos dez mandamentos, uma de cada lado do quadro negro, em cartolinas azuis. Azul-celeste, que as roupinhas de anjo copiavam; que a capa do meu caderno copiava; que o giz de cera da Tia copiava; que tenta copiar o céu. Antes da primeira eucaristia, eu confessei todos os meus pecados ao Padre, e eram quatro: Gula, Preguiça, Inveja e Avareza. Os de X foram cinco, mais o que ela não confessou. Eu tive de rezar dez ave-marias e um pai-nosso. Ela rezou seis ave-marias e um pai-nosso. Achei injusto. Ela disse que meus pecados, embora fossem menos pecados, eram piores que os dela. Me perguntei se o Padre teria percebido que eu não era apaixonada por Jesus, e X sim, e quem iria morrer com a hóstia na boca seria eu. Li os Salmos na cerimônia. Após a comunhão, ajoelhei para rezar outras dez ave-marias e um pai-nosso. Evitei, até, olhar para Jesus De Saco Cheio. Eu não morri nesse dia, nem X. Finda a celebração, nunca mais nos vimos.
Anna Carolina Rizzon nasceu no Rio de Janeiro, cresceu em Teresópolis e se exilou em São Paulo. É incompetente em diversos segmentos artísticos, mas insiste mesmo assim. Especialmente na escrita. Colabora com a Fazia Poesia e a Revista Úrsula e posta aleatoriedades nos blogs vOltas e h a v e r e s.