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diluvianos

por Marcus Couto
pro-site

Os dois estavam deitados no sofá, um para cada lado, quando a chuva começou. Primeiro foi leve, um chuvisco daqueles que nos ajudam a respirar melhor, a aplacar o calor dos primeiros meses do ano. Mas logo transformou-se em pé d’água, depois de alguns dias ininterruptos. E não parou mais. Choveu assim por semanas, inicialmente, e depois por meses, e a inundação lá embaixo que já tomava a rua toda e as calçadas começou a subir e a avançar de um jeito assustador, até encher o térreo do prédio onde eles moravam. Não tinham mais porteiro pois esse já havia se mandado faz tempo, quando a guarita e a privada dela tinham transbordado da enxurrada vinda por baixo, do esgoto em tormenta. Os ratões desfilavam por sobre tábuas flutuantes como náufragos heróicos em busca de continentes perdidos – e secos. 

Suzana se preocupou, e falou a André que assim eles ficariam sem comida em pouco tempo, pois nem delivery estava entregando mais, ainda que alguns mercados inovadores tivessem lançado seus próprios serviços de despacho com caiaques. Como sempre, aqueles meninos desempregados tinham que por nas costas as caixas enormes, se equilibravam com o remo pelos veios de fluido escuro e malcheiroso, e ganhavam um troco com as gorjetas do aplicativo, rezando para não contrair leptospirose. O capitalismo hi-tech era à prova d’água. 

André, no entanto, disse para ela sossegar que logo passava aquilo. Em algumas semanas, a maré ia baixar e tudo voltava ao normal. 

Acontece que não. 

Choveu ainda mais e logo a copa da enchente batia no primeiro andar, que os vizinhos tiveram que sair. Fizeram até festa de despedida e depois singraram para longe em um barquinho alugado de carreto. Iam para um bairro mais no alto que ainda estava seco. Mas André teimava. Tinha ainda muito pacote de bolacha maisena e macarrão gravatinha. O inverno seco vinha chegando, mas não chegou, ou pelo menos se atrasou muito, pois as estações estavam todas enlouquecidas. 

Finalmente, Suzana se fartou. Falou ao namorado que eles precisavam ir embora, porque a chuva não ia parar. Do lado de fora, a cortina de umidade não cessava, raios cortavam o céu escabroso, e os trovões se ouviam tão alto que faziam os vidros das janelas sacudirem e até calavam a voz do Faustão, aos domingos. Coisa forte. Mas André apontava para o pacote de bolachas e sorria com a boca suja de farelos. Não ia arredar o pé, não. Suzana, então, disse adeus. André não acreditou, e eles brigaram. O que ela ia fazer sem ele? Depois de tantos anos. Ela argumentou que estava cansada, já estava fazendo mofo debaixo dos seus braços de tanta água que pingava das infiltrações. Pegou um tampo de madeira da mesa que ela tinha comprado, nem se deu ao trabalho de beijá-lo de tchau. Atirou a prancha na água que já estava a poucos metros abaixo do seu nível e foi atrás, de guarda-chuva. Primeiro pisou no parapeito, um pouco abaixo, e aí foi só um pulinho para pousar em segurança na prancha flutuante. André ficou ainda xingando, enquanto ela remava para longe, e até atirou um biscoito de maisena nela, o safado. Suzana nem viu, não olhou. Foi remando com a mão, mas principalmente se deixou levar, escorregando, seguindo o fluxo da correnteza brava que parecia guiá-la para um lugar mais seguro do que onde só se falava naquilo que nunca existia. 


Marcus Couto é jornalista, escritor. Mora em São Paulo. Vive entre a distopia existencialista e a poesia para acalmar os nervos. 

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