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dois movimentos e um corpo

por Douglas Laurindo
foto de maria cecilia chaves machado para conto de douglas laurindo

Douglas Laurindo. Mora em Manaus. Graduando em Letras – Língua e Literatura Portuguesa (UFAM). Além de atuar como professor, é pesquisador no âmbito literário. Escreve contos e poemas.


A pastora Zumira, da igreja Irmãos Sob Santificação, era clara quanta à sua indiferença para com o menino Eraoco. Das suas façanhas enquanto megera evangelizadora, pregava discursos concomitantes com atitudes ínfimas e cruéis. Durante as convocações semanais na pequena comunidade à margem da praia da Matrinxã, lançava um olhar excludente e proferia, de modo sempre rasteiro, falas que o faziam temer uma possibilidade de insinuação do seu verdadeiro eu. A ratazana de saia e às mãos a cartilha de evangelização infantil o observava pessoalmente. De certo, as ameaças e castigos roubaram a voz da criança à medida que sua inserção na paróquia se fazia mais acessível e necessária aos olhos dos tios. Viam-no pastor, um espírito de bem e puro, à semelhança do que vendia Zumira. Não sabiam, no entanto, que suas mãos, além de folhear as páginas dos cultos aos domingos, eram também instrumentos de beliscões, cascudos duros como pedras e furos com a ponta do lápis nas costas toda vez que se negava a repetir uma passagem de Messias ungido. Dizia: o salvador prometido vive em mim, vive em nós, vive na nossa fé proferida!, sempre se colocando à altura da criança e acrescentando: porque o contrário são as labaredas do inferno engolindo corpos sujos e impuros de essência, e tu sabes a que me refiro… O diabo, repetiria a menina depois, quando em contato às literaturas universais, lamentou o vazio de seu inferno, já que todos os demônios estiveram naquela comunidade. 

Só pôde sentir o medo e ímpetos de morte quando a chama daquele isqueiro queimou os fios do cabelo naquela tarde fria e vazia, que mesmo se debatendo contra o castigo por tê-la cuspido na frente dos meninos e meninas em formação, não escapou de uma queimadura vermelha, viva e corrosiva abaixo minimamente do umbigo. Os gritos fizeram os passarinhos da mangueira atrás da igreja saltar em cantos assustados. As demais ajoelhavam-se diante daqueles bancos de madeira e com altares sujos, fingiam, chorosas, orar mais uma vez. Uma criança é corpo e alma de outra que ali perto chora. Os pais colhiam no roçado; na terra religiosa, por outro lado, uma pastora, ao contrário de cuidar da ovelha, bebia-se naquela tortura que seria, a seu ver, a subversão logística e santíssima de uma alma torta, afeminada e contagiosa. Com o punhal de retalhar os canteiros de pimenta, apalpou uma mecha daquele cabelo longo como bordado barroco por sobre os ombros, vislumbrando ainda a quantidade que o deixaria desproporcional, e tirou fora, demoníaca. Não apenas chutou o cachorrinho do infante em confrontos inúteis, mas também o lançou à terra prometida, verbalizando, soberba: bicha viscosa!, e entrou. Aquele quintal, na visão da planta queimada e sem uma das pétalas, era o purgatório.

Escondeu o registro. O buraco no corpo foi consertado com retalhos medicinais que presumia ajudar. O rombo da alma é que não se preenchia nem com as mais altas castanheiras. Mentiu ter sido Damiana, coleguinha do coral, a equívoca artista. Desde aquele dia fechou-se e bebia as próprias lágrimas como lembrança de uma dor iminente se ousasse narrar. O abismo ao qual fora jogado servia a tristeza de nunca chegar ao chão e poder vestir a si mesma.

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