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Enquanto chove lá dentro

por Gabriel Cruz Lima
in the mood for love wong kar wai

Amanhã eu acordei com o desânimo. Assim se mostra uma situação que é perene. Não durmo iludido que me cansa somente. A dor é tua também.

Dessa vez me tomaram o sono. Tem um vento lá fora, que vai dar nas janelas de outros apartamentos, igualmente contíguos, que não me diz nada. Não sopra tristeza, fúria. Estou respirando esse trovão como quem se conforma.

Coloco um balde em baixo do assoalho de casa, delirei que ganharia o Nobel. Gestei dentro de um mim um discurso de agradecimento aos meus pais, tomando a palavra em nome do legado, me abrindo para eternizar a serra. Pensei no Ricardo Almeida e no Alex Atala, na minha amizade com o Neymar. Estou grávido de um aborto. Nunca serei tudo aquilo que me sonhei um dia. A chuva cai à revelia do mundo.

Famélicos da terra, como é chata nossa sensibilidade. A foice, o martelo, e a vontade que eu tenho de me enforcar num pé de alface. Eu queria combinar essa dor particular e geral de uma maneira que dissesse, mas tenho uma casa, uma cama. Estou de muitas maneiras doente e muitas delas me escapam. Nunca serei aquilo que me sonhei um dia, porque só me é permitido cunhar com C capital.

Assim, quando me acorda a chuva, existe uma inadequação física entre estar presente no mundo da maneira como se gostaria e da maneira como se é. Minha testa sua enquanto permaneço incrustado num pesadelo, onde se esconde o sucesso. Fico assim com as costas arqueadas e o peito renhido. Só me saem algumas palavras chorosas e essa responsabilidade não é só minha.

Mas não deixa de ser, é claro. Escolhi também a besteirinha. O desvio. Quando me era possível transpirar o desejo preferi outra coisa. A gente sonha, mas quando bate o pé e afirma esse tal sonho a coisa muda de figura. A partir daí deverá surgir uma determinação inabalável. Uma abelha passou na minha cabeça. Fui tomar um sorvete enquanto já morri.

Está chovendo dentro de casa agora. De maneira que eu tenho que colocar uma cadeira na porta. Mas é só charme mesmo, o caudal virá, queira ou não. E quando ouço a enxurrada, ela me diz que do décimo andar fui roubado. Significa assim que outros nove andares vieram primeiro. Será que aviso o porteiro e peço para deixar a chave da minha arca? E ele seria capaz de entender que quero salvar nossa espécie do esquecimento? Avisar alguém de alguma coisa, quando virei esse profeta? Essas mãos me autorizam historicamente a ditar o apocalipse, também. Sociólogos, médicos, advogados, jornalistas. Existe um alarme que nos tomou, dessa vez, a água bateu na bunda. Meninos adoecemos. E toca terapia, remédio. Tudo pela certeza de que não existem conquistas e o mundo já não está posto da maneira como costumava ser. Nem para mim, que tenho as mãos brancas de sangue.

Tem gente que acredita que é possível viver nas brechas, com um guarda chuva sentado na sala de estar sem telhado. Trabalhar com alguma adjacência, alguma coisa que ao mesmo tempo compita e concorra com o verdadeiro ânimo. É o que dá para ser feito, pois o mundo está assim posto. Mesmo que seja grande seu suporte, no fim, você sabe que a solidez foi desfeita pela torrente.

A casa já foi tomada pela tempestade. Tenho água até o pescoço, os olhos abertos, e pouca vontade de dizer. Existe um estado de coisas que inunda a vida. Não escapamos da enxurrada.


Gabriel Cruz Lima é estudante de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e graduando em letras pela Universidade de São Paulo. Escreve contos poeticamente escatológicos aos fins de semana.

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