Lara Rodrigues é mineira, de Uberlândia. Graduada em Letras pela Universidade Federal de Uberlândia, e mestre em Estudos Literários pela mesma instituição. Em suas pesquisas, a literatura, o cinema e a psicanálise se sobressaem. Embora seja ainda tímida no fazer literário, no momento, está (ar)riscando na escrita.
Estou no meio agora mas comecei pelo fim. E por isso estou tão cansada. Exausta, na verdade. Deitada de barriga para cima, observo o teto do apartamento alugado. Nenhuma mancha. O sofá é duro. Comprei de segunda mão. Mas tá valendo, afinal, sou jovem, tem muita casa pra mobiliar ainda. Minhas melhores amigas, um casal, moram ao lado. Acabaram de mandar mensagem. Estão contando do sabão em pó que descobriram, bem mais barato que o que utilizamos comumente, e que deixa a casa inteira cheirosa quando lavam roupa. Sorrio. Cansada.
Me lembro de quando saí de casa. Minha mãe questionou se eu estava saindo para ter a adolescência impossível . “Você agora tá indo pintar cabelo, fazer tatuagens, colocar piercing? Só promete uma coisa: não use drogas”. Bem, não pintei o cabelo, ao contrário, hoje ele não tem cor nenhuma. Não coloquei nenhum piercing. Fiz duas tatuagens, porém. E uso drogas: semana passada o psiquiatra aumentou a dose do remédio de 50mg para 100mg – desculpa, mãe. Me mudei com o meu amigo de infância, faz três anos já. E somos dois jovens muito vida louca, aproveitando a juventude, saindo de madrugada para comprar brócolis e fazer lasanha vegetariana – como meus pais previram.
Na parede da cozinha anotamos as contas. Aluguel, condomínio, energia, os gastos de cartão de crédito – porque dividimos tudo, então temos que ter organização. No fim da lista tem a mensalidade da “Rebecca”. É o codinome que arranjamos para o corre – e o que mais se aproxima de “beck”. No entanto, ainda não pedimos do traficante, porque não sabemos como falar com ele. Daí compro de segunda mão também. Minha amiga, Bianca, encomendava pra gente, mas agora ela começou a plantar – e é muito difícil largar a flor pra voltar pro prensado – muito mais limpa, entra, praticamente, no conceito de “vegano”. Faz um tempão que não fumamos. Meu amigo e eu entramos num detox. Ele quer parar de beber também e eu estou com as medicações todas.
Meu namoro é normal. Normal demais, na verdade. Não somos de fazer declarações – bem, ela não é, acha desconfortável – também não sente saudade. A gente fica um tempão sem se ver. Preciso sempre de um drama para nos vermos. Isso me deixa triste. Um monte de coisa nessa relação me deixa triste. É um relacionamento sem mancha como o branco do teto e, talvez, vegano demais – como o corre da flor, mas dizem que é melhor pra saúde.
No meio do ano minha namorada e eu terminamos o namoro. Daí tive um caso com uma menina com quem conversava antes de começar a namorar. Foi intenso. Tudo intenso. No nosso primeiro encontro, a menina derrubou vinho no sofá – ela estava nervosa. Me contou que abriu o relacionamento por minha causa. Que estava “encantada”. Eu fiquei encantada também. Uma mina dessas derrubando vinho por minha causa! O sexo foi intenso, não foi vegano, e senti que assim dava pra parar, finalmente, com o remédio do psiquiatra.
Só que eu não aguentei. Um mês depois voltei com a minha namorada. Eu não sei viver as intensidades. Só de imaginar uma vida em que sou jovem ainda, que alguém realmente me deseja, me admira, que quer estar comigo. Não. Eu não consigo. Eu sou vegana. Eu quero tudo limpo. Tudo o mais branco possível. A casa arrumadinha. Os livros sem pó. A namorada noutro canto do país, gostando um pouquinho de mim e à distância. Eu não aguento não ser cansada. Eu estou no meio mas comecei pelo fim. Quando comecei, meus avôs estavam morrendo, ficaram muitos anos morrendo. Minha casa era cheia. Muita treta, muito barulho. Fiquei cansada.
Hoje eu quero só silêncio. O silêncio que começou quando, 9 anos depois dos médicos anunciarem que minha avó não duraria uma semana, ela, finalmente, morreu. Pediu que eu estivesse ao seu lado, me pediu permissão pra morrer – e eu deixei, eu também não aguentava mais viver. E foi assim. Logo depois fui para a faculdade, o que me permitiu ser um robô. Um robozinho cheio de ansiedade, estresse, alergias e outros sintomas histéricos. Hoje as coisas estão nos conformes. Faço análise, tratamento com antidepressivo e ansiolítico, sou vegana, o resto é o resto.
E vou vivendo a vida assim.
Espero, todos os dias, o cansaço ir embora. E, ansiosa, aguardo o dia em que vou levantar com fome de viver. Marcarei uma cachoeira com os amigos – e realmente, quando chegar a data do rolê, vou. Vou ter ânimo de ir a uma festa, ficar para o after e ter uma história muito louca sobre o dia trash em que fiz isso e aquilo. Por enquanto, estou velha antes dos trinta e não aguento barulho. Só ouço MPB, bem suavinha – adoro explicar as letras para minha namorada – ela diz que sou uma pessoa desapaixonada, que “só” fico animada com livros e músicas do Caetano, achei engraçado. E triste, chorei no dia em que ela disse isso
Bem, isso tudo para dizer que o que tenho em mim é, sobretudo, cansaço. Todo mundo diz que sou nova demais, tenho muito para ver, ouvir, viver e isso é outra coisa que acho engraçada. Acho que, no fundo, morri e não quero ver, nem ouvir, nem viver nada. É louco esse “você ainda é novo” – o que isso quer dizer? E por que é tão ruim não querer ser nada? Ou viver o nada? Já tive barulho demais. Eu vi minhas primas todas serem jovens. Escutei suas histórias. Eu sei como é. Eu não tenho culpa se comecei pelo fim. Se pudesse, eu queria era uma outra oportunidade para ser criança. Sou jovem hoje, porque comecei ao contrário. Quem me dera poder começar do começo e viver o meio como manda o figurino.
Quem me dera ter vontade de pintar o cabelo, colocar piercing, usar drogas não-receitadas pelo psiquiatra (mais forte que a flor plantada pela Bi). Nunca tive nem vontade. Um professor uma vez disse que sou assim porque li Lacan muito nova. Ele contou uma história sobre uma ex-sogra que começou a estudar psicanálise e surtou. Talvez seja. Talvez eu deva discutir isso na próxima sessão com a analista. Não sei. Só sei que, embora eu tenha começado pelo fim, hoje estou no meio e não sei muito bem o que fazer com o restante do caminho. E o teto branco do apartamento alugado não me dá nenhuma dica. Talvez eu deva começar comprando o sabão em pó indicado pelas meninas e que deixam o apê cheiroso quando se lavam as roupas.
Não sei.
Foto de Luísa Machado.
Comment (2)
Sempre acho muito válido tudo o que sai do coração, sem filtro. É um ato de coragem escrever o que a gente pensa, o que a gente passa e transubstancializar isso em conto, anedota ou uma crônica, um relato de um tempo que passa e a gente para pra analisar e pensar sobre o que se passa. Parabéns por mais esse texto, que prova muito sua capacidade de aproximar do leitor. É muito fácil me identificar com o que você escreve porque é de forma fácil que você relata o que acontece. Me sinto uma observadora participante, uma leitora escritora. Obrigada por compartilhar
Como eu amo me identificar com uma leitura. Ás vezes a gente só quer saber se mais alguém no mundo também se sente como a gente se sente. Escrever e ler sobre situações tão críveis me fascina. Em suma, fui fisgada pela leitura e passaria mais tempo aqui, como que ouvindo uma confissão em deleite.