Certa vez um amigo meu pediu que eu me encostasse à porta. Ninguém pode entrar, ele disse. Fechei e fiquei, costas na madeira, braços cruzados, remexendo no zíper do agasalho. Fazia frio lá dentro e aqui fora.
Antes de chegarmos àquele quarto, encontro esse amigo nas catracas da Brigadeiro. Ele diz que eu estou bonito e me dá um beijo no rosto. E caminhamos lado a lado pela Avenida Paulista, uma chuva contígua e dois compromissos nos avizinhando.
O primeiro, muito simples e sem importância: trocar um fone de ouvido com defeito em uma galeria. Ele me diz que tem o número: 113. Calculo que é pela altura da Vergueiro ou próximo ao Ponto Chic, Japan House. Contraditório se pensássemos no caminho para o segundo compromisso. Por que daríamos uma volta se caminhávamos para a Avenida Doutor Arnaldo?
Sob uma sombrinha tímida, pergunto se não seria do outro lado do MASP, dado que nosso outro destino fica mais próximo à rua da Consolação. Ele diz que não; que não se lembra, que sabe onde fica. Coça o queixo, acende um cigarro e consulta o Google. Todos os mapas têm o mesmo efeito: nenhum o convence. Burro quando empaca, só desembesta com coice. E eu, já quase ríspido, pergunto:
“Então de que lado é? Você sabe onde estamos indo?”
Ele não me responde. Aonde iríamos, o segundo compromisso, os dois sabiam. Logo, faço questão de me calar também. Vamos trocar o fone. E sem reclamação.
Andamos pelas poças da calçada, nos distraindo do fato seguinte com a notinha amassada de compra do produto, lá no canto esquerdo um endereço borrado pela garoa. Parece 113, pode ser que não seja 113. Então questiono se ele se lembra da galeria de cor e vamos enumerando as possibilidades. Aquela próxima da Gazeta que tem uma escada e uma pastelaria? Não. A mais próxima do Masp com os enfeites de flores de plástico? Não. Restam poucas opções e começo a imaginar que ele está errado de novo. Fico me perguntando se não foi em alguma das Lojas Americanas ou Magazine Luiza espalhadas por ali, mas lembro da índole do meu amigo. Um belíssimo contraventor fajuto. Ele nunca compraria um produto que não fosse ilegal.
O fone em questão fora comprado em um local chamado Market Paulista, que se parecia muito com todas as outras galerias da avenida: homens oferecendo conserto de celulares, pessoas vendendo bugigangas, lanches de qualidade questionável e produtos de procedência duvidosa. Tudo perfeito. Dessa vez estamos perto da segunda parada.
A galeria fica colada ao Conjunto Nacional, mais próximo da Rua Augusta. O que me dá uma desculpa geográfica para lembrar de alguns momentos de alta picaretagem. Como aquela vez em que certo conhecido nosso se fingiu de canadense, ou quando outros conhecidos nossos vomitaram de pé, ou quando mais uns conhecidos nossos foram vistos fumando no banheiro. Digo que até nos pegarem somos inocentes de tudo. Rimos no meio da chuva. Ele para em uma banca, acende um Chesterfield e coloca o fone na mochila. Acabaram as distrações. Estamos próximos da Consolação. Mais ainda, da Avenida Doutor Arnaldo.
O destino de todo mundo é alguma Avenida Doutor Arnaldo. No nosso caso, de maneira mais factível, o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP). Nossa segunda parada: uma visita ao pai dele no setor de cuidados paliativos.
Ali na esquina da Consolação, próximos do hospital, nossa conversa fica cada vez menos simples e de todo modo mais amistosa. Ele me conta dos detalhes anteriores aos detalhes, me dizendo que se sente envergonhado por pesquisar quanto custa um caixão, um jazigo. Mas entende que é necessário, e que, talvez, se ele não fizer, não tem quem faça. A conta do pragmatismo é simples: para que uma tia possa se debulhar em lágrimas, alguém paga pela coroa de flores; para que alguém diga que ele está bonito e descansou em paz, alguém separa a roupa favorita. Para todo funeral há sempre quem o organiza.
Nesse momento a chuva não cessa e é como como se algumas palavras nos molhassem. Não dizemos nada, apenas o barulho do isqueiro e da sola dos tênis nas poças da entrada do ICESP. Nosso silêncio, nesse caso, se não tende ao mórbido, passa pela aspereza da pedra. Afinal, é um filho que tenta se despedir de seu pai. Mas também é um filho que se recusa a se despedir de seu pai.
Ao passar pela entrada pegamos uma Coca-Cola e um chocolate quente em uma máquina, ele bate naquele vidro, para, quem sabe, se por um acaso, não cair mais uma de brinde. Faço o fino detrás do copinho de plástico enquanto incentivo a empreitada.
No elevador, uma manchete sobre a oscilação do dólar e uma sobre o Corinthians. Ele, economista de formação, prefere comentar sobre o que importa, o novo volante e o novo lateral do Coringão. Claro que falo do Diniz, do Volpi, do Anthony, de qualquer coisa que me proteja da freguesia.
A porta do décimo oitavo andar se abre. Agora não temos mais produtos para trocar, chuva, ou Corinthians que nos blinde do fato.
Ali nas paredes rajadas do corredor procuro uma rota, uma saída, uma fuga como se a cada centímetro a parede me apertasse, e, enclausurado, eu buscasse um buraco para uma vida anterior a essa. Quem sabe enquanto brigávamos para trocar o fone de ouvido, ou em alguma outra noite em que quase nos pegaram pelas contravenções menores. Nada. Nem um centímetro de parede se move. E os corredores continuam a abafar o som do diafragma. Até que o cerco se fecha no número 1842. Como a gente sai da Avenida Doutor Arnaldo?
Entramos no quarto. Para a surpresa dos dois, ele está acordado, apesar dos olhos fechados. Mesmo que pouco, ele interage. Uma televisão baixa é apagada pelo falatório. Interrompemos a programação para um boletim urgente. O circo chegou na cidade.
Logo, uma conversa que caminharia, em tese, pelas necessidades de saúde, coisas mínimas como se a enfermeira está dando medicação, se o oxigênio está suficiente, se o travesseiro está confortável, decaem para a brincadeira. Porque de difícil já basta o óbvio, o gostoso é nos unirmos pelo deboche.
Como a proximidade é o átomo da piada, pedimos licença para o rosto grave do William Bonner ao falar sobre Irã e Corinthians. Meu amigo pergunta e eu continuo:
“E aí, pai, você viu que vai ter a terceira Guerra Mundial? Os EUA atacaram o general iraniano. Semana que vem tamo indo pro exército.”
“Já mandei você e eles se foderem.”
“E o Cantillo e o Sidcley, esse ano o Corinthians de vocês não vai ser campeão.”
“Outros que mandei tomar no cu.”
Rimos daquilo que pareceria mal-humor. Mas ao olhar de novo, com mais atenção, nos retemos no que de fato é. Se fosse de outra forma não seria a química constante entre dois sujeitos muito parecidos em diversos sentidos, diferentes em outros tantos. Pai e filho respirando juntos para retomar o sabor do cotidiano. Ora, se eles comentavam sobre tudo de maneira debochada, ali não seria diferente. A valsa do adeus também pode ser um samba.
Nesse clima ameno, voltamos aos assuntos das necessidades. Não as de saúde, secundárias, mas as cardíacas. Aí entendo a Coca-Cola na mão.
“Vai um gole aí?”
“Deixa aí em cima, filho, que depois eu tomo.”
“Mas toma mesmo, não deixa ela esquentar. Quer um cigarrinho também?”
O pai abre os olhos e sorri. Nós também. O amigo pede que eu me encoste à porta. Faz frio lá fora e calor aqui dentro.
Vejo uma brasa se acender e se estender. Um puxa, outro respira, e de mão em mão queimam o cigarro. Sob a sombra da fumaça se adensam os anos. Vejo um menino correndo de meia, com tigelinha loira e um pai ajoelhado abraçando-o; pais e filhos comemorando quando golearam um rival; um pai escondendo as lágrimas no momento em que, ao derrubar o refrigerante no chão da sala, o filho berra que fará economia de graça. Vi também, o filho orgulhoso, porque seu pai tenta, com todos os protestos, reclamações e milongas, tomar a medicação e seguir quase todas as prescrições médicas. O cigarro permanece, fumaça rompendo o vidro, contrabandeando chama para além dessa Avenida.
Gabriel Cruz Lima é estudante de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e graduando em Letras pela Universidade de São Paulo. É tio da Maria Luiza e escreve contos e crônicas quando os chakras se alinham.