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o espadachim de menta

por Gabriel Cruz Lima
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Perdi a conta, como todo bom filho, de quantas vezes ouvi: engole o choro. Com os dentes mascando chiclete de menta, os quadris tortos e a língua enrolada, minha mãe mandava que eu não chorasse, que não fizesse escândalo, que eu parasse de fazer manha. E eu, como todo bom filho, desobedecia, fazia birra, me jogava no chão. Crianças. 

Quando eu tinha dez anos, aconteceu uma feira em homenagem à chegada do Kasato Maru no Brasil. O colégio Dom Fidel Borges se dispôs a fazer um evento para celebrar os 400 anos da chegada dos imigrantes japoneses no Brasil. A proposta era simples: cada ano, um tema. A incrível 4ª série A ficou com os mangás e animes. Eu fui o ainda mais incrível Ichigo, protagonista da série Bleach.

Como na época éramos eu e papai, ele descolou a fantasia. Sempre muito cheio de vida, comprou a tinta laranja para o cabelo, o quimono de tergal à prestação, a espada do samurai foi ganhada no bingo e um desodorante Phebo para não suar no calor do fim de outubro. Eu só precisava mesmo decorar minhas falas para o grande dia.

Quando foi a hora tudo parecia fora do lugar. Papai, me levando pela mão à sala de aula, cumprimentava os diretores e explicava coisas inexplicáveis. E eu vendo o mundo de ponta cabeça. Minha apresentação era só de tarde, por que eu tinha que chegar na escola assim de manhãzinha? Eu nem estudava de manhã. Quem são essas mulheres sem avental e o que fizeram com a tia Sandrinha? 

Depois do cabeleireiro, a tia Sandrinha pode ser apenas Sandrinha, como vi pelo peito estufado de papai. Cheio das graças, como sei agora, ele foi logo cumprimentando as professoras e soltando o fardo:

“Tem problema esconder o Vitinho aqui um pouco antes não, né? Ele já está com a fantasia na mochila e prometeu ficar quietinho até a hora da apresentação”.

E fiquei ali um tempão. Tempo demais. Só de olho na fala das outras crianças e esperando minha deixa, meu momento, minha fuga. Me puxaram uma cadeira e um livro: O Gênio do Crime. Minha bunda pinicava de vontade de sair dali, as carteiras da sala de aula foram substituídas por outras de plástico macio enfeitadas com tsuru, deve ser esse papelzinho pontudo que me pega. E a Mariana, outra chorona, chamava a atenção da professora. Olha só essa escada que bonita com a bandeira do Japão, e a quadra, minha nossa, cheiro de cebolinha, ovo cozido e gordura das barraquinhas de yakisoba, tempurá, sorvete japonês e tramela solta. Uma mão firme no braço corta minhas formas de voltar para casa. Deve ser por que é sábado. Ninguém vai na escola de sábado.

De volta à sala, tia Sandrinha passou a mão na minha franja e disse que ia ficar tudo bem, que daqui a pouco era nossa hora e pediu, que, pelo amor de deus, eu esperasse ali atrás do biombo, no camarim. Ainda sem nada pra fazer, meio chateado e triste, peguei uma banana da mochila, e tomei o suquinho, e comi o bombom, e o segundo lanche, e percebi que já estava quase na hora. Pedrão chegou em segundo. Dividimos o Bis.

“As meninas da sexta série vão ver a gente.” 

Passando a mão na boca cheia de wafer percebi que ele estava muito certo. Dois de nossos colegas tinham suas irmãs três anos acima do nosso: a Ana Cláudia e a Leila. Eu e Pedrão sabíamos com certeza, eram as meninas mais bonitas do planeta. Pedrão secava a testa e roía as unhas de amor à Leila, eu inflava o peito, encolhia a barriga e treinava um sorriso para Ana Cláudia. Elas são lindas, são sim, mas eu sou o espadachim que decorou suas falas. Papai não apertou minha bochecha antes de sair de casa. Sinal de que já sou homem crescido. É hoje.

E eu e Pedrão ficamos ali falando de namorar com elas e ter dinheiro infinito, batendo cartinha e jogando Uno e Pokémon também. Pedrão perguntou se eu não queria estudar as falas. Disse não, óbvio, o espadachim decorou suas falas.

Tia Sandrinha falou, se aprontem, essa é a penúltima apresentação e vai trocar de turma. Somos nós. Olhei para o Pedrão e minha cabeça balançando deu com a dele, estamos prontos.

Tia Sandrinha formou uma fila por ordem inversa às falas, como eu era o último das falas, seria o primeiro da fila. No limite entre o camarim e a plateia, fiquei olhando para as cabeças que já se acomodavam na sala quase lotada e o fim da apresentação dos outros colegas. A disposição era essa, sem tirar nem pôr, os alunos do outro lado ficavam em pé, enfileirados em frente a uma lousa coberta por papel crepom vermelho e branco com imagens do Naruto e do Goku, do Ichigo, e cada um, por mágica da Tia Sandrinha, estava exatamente parado na figura do seu personagem. Eu, conforme a fila caminhasse, pararia justamente no Ichigo e o Pedrão, no Sasuke. Tudo certo.

Enquanto atravessávamos do camarim ao palco, olhei fileira por fileira até encontrar papai. Era isso, minha família fez questão de se sentar na terceira mais próxima. Na primeira fila poderia me atrapalhar, na segunda ainda teria chances de desestabilizar o garoto, na terceira estava ótimo. Para trás disso, sem chance. Seria insuportável não ver o filho de perto.

E tudo foi bem sob os olhos da família, consegui colocar minhas palavras treinadas à exaustão para o público. Papai deu um tapinha nas costas e dessa vez sim, apertou minhas bochechas sem cerimônia. Não deu tempo nem de ficar irritado. Outra pessoa, mais magra e corada estava ali e eu não tinha visto. Minha mãe deve ter sentado nas últimas cadeiras da plateia e aparecia agora para falar que eu estava muito muito lindo. Ela ficou assim ainda de lado mascando um restinho de chiclete de menta e só depois da saída de papai, teve coragem de se explicar. Insistiu para tirar uma foto.

“Pra gente guardar esse momento, filhinho”

“Eu não quero, mãe”

“Você puxou demais ao seu pai. É que a mãe precisa disso”

Com a próxima sessão batendo na porta, papai apenas acenou para tia Sandrinha e me disse o Seu Carlos está me esperando, filho, jogou dez reais no meu bolso e disse que me buscava no fim do dia. Minha mãe também se despediu, depois dele, e perguntou se não eu queria conversar lá pelas barraquinhas. Assim que acabasse ela estaria onde vendiam o sorvete. Se eu me comportasse bem, quem sabe não ganhava o picolé sabor melão. 

Tentei explicar para o Pedrão, era a última novidade do momento nas lojas da Liberdade. Ele também ficou com água na boca. E antes que o fio da baba pegasse no chão, mais uma professora veio retocar minha maquiagem. Como o ventilador não dava conta de tanta gente, nos intervalos das sessões, enquanto se formava uma fila no corredor, as professoras retocavam também os alunos fantasiados. De quando em quando, alguém vinha e espichava o spray colorido no meu cabelo. O espadachim que decorou suas falas tinha que estar bonito para o público.

Em uma dessas ocasiões em que a professora retocava os alunos, a fila do lado de fora da sala ganhou volume. Um enxame de pais se empurrava e trocava ofensas para ver quem sentaria na frente. A minha maquiadora parou, interrompeu o trabalho com a estrela do show, deixou a lata de spray para apartar a discussão e explicar para cada um, tem lugares de sobra, se acalmem. Eu quase não vi nada daquilo. No meio da trovoada, só senti o cotovelo meio leso de Pedrão me cutucar.

“Olha quem tá lá.”

Atrás da briga estava meu coração: Ana Cláudia. Minha glicose subiu na hora que eu vi aquele cabelo achocolatado. Juro, e adivinhando aquele par de olhos castanhos, comi sua doçura brigadeiro, cheirando a Sonho de Valsa derretido e bolo. Minha diabetes tem nome. Passo mais uma mão de tinta no cabelo sem que ninguém veja.

Como o universo nos unisse em desgraça, Leila também andava junto. O cabelo loiro e o aparelho ortodôntico da menina causavam abalos sísmicos no Pedrão. Com vários graus na escala Richter, o joelho do meu amigo respondia com tremedeira à aparição da garota.

Finalmente começamos nossas falas, eu, o último, sucedendo o amigo. Aninha disse sobre a origem dos desenhos, João comentou dos olhos dos personagens, Marcos, meio travado, leu o papel na sua mão e acenou para sua mãe em sequência, ufa. Enquanto um flash e outro disparavam, as risadas se avolumavam sem pretexto. As duas cochichavam. Depois de terminar de ler, Pedrão, antes de me passar a palavra, olhava fixamente minha testa e coçava a própria. Ele queria dizer alguma coisa? Era algum código que eu não tinha entendido? Repito o gesto dele em mim e vejo a ponta dos meus dedos laranja. Escorria suor da tinta pelo meu rosto. Era óbvio que todos viam. Era óbvio que eu estava fazendo papel de tonto. Era óbvio que o espadachim nunca soube suas falas. 

Sem lembrar o que diria, gaguejando e ridículo, aqueles olhos de doçura brigadeiro também se afastavam. Como estava tudo muito abafado, os risos eram o prenúncio de uma chuva. Saí correndo antes do final da apresentação e, sem me conter, o tempo abriu. Choveu Ana Cláudia pela sala de aula. Inundei do pátio até a quadra, até a barraca de sorvete. Foram chamar a minha mãe. Eu estava trancado no banheiro lavando a cabeça na pia.

Ela bate à porta, pude ouvir o sopro gelado da menta vício:

“Filho? Eu sei que você está aí, deixa a mãe entrar e te ajudar.”

“Desculpa, mãe, eu deixei a senhora triste de novo.”

“Eu te compro sorvete depois se você sair.”

“Mãe, eu acabei de passar a maior vergonha da minha vida. E banheiro não é feito pra falar de sorvete.”

“Exato, então não é melhor falar de sorvete aqui fora?”

“Só se você não me der mais bronca.”

“A mãe agora tá tentando mudar, deixa eu te ajudar.” 

Abri a porta desconfiado, só para verificar quem era a estranha que estava do outro lado.

Por que ela não disse para eu engolir o choro? O que fizeram com a minha mãe?

Ali estava ela, na soleira da porta, com seus enormes um metro e meio, arfando quente, com o sorvete surpresa pingando pela mão estendida e outro sorriso na cara, sem zigue-zagues mentolados. Era minha mãe, mas também era mamãe.

Eu peguei. Não sou bobo. E do picolé de melão sendo lambido calmo eu permanecia retido em um abraço novo, com as coisas clareando pela ternura inédita, iluminadas com carinho pelos beijos e abraços reabilitados, soprando para longe a geada de Trident verde e vergonha. Pra não ter tempo ruim eu já tinha acabado o sorvete e do choro só restavam o rosto inchado e o nariz entupido. Ela me perguntou:

“O que você quer fazer?”

“Eu quero voltar lá.”

“Você não prefere voltar para casa?”

“Não. Eu quero voltar lá.”

“Você tem certeza disso?”

“Dessa vez vai dar certo.”

“Eu não queria, mas você é teimoso que nem seu pai. Então vai lá. Você é o espadachim que decorou suas falas.”

“E o Pedrão não pode ficar sozinho.”

Sem fantasia e cabelo descolorido, de mãos dadas com a minha mãe parei em frente à porta e deixei que ela entrasse primeiro. Contra o desejo de tia Sandrinha, ela insistia na minha capacidade, pedindo, pela cumplicidade entre mães e mulheres, que tivesse um pouco de compreensão com o momento.

Enquanto ela explicava que confia em mim, que eu mereço outra chance, que eu sou um bom aluno, que eu sou um bom filho, já me coloquei a postos. Eu me esgueirei para o lado do Pedrão, mais uma vez na tentativa de me expressar, mas muito sem graça pelo meu choro. Ele quebrou o gelo:

“Eu não gosto mais da Leila”.

“Nem eu da Ana”.

Consegui dar risada e já me recobrando ao máximo, senti que deveria dar toda a minha coleção de carrinho Hot Wheels para ele. Descobri pela amizade que estou sempre pronto para o próximo round.

Mamãe também. Depois de várias justificativas, ela venceu pela insistência os braços cruzados de Sandrinha. Fui capaz de dizer minha fala:

“Os animes do estilo shonen são histórias para garotos pré-adolescentes. A tradução significa rapaz jovem em japonês. Geralmente essas histórias contam com poderes mágicos, lutas impactantes e é claro, muita coragem. De todo mundo.”


Gabriel Cruz Lima é estudante de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e graduando em Letras pela Universidade de São Paulo. É tio da Maria Luiza e escreve contos e crônicas quando os chakras se alinham.

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