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O Pêssego e o Caroço

por Gabriela Ripper Naigeborin
O Pêssego e o Caroço

Tome um pêssego e faça nele um corte rente ao caroço, mas um corte que não seja tão profundo que se deixe revelar o caroço enquanto protuberância soerguendo-se da carne da fruta.

Mesmo intocado, o caroço implícito no cerne do pêssego demonstra seu desígnio por meio de uma mancha que é roxa no centro, arroxeada nas extremidades. A superfície plana e úmida que se funda a partir do corte daquele pedaço primeiro da fruta converte-se, desse modo, num santo sudário: o caroço imerso na carne da fruta é impresso na carne amarela, sacralizando-a.

Naquele caroço ninguém há de cravar os dentes. Ele anuncia-se como o passado do que ainda não veio a ser, o caroço que não foi visto por olho algum, mas que é mais antigo do que a pele aveludada e a carne pujante do pêssego. O caroço, ao contrário dos elementos vivos do pêssego, é um natimorto.

Se chupamos o pêssego até chegar no caroço (voracidade), o esboço da chaga que é o caroço vira o desenho tridimensional de uma espécie de cérebro da fruta. Aquele caroço que é justamente o mais antigo que a fruta tem a oferecer, é também seu atributo mais tecnológico, uma reconstrução por ressonância magnética que permite ao observador realizar as mais minuciosas angiografias com base em suas múltiplas e minúsculas reentrâncias — tortuosas vias, rios vazios, caminhos que levam apenas a outros caminhos igualmente devastados.

É que o caroço é uma criatura seca e técnica: dentro da fruta, ele não serve para nada, e por isso mesmo empresta-se a tudo. Ele opera, sem vida, do íntimo da fruta, preparando a vida futura desta e de outras frutas sem, no entanto, trair a sua qualidade de imutável.

O que é um caroço? É um bicho de zero cabeças, um zero quieto que zomba de quem almeja o consumo fácil, limpo e agradável do pêssego, que é fruta das mais convidativas. O caroço, em função de seu primitivismo, desconhece qualquer um dos estágios do capitalismo. Seu único valor é ser atirado pela janela, nada mais. O caroço não vislumbra nada para além de sua casca.

O fruto está grávido do caroço que está grávido da semente que está grávida de outra fruta. “Gravidez” e “gravidade” têm a mesma origem — do latim, “gravis”: carregado, pesado. O caroço encarrega-se da história da fruta que integra e organiza internamente. Ele é o último numa linhagem infinita que tende para os primórdios do pêssego-fruta, uma linha temporal que é, no limite, a ideia do pêssego. Sendo assim, o caroço é um legado e uma promessa: as duas faces da responsabilidade, que é o que as criaturas da terra têm de mais divino.

A responsabilidade do caroço do pêssego corresponde à tua missão de aguentar-te a ti mesmo, ao teu próprio peso, ao peso que tu mesmo tens, sem necessariamente sê-lo: o peso do que fostes sem seres, o peso do que serás sem seres. O peso de tudo o que não és, mas que passa por ti.

O caroço é duro e espesso porque os tempos são difíceis, e a história transcorre dura e espessamente. Se a dureza é o princípio ordenador necessário e antitético à maciez do fruto, a espessura da carne prolonga a doçura da qual experimentamos até atingir a espessura do caroço. Uma espessura precede e continua a outra, com a diferença de que a espessura da carne é medida segundo uma ordem temporal estabelecida, diminuindo à medida que o tempo passa e, enfim, terminando quando chegamos ao caroço; este, por sua vez, não é mensurável segundo o tempo que se leva para que seja feito algo a ele — caroço não é carne, nada podemos fazer ao caroço para que ele se desfaça com a naturalidade da carne. Se ele se desfaz na terra para engendrar outro fruto, seu esfacelamento é um sacrifício autônomo, em nada depende o caroço de nós para a efetuação dos processos simultâneos de autofagia e auto-propagação em que ele se desdobra. Se o destruímos, como por exemplo macerando ou incinerando-o (ou mesmo um seguido do outro), sucedemos em torná-lo inoperante, um fim em si. Mas um caroço que assim se destrói acaba como acaba qualquer entidade física, ele não acaba como um caroço acaba. Diferentemente de como é com a carne do fruto, não sabemos a fórmula para destruir um caroço enquanto caroço, que é uma destruição do caroço que preserva a sua função de caroço, a sua potência de caroço, que no caso coincide com a potência do fruto todo.

O caroço é uma coisa que ri: do fundo do fruto, funda-o, afunda-o, afasta-o de nós: seu mistério, nosso prazer. O caroço, como limite mínimo e máximo da sensação e cognição, define o escopo da experiência humana, que vai desde a terra até o céu, nem além, nem aquém.


Gabriela Ripper Naigeborin (mira) nasceu em São Paulo em 1997. Como pesquisadora nas universidades Brown e Cambridge, estudou a estética mística de Clarice Lispector e Glauber Rocha. Sob o pseudônimo de mira, publica sua poesia e prosa poética numa página pessoal.

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