Douglas Laurindo. Mora em Manaus. Graduando em Letras – Língua e Literatura Portuguesa (UFAM). Além de atuar como professor, é pesquisador no âmbito literário. Escreve contos e poemas.
A expressão de uma queda ressoa na mais recôndita aflição. Salomoni foi rasgado na praça de palavras do homem, cuja atmosfera atroz convidava desde tão cedo o horror existente em cada criatura a mostrar sua face, pousada também no ombro geracional. A sua vida mínima era lida como a de um rinoceronte invertido, flutuando no abismo da incompreensão, realocado da savana ao cenário amazônico e sendo roubado o chifre de sua constituição simples enquanto construção identitária. Tecia-se uma caça entre a imposição familiar e o animal ornamentado na sua mais vaidosa concha masculina.
Ao que se sabe, o menino de onze anos adviera de uma família ribeirinha localizada à margem de um rio lento. Durante sua infância, em lugar de colher os galhos secos que seu pai lhe pedia, saía à deriva pelo cafezal deixado como herança por seus avós maternos todas as tardes. Num desses subterfúgios, deparara-se com um esqueleto de plástico modulado, colados à cabeça fios castanhos, uma face oval docemente desenhada e feminina. Faltava-lhe uma das pernas: a boneca o encarou como quem, resistente ao tempo, dissesse muito sobre o desejo do menino. O chifre da pequena criatura cristalizou-se com aquela descoberta em demasia satisfatória. Não podia tê-la no flutuante minúsculo tampouco guardá-la em sua tábua disposta na parede do quarto. Fê-la companhia como também uma perna de graveto e roupa com retalhos.
O amor é inimigo da clareza. O sujeito que ama vê-se numa neblina de êxtase e contemplação ao objeto amado. Amar também custa sangue e algumas lágrimas. É um lançar ao abismo. Sua mãe decerto notara o sumiço dos retalhos e o pai, intolerante, punira com galhos de cuia a imprudência agora mediada pelo sentimento. Salomão, semente de uma terra rústica e enfadonha, não permitiria desvios do seu espelho social. Ao filho caberia a terra, o suor, a chuva, a rede de pesca. As suas mãos construtoras de pernas para boneca e roupa não diriam isso.
O que pensara Ribamar, caboclo vizinho e amigo do pai, quando o vira risonho e tomado de uma felicidade semelhante a de um cultivador de café em épocas de colheita? Homem cabra e firme aqui se cria é doutro modo! O pai da criança, feito carcaça do social, descera naquele corpo fino a lição dada aos homens invertidos. A sua boneca foi engolida pelo rio, assim como a si mesmo. O que ficou dessa violação foi a cabeça sem o chifre pra sempre pingando…