Quero o instante antes do som. O minuto que se dilui em segundo até o estrondo. A explosão do vidro que quebra em resvalo. Assisti a queda sabendo que não havia nada que pudesse ser feito. O peso que atravessa o ar em um piscar e se instala na memória. O agudo da fragmentação. Os estilhaços espalhados pelo chão de madeira. Mamãe chegou a tempo de me impedir de pisar nos destroços. Era um vaso de flor, estava vazio. Para que guardar um vaso de flor sem flores? Ela me pegou no colo, fez algumas repreensões e me colocou a salvo no sofá enquanto limpava os rastros.
Contei essa história à Paula a primeira vez que nos encontramos. Estávamos na mesa do bar cumprindo as exigências do flerte quando ouvimos a garrafa quebrar. Caiu de uma mesa vizinha, então contei a ela. Parece algo inadequado a uma primeira saída, mas não era um encontro normal. Fugimos ao praxe de trazer ao diálogo emprego, viagens, assuntos em comum. Ela disse que não ia se abrir comigo, estava cansada de se abrir para todos os caras. “Já está se abrindo”, bati com minha garrafa na dela. “Posso estar mentindo”. “Sei que não está”. A primeira pintura que tive de Paula: ela era uma mulher sem arrependimentos. “Eu tenho um arrependimento. Uma vez quando era menina comprei um pacote de chicletes e coloquei todos eles na boca de uma vez. Quase morri engasgada. Mas o pior é que poderia ter aproveitado mais, sabe? O sabor de um a um”.
Poderia apostar que a lembrança passava pela cabeça dela assim como pela minha. Como quando vários estranhos estão assistindo a mesma cena em um filme ou lendo a mesma página de um livro. Vi em seus olhos quando derrubei a taça. Levantei às pressas quando ela disse que estava indo embora e a taça voou longe. Eu não queria o minuto antes do som, porque ela tinha dito que se cansou e ia embora. Pisei descalço nos cacos e no vinho, que se espalhava pelo piso branco. Mas já tinha ouvido a porta bater. Tentei limpar os rastros, mas as mãos tremiam, o corpo inteiro em zumbido.
Fui atrás dela. Peguei a chave do carro e desci pelas escadas com pressa. Ninguém espera o elevador nessas situações. Dei ré saindo pelo portão, o porteiro tentou me dissuadir da ideia de sair, “é madrugada e o senhor tá nervoso”. Não tinha jeito, dei a marcha e ganhei a rua. Paula não pode ter ido longe. Esperei os prédios sumirem atrás de mim, mas continuavam em cadeia prolongada. Um após o outro como coreografia. Assisti a Lua, gosto de ver a luz. A Lua da noite me lembra a Lua do dia, opaca no céu. Nunca pude perceber em que momento a Lua opaca ganha brilho.
Quero o instante antes do som. O minuto que se dilui em segundo até o estrondo. Assisti o carro se chocar contra o poste sabendo que não havia nada que pudesse ser feito. O vidro estilhaçado, será o vinho o líquido púrpuro que colore os cacos de vidro? Mãe, vem aqui limpar o chão! “Entre mortos e feridos, salvaram-se todos”. Paula sempre disse que entre ela e todos, salvava-se primeiro. Ela não deve ter ido longe… Mas por que é que alguém guarda um vaso de flor sem flores? Quem vai vir para limpar os rastros?
Giovana Proença é taubateana e estuda Letras na FFLCH-USP. Atualmente é editora de literatura do suplemento cultural Frentes Versos. Publica contos em revistas literárias e se arrisca na poesia.