“Porque sem sassaricar / Essa vida é um nó”
Foi ali na São João. O trio elétrico puxava o bloco em direção à Ipiranga quando de repente deixou de ser. Não foi a primeira vez. Morreu no ano passado também. Pensara que passaria por este ilesa, mas não conseguiu. Belchior que lhe perdoe. Não tem ideia de como será o próximo, ainda é mistério. Se pedirem, coloca seus dois centavos na repetição da história. Ela tem essa mania.
É só cansaço.
São as distâncias crescendo, as relações quebrando, a conjuntura caótica, o correr do relógio, o trânsito de todos os dias, a dificuldade de sonhar um futuro, a crise sem fim, o mercado de trabalho atrofiado, a poeira bailando no ar, a pressa tamanha, os domingos claustrofóbicos, as dúvidas profissionais, os meses longe do mar e o time sem ganhar um campeonato há tanto tempo.
Vai saber. Os motivos sobram. E mesmo assim… Mesmo assim, as lágrimas não caem desde aquela noite de setembro e o sangue tem corrido nas veias, não na pele.
(Noventa miligramas de duloxetina por dia impedem que neurotransmissores transportadores levem a serotonina e a noradrenalina de volta à membrana pré-sináptica. O nível dessas substâncias em seu cérebro sobe até atingir um equilíbrio delicado, mas que não deixa de ser um equilíbrio.)
Quando perguntam, pede-lhes para não se preocuparem. Está tudo bem. Mesmo. Vai e volta tempo o bastante. É costume. Quase um passatempo. Faz parkour entre o aqui e o além, desafia a Morte por esporte.
“Por quê?”, ela pergunta, incrédula. Teimosia, talvez. Vai saber. Os motivos faltam. Dá de ombros e continua o jogo. Os dedos da Ceifadora roçam o algodão de sua roupa pelo mais breve dos instantes antes de escapar outra vez. Ri enquanto corre das mãos cadavéricas. Hoje não. Ainda não.
Daqui a pouco é fevereiro. Vai fazer confete da dor e jogá-la no ar enquanto dança a República inteira. Ou ceder à angústia e transformar o hospital em avenida, desfilar seu bloco entre as macas da UTI. Uma parada de foliões combalidos celebrando a desesperança. Os médicos os liberarão na quarta-feira – sic transit gloria mundi. A advertência virou consolo. Quando o eco das marchinhas silenciar, renascerão das cinzas.
Marcela de Gouveia ainda não aprendeu a escrever sem fazer referências musicais ou matemáticas. Detesta escanteio curto, tem ataques de riso em momentos inapropriados e nunca recusou um Toddynho.