Qualquer um pode, às nove da manhã de um dia comum, derramar o vinho em uma taça enquanto repousa sobre a pia as louças do café da manhã e sobre a mesa os farelos dos pães repartidos entre ela, o filho e o marido.
Indo além, qualquer pessoa pode, sem culpa alguma, abrir um livro e o devorar em uma manhã enquanto a poeira se acumula no piso frio.
Clarissa ouviu um bem-te-vi na distância das casas vizinhas, ‘também te vejo’ disse mais para si do que para o pássaro.
Talvez se gritasse, pensou divertida, quem me ouviria?
Observava as plantas no jardim, havia uma certeza dolorida de que se morresse, elas também morreriam.
Quem revolveria a terra com paciência, quem podaria os exageros das folhagens que crescem, que morrem e permanecem amareladas sem vida, quem arrancaria as daninhas que se aproveitam como parasitas; deixou o cigarro no cinzeiro, derramou mais vinho na taça.
Caminhou até a porta, escorou no batente, sonhando com begônias e orquídeas: invadiu o cercado que ela fizera com suas próprias mãos, tirou as sandálias para sentir a terra e flexionou os dedos.
O solo estava seco e ela viu a si própria, uma espécie de gêmea parada na soleira da porta de sua casa, olhando-a no meio das plantas. Riu da ideia e imaginou-se indo até a torneira – uma terceira Clarissa? –, abrindo-a e molhando as plantas, recebendo com elas os respingos gentis e sorriu da sua sorte.
Rodopiou, girou em torno de si mesma como uma bailarina em um palco, as plantas eram os espectadores atentos que a aplaudiam efusivamente a cada giro.
Da soleira da porta, via a si mesma um pouco mais jovem, talvez, rodopiar em uma alegria juvenil em um dia de chuva quase esquecido. O cheiro da terra molhada preenchia a atmosfera, enquanto tentava pegar os pingos da chuva. Quase podia sentir as gotas em sua face, escorrendo salgadas em seus lábios.
Um fotógrafo invisível capturava a dança em círculos, um flash brilhou na manhã de um dia comum, como outro qualquer.
Um caminhão passou rasgando a manhã. Clarissa fechou o livro, apagou o cigarro no cinzeiro e olhou as plantas em silêncio, andou até a pia e derramou o resto do vinho.
Wagner de Moraes. Signo peixes, ascendente e lua em aberto já que não sei a hora que nasci.
Desenho de Anna Carolina Rizzon.
Comment (13)
Clarissa foi amor à primeira vista. Por mais contos assim. Parabéns pela escrita Wagner. Sucesso man!
Bem interessante; as vezes a gente se transporta para outros mundos e imaginamos muitas coisas pra fugir da realidade.
Com uma fluidez de escrita a gente consegue se envolver com os personagens de uma forma incrivel, e qto mais se ler mais se quer.
Que leitura deliciosa e instigante. Consegui visualizar todos os passos de Clarissa. Na verdade, me imaginei sendo ela.
Parabéns Wagner!!! Já aguardo novos Contos!!
Wagner, parabéns pelo texto. Um conto leve, mas denso, que captura as nuances do cotidiano e da condição humana. Que lindo!
Parabéns, Wagner! Quanta coisa existe por trás de uma cena cotidiana? Clarissa que o diga!
Adorei! Parabéns!
Quais serão as outras partes da Clarissa??
Wagner, parabéns! Texto fluido, bem escrito, de leitura agradável. Sua escrita me permitiu uma sinestasia da rotina de Clarissa, percebi nuances e detalhes que enriqueceram minha experiência como leitora. Obrigada.
Parabéns pelo texto Wagner, singelo e cativante!
Maravilhoso!
Consegui sentir a personagem. O Wagner soube utilizar as palavras certas e conduzir a narrativa de uma maneira leve e bonita.
Incrível capacidade descritiva. Eu me senti a própria clarissa observando a cena.
Texto delicioso, nos leva a uma doce e poética reflexão cotidiana. Parabéns!
Os texto do Wagner são sempre os melhores, ele é incrível!!!!