Paula Campos nasceu em Coimbra, Portugal. É professora de Português, porque adora ler e escrever. Dinamiza um clube de leitura e outro de escrita criativa online. Publicou, durante cinco anos, num jornal local e já dinamizou atividades literárias em colaboração com bibliotecas da sua região. Tem vários textos publicados em coletâneas e revistas.
Tarde quente e soturna. Há duas horas que se encontrava naquele salão atulhado de gente, de vozes, de móveis, de pensamentos. O vestido colava-se-lhe à pele, os sapatos apertavam-lhe os pés e os ganchos que lhe seguravam o cabelo num arrojado penteado, suspenso da grinalda de flores brancas — uma quase súplica do noivo —, arranhavam-lhe o couro cabeludo. A ostentação da festa, cereja podre no topo do bolo rançoso que era a sua vida, dava-lhe náuseas. Não era o casamento dos seus sonhos, não era o marido dos seus sonhos, nunca fora a vida dos seus sonhos. Sentia-se sufocar de calor, de comida e de gente.
Aproveitando um instante de maior confusão, a noiva esgueirou-se pela ampla porta que dava acesso a um corredor que a tiraria dali rapidamente. Ao passar pelo belíssimo espelho de estilo regência, datado do século XVIII, à sua direita, suspirou. Não era bonita. Baixa, anafada, de pele trigueira e banais olhos castanhos, sentia-se ridícula naquele longo vestido cheio de folhos e rendas que a desfavorecia. Por entre sorrisos e cumprimentos, conseguiu chegar à entrada do luxuoso hotel. Desceu os poucos degraus que a separavam do exterior, ignorou a fonte seca com que se deparou e virou à direita.
Não estranhou a solidão do local, atribuindo-a ao calor abafado que se fazia sentir. Agradou-lhe aquela liberdade e seguiu pelo estreito passeio que acompanhava o edifício contíguo ao hotel. Todas as portas estavam encerradas, mas lembrava-se bem do interior de cada uma. Parou junto à entrada da velha loja de brinquedos onde, quando era pequena, a madrinha a tinha levado. “Escolhe o brinquedo que mais te agradar”, dissera. Os padrinhos eram pessoas endinheiradas e costumavam passar férias naquele complexo termal. Todos estranharam quando a menina escolheu o boneco mais feio que havia na loja. Grão-de-Bico, passou a chamar-se. A madrinha, consternada com aquela escolha, incentivou-a a escolher, ainda, outro brinquedo. A cadeirinha vermelha de madeira polida e brilhante resistiu mais tempo que o malfadado boneco.
Continuou pelo passeio e, ao verificar que o pequeno café que ainda ali existia estava fechado, atravessou o largo e desceu por um estreito carreiro de terra batida. Já não se lembrava bem daquele caminho, mas a necessidade de se afastar do salão onde decorria a boda fê-la continuar. O calor aumentava e o vestido de folhos mostrava já enormes manchas de suor. Aflita, tirou os sapatos que quase não a deixavam respirar. De qualquer forma, mais tarde, ninguém perceberia a sujidade dos seus pés por baixo daquele espaventoso vestido.
A terra batida dera lugar a uma espécie de areia grossa cheia de pedras. Cheirava-lhe a água. E então viu-o. Verde, lodacento, umbroso. Do seu lado esquerdo, o lago quedava-se, silencioso, por entre algumas canas e árvores finas cujos nomes desconhecia. Instintivamente, encostou-se ao mato, à sua direita. Não gostava de água. Não se tratava de uma fobia, mas nunca mostrara apetência para o que quer que fosse que se relacionasse com água. Daquele lago, sobretudo. Lembrou-se de que, mesmo quando era pequena e ali ia, com os pais, visitar os padrinhos, e o lago estava cheio de crianças que se divertiam a passear nas “gaivotas”, ela recuava sempre. O lago intimidava-a, arrepiava-a. E, agora, mulher adulta, no dia do seu casamento, tinha ido parar precisamente ali. A ideia de voltar para trás punha-lhe um nó na garganta. Avançou uns passos e, aos poucos, sempre afastada da margem, foi ganhando confiança no passeio.
De súbito, uma curva do caminho desenhou, na sua frente, uma ponte de madeira, com cerca de quinze metros de comprimento. Lembrava-se que, por baixo, passavam, antigamente, os risos das crianças, os gritinhos das raparigas e os sussurros dos namorados, tranquilizando-as. Era preciso baixar a cabeça para se conseguir passar nas domingueiras “gaivotas” vestidas de verde, amarelo e vermelho. Mas, agora, nem o canto dos pássaros se ouvia. O silêncio fazia-se sentir como uma presença humana. Tal como a humidade.
A noiva começou a subir a ponte. Por baixo, a água, parada, por entre os velhos barrotes de madeira. Parou ao chegar ao cimo. Sentia-se estranha. Sempre se afastara daquele local e, agora, pelo contrário, não conseguia afastar-se dele. A ponte parecia-lhe cada vez menos segura. No sítio onde parara, os barrotes de madeira, cruzados, que serviam de corrimão, estavam partidos, carcomidos pelo desgaste do tempo, da humidade e da falta de manutenção.
Mas os olhos da noiva estavam fixos na água lodosa. A imagem desenhava-se, distorcida, bem lá no fundo. Uma alga branca, provavelmente. O ribombar do trovão foi como um choque elétrico. Desviou o olhar para o céu que se tornara escuro. Nem relâmpago nem chuva. Só o trovão. Seco. Ameaçador. Baixou, novamente, os olhos. A alga continuava branca. E sorria. Um sorriso disforme, um esgar, que ondulava num rosto visivelmente de mulher. A noiva não conseguia despregar os olhos da figura. Baixou-se. Algo se desprendia da imagem e subia até ao cimo da água. A viscosidade colava-se-lhe à pele como uma garra. Um véu. Branco. De renda. Flutuava mesmo ali. Esticou-se. Sabia que conseguiria tocar-lhe. Alongou o braço. Se se esticasse mais um pouco. Só mais um pouco…
A noite chegara mais abafada que o dia. Pesada, lúgubre. Algumas luzes piscavam ainda no portão de ferro que servia de entrada ao espaço termal. Os últimos convidados saíam num silêncio de luto inesperado, improvável.
Sentado nos degraus da velha loja de brinquedos, o noivo fixava o pequeno lago que a grinalda de flores brancas, nas suas mãos, ia formando no chão. Um lago verde, lodacento, umbroso…
Desenho de Ariyoshi Kondo.