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Um nome para chamar

por Isabela Sancho
Fotografia: Vista de ponte – Autoria não identificada (Acervo Instituto Moreira Salles).

Isabela Sancho é escritora, ilustradora e psicanalista. Autora das plaquetes Quem fala em seu nome, Encavalave e Urna de pólen (com co-autoria de Flora Nakazone), do livro infantil A invenção das Isabélulas, dos livros de poemas As flores se recusam, A depressão tem sete andares e um elevador, Monstera, Olho d’água, espelho d’alma, e do livro de contos A nudez extinta.


O lago reflete os salgueiros, seus ramos alfinetando a água. Boiam cascas de pão, girando hesitantes entre pedaços de miolo, que afundam. Patos e cisnes já se foram, fartos de comer, de competir. Havia um ganso inteiro branco, maior, que se precipitava nos arremessos, avançava nas outras aves às bicadas, precisando ser primeiro.

Sobrou o saco de papel no colo de Susi, não há uma lata de lixo por perto. A menina o pega e vai atrás de Vítor.

O irmão mais velho dobrou uma trilha, com poucos passos já sumiu de vista. Sempre fareja o insólito, busca rumores como a pegadas. Susi não escuta o que ele escuta, apenas segue o que ele segue, desvia dos troncos, também passa. Não sabe para onde vai, ocupada em olhar por onde anda, suas sandalinhas repisando o caminho aberto, as folhas empapadas pegando às solas.

Não quer perder o passo. Quando os carrapichos grudam na canela, tenta arrancar com o calcanhar. Não agacha, não para. Os galhos roçam, revidam, ficam para trás: agora ela também ouve, há algo mais à frente que chama. Grasna. Uma súplica de plástico.

Vítor já está lá. Espia concentrado, parece mascar a própria língua, mãos nos bolsos.

O ganso grande comprime uma fêmea na beirada do lago. O animal usa o próprio peso para imobilizá-la, esmaga-lhe o dorso com seu ventre, pinça, dobra, torce-lhe o pescoço, bate o rosto contra o chão enquanto a escala e pedala. A garganta de Susi aperta, quase fecha. O garoto sorri.

— Ele vai matar! — Susi toma o menino pelo antebraço, incitando-o ao resgate. É assim que sabe acudir.

— Quieta! — Sussurra como se gritasse entredentes. — Você quer estragar tudo?

Estragar o estrago são dois estragos? Ela percebe o saco de pão amassado, amolecido com a umidade da sua palma. Leva-o à boca, como quem se arranja de um pulmão externo.

— Ela não tá machucada, Susi. Ela gosta. — Vítor ri. — Olha. Ela não briga.

Por que não grasna mais? A gansa não procura coisa alguma com os olhos, não tem pupilas. O ganso se afoba sozinho, a fêmea não se debate. Ausenta-se, em uma suavidade impossível. A menina sente o quadril se soltar, os joelhos trocarem de lugar. Procura o chão, separa os pés, aperta mais forte o braço do irmão.

— Boba. Eles tão só brincando.

Na velocidade da precipitação, o casal se desencaixa, a gansa espana, o ganso persegue. O ganso cresce. O ganso empurra a gansa na água até que sobrem apenas ele mesmo e as bolhas subindo. Quando começa a ceder junto, desiste. Volta à margem com as penas espigando, o pescoço comprido meio que amolecendo, mas ainda assim lhe mantendo o rosto empinado.

E a gansa — a gansa sumiu no lago.

Logo somem também as radiais na água. O lago reflete o lago, refaz-se intocado. Na sua paz condescendente, entorna calmo os salgueiros de cabeça para baixo.

Cai, aos pés de Susi, o saco de papel. Suas mãos não existem mais.

Do outro lado do lago, perto dos salgueiros e do banco, porém, a gansa reaparece. Arqueia-se, pula para o solo. Reequilibra-se, faz que vai levantar voo, mas apenas se chacoalha da água e sai vagando sozinha, de asas para o ar, um leque quebrado abanando o mato.

Susi, enfim, expira. Arregala os olhos para o silêncio, quer ouvir o que vê. Acreditar que vê: quer saber que nome tem a gansa, poder chamá-la. Quer bater braços, ir embora com ela.

— SÓ BRINCANDO! — Vítor berra em sua orelha e, como se fosse um pega-pega, dá-lhe um tapa súbito, estranho, invertido, meio por baixo, meio metido entre as coxas da irmã, e afasta a mão com a rapidez de um furto, fazendo voar a barra do vestidinho.

Então sai correndo, sem olhar para trás.

É só ao chegar à virada da trilha que ele se detém. Espicha o pescoço para uma mirada em Susi, por cima do ombro. Alonga-se, ergue seu queixo. O ganso ri. O ganso mostra os dentes. O ganso tem dentes de gente. O ganso tem dentes na língua.


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Mais sobre a obra

Ao trazer as diferentes nuances do trauma, A nudez extinta explora uma diversidade de temas como o luto e o isolamento familiar, a repressão estrutural contra grupos dissidentes, o esvaziamento psíquico, a ideação suicida e, até mesmo, a destruição do meio ambiente. O livro apresenta uma pluralidade de personagens (que variam em faixa etária, gênero, sexualidade, e incluem, até mesmo, figuras não-humanas, como animais e plantas), mas que se vêem em um eixo comum: todas são marcadas por alguma perda irreversível. Segundo Drielle Alarcon, que assina o texto de apresentação da obra, a narrativa é “inundada por uma poética apurada, demarcando o momento em que o retorno ao estado anterior não é mais possível”. Para Karina Tengan, autora do texto da quarta capa, a escrita de Isabela “desafia as forças de esmagamento, se fazendo guiar pela pulsação invisível, cravando as unhas na superfície densa até perfurá-la com estados de paixão e fúria.”


Fotografia: Vista de ponte – Autoria não identificada (Acervo Instituto Moreira Salles).

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