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Certeira

por Raquel Mansur de Godoy
Ilustrando o conto de Raquel Mansur de Godoy, um desenho de Ariyoshi Kondo que mostra galhos de uma planta espinhenta

Raquel Mansur de Godoy é poeta, relações-públicas e mestre em comunicação social pela UFMG. Funcionária pública há 20 anos na Assembleia Legislativa mineira, mãe de uma garotinha esperta de 9 anos, escreve para salvar os sentidos da sua própria experiência. Participa de um grupo de escritoras em Belo Horizonte. Lançou pela editora Patuá, em 2023, seu primeiro livro de poemas as margens do corpo.


Sangue. Restos espalhados pelo chão. Seria um dedo aquele pedaço de carne ali, mais afastado? A perna retorcida parecia borracha pendendo da cadeira. Não gosto de imaginar como chegou àquela forma. Certamente não é um movimento natural. O resto do corpo, encostado à parede, mal se entende. O cabelo enorme é tudo que se reconhecia dela. E, por ser tão enorme e cheio, cobria grande parte do defunto desfigurado.

Se não fosse de mal gosto, ia dizer que havia algo de cômico naquela cena. Deus que me perdoe. Não se deve zombar de quem desvive. Nessa hora, um homem aprende a humildade. É a morte que ri, olha no seu olho e diz: tô te esperando. Quando morre um jovem, o destino está lembrando que ninguém sabe a hora do seu fim.

Foram umas seis voltas no ar antes da faca me atingir o peito.
Apontado. Acertou bem no meio, quebrou o osso e penetrou mais meio palmo.
De primeira, não sangrou pra fora, só para dentro. E eu lá,
engasgada, mas sem dor. Sentindo o sangue na respiração e na boca.
Só pensava na minha mãe me encontrando com as vergonhas de fora.
Isso ela não merecia. Não estranhe que sou mulher. As histórias de
morte matada, aqui neste fim de mundo, são sempre de homens. Mas
foi assim que eu vivi.

Lavínia tinha uns 14 anos quando seu Zé do Braga, benzedor antigo da cidade, deu um passe e um aviso: “É homem em corpo de mulher. Casa não, viu, dona Vera?” A mãe debulhada em lágrimas. A menina chorou também, mas por pouco tempo.

Aquilo não foi uma bênção, foi uma alforria. Lavínia não precisava arrumar a casa, cozinhar, pentear o cabelo. Se não tinha casamento, não tinha destino. Podia fazer o que quisesse da vida. Voltou para a rua, pras brincadeiras e pra liberdade que havia abandonado no início da adolescência. Claro que nenhum rapaz direito ia querer namorar uma largada. Mas a maioria deles gostava de se encostar com ela.

O ventre seco. Nunca peguei bucho. Coceira, sim, das mais diversas.
Seu Zé do Braga sempre me dava uma erva prum banho de assento.
Era ele pagando pelo destino que tinha me dado. Mas num
conformava. Tenho certeza que punha pimenta, achando que a
ardência ia apagar meu fogo. Que nada. Eu vivia livre igual bicho.
Correndo com o vento, subindo em árvore, caçando. Tinha poucos
amigos, todos homens. Mas é assim. De noite, mãe me dava um
carinho. Um tiquinho que sobrava nos seus olhos cansados. Mas eu
sabia que me queria bem. E sabia que desassossegava com meu futuro.
O que ia ser de mim quando ela e o pai morressem.

Ser livre não cabe pra mulher no sertão. Indo e vindo de todo lado, deitando com quem bem quisesse, usando roupa de homem e aquele cabelo enorme. Lavínia era um desconforto pra Matozinhos. A cidade inteira reparava. Os homens, com medo e desejo. As mulheres, com susto e despeito.

Foi Rodrigo, filho de Donato, que tornou a situação insuportável. O melhor partido da cidade arrastando asa para a desvairada. Ela se deitava com ele e com quem mais lhe aprouvesse. Ele prometeu casamento. Brigou com a mãe. Desafiou o padre. Mas quem disse que Lavínia queria casar? Ainda mais com um janota desse, filhinho de papai.

Sujeitinho enojado. Só porque a gente se chegou umas vezes, achou
que era meu dono. Quem ele pensa que é? Flor, perfume, bombom, isso
lá é presente pra mim? Eu avisei: caso não, meu lindo! Vá arrumar
uma noivinha bem limpinha pra tu que eu vou é me espalhar por aí.

Lavínia ficou ainda mais falada depois desse episódio. As adolescentes da cidade passaram a procurá-la. Queriam saber quem era, como vivia. Se espantavam que não fosse bonita, nem loira, nem nada. O que ela tinha de especial que tinha deixado o Rodrigo de coração partido?

Intrigadas com a liberdade de Lavínia, a seguiam por toda parte, tentando entender esse seu tipo. Lavínia não se importava com elas e nem com ninguém. Gostava mesmo era das companhias de farra que eram como ela.

Quando começou a andar com um bando de Laranjal foi o fim da picada. Rodrigo se desesperou. O ciúme lhe cegou as vistas. Tentou se matar.

Eita homem besta! Quem vai querer casar com uma mulher que não
sabe cozinhar, costurar, que não pode ter filhos? Agora, essas meninas
ficam querendo saber o que eu fiz. É óbvio! Me esfreguei toda nele
e mandei fazer do jeitinho que eu gosto. Claro que eu não disse isso. Até
eu sei que não se diz essas coisas pras meninas de família. Mesmo
assim, as mamãezinhas não gostaram nada. Veio aquele bando
de coroas tirar satisfação comigo. Eu mandei a real: guarda lá
as potrinha que elas tão querendo cavalgar e eu não tenho nada com isso.

O crime aconteceu no primeiro domingo da quaresma. Enquanto as famílias iam pra missa, Antonino fazia o serviço. Já fazia uma semana que estava com Lavínia, mas não conseguia se decidir.

Enquanto isso, dona Vera se desesperava querendo notícias da filha. Ela nunca ficou fora por mais de dois dias. Voltava pra comer e pra dormir. A polícia não se moveu para procurá-la. O cabo Ernesto tinha simpatia por ela. Já tinham até se encontrado algumas vezes. Mas achou que ela estava por aí, como sempre. Enquanto isso, Lavínia tentava entender o que estava acontecendo.

Jura que te pagaram pra me matar? Sério, moço? Nunca fiz mal pra
ninguém. Eu ando à toa por aí. Só isso. Quem foi que lhe pagou pra
dar cabo da minha vida: se disser, me deito contigo.

Antonino não era desses. Homem de religião e família. Fazia o que era pago pra fazer e contava com o perdão divino confessando cada morte ao padre da próxima cidade. Não estava em dívida com os assuntos da religião. Mas tinha alguma coisa que não estava direito dessa vez. Matar menina não é coisa certa.

Lavínia conversava com ele. Sabia que ele estava de contrato com sua vida. Não sabia por que ele não acabava logo com ela. Foi lhe contando tudo. Falava da mãe com carinho, dona Vera, tão humilde, nunca deixava faltar nada pra ela. Contou do pai, Sebastião, que tinha vindo do Ceará pro sertão de Minas. Tinha a roça de milho e também era mecânico.

Foi quando Lavínia lhe contou sobre a bênção do seu Zé do Braga que ele resolveu terminar o serviço. Se não era alma de mulher, não tinha perigo de condenar a sua ao inferno. Seguiram para o casebre onde mandaram executar a moça, mesmo lugar que Rodrigo tinha escolhido para tentar tirar a própria vida, ela reconheceu.

Domingo cedo deu cabo da menina. Fez conforme pediram as senhoras da cidade. Ele não acreditava que tamanha crueldade pudesse sair da boca de donas tão respeitáveis. Anotou na memória cada detalhe e não se esqueceu de nada. Mas matou Lavínia rápido, com uma facada certeira no peito: não quis que a menina sofresse tantas crueldades.

Foi-se embora sem receber o pagamento e levou mais de mês pra ter coragem de confessar.


Desenho de Ariyoshi Kondo.

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