• 0

    Frete grátis a partir de R$ 110

Conclave

por Marcela Roldão
Foto de Maria Cecília Chaves Machado para ilustrar o conto "Conclave", de Marcela Roldão.

Marcela Roldão é entusiasta de cachorros invadindo partidas de futebol (e de cachorros em geral). Foi criada pelo Atlântico na areia batida do litoral sul, gosta de escrever com referências musicais ou matemáticas e pode ser comprada com um Toddynho.


p/ gc
te acendi uma vela em cada catedral europeia

Santa Profana foi a primeira de muitos. Tropeçou nos próprios passos buscando um caminho naquele Vazio primitivo. Não encontrando, pavimentou um por conta própria. Muito antes do sétimo dia, já havia feito do vácuo um lar. Semeou o jardim e deu de beber aos pássaros para que um dia fizessem morada nas árvores recém-plantadas. Assim, quem sabe, a vereda fosse mais gentil com quem viesse depois. E enquanto o mundo se dividia entre luz e trevas, pecado e perdão, seu reino permaneceu neutro.

Seus cômpares não demoraram a aparecer. Atônitos, arrependidos, confusos ou
assustados — vinham de todos os jeitos. Alguns mal bebericavam o café, outros alongavam a estadia tanto quanto possível. Entre consolos e revelações, muitas coisas poderiam ser ditas ali. Calava-se, no entanto. Acolhia os temores. Mesmo o mais reticente de seus fiéis encontrava algo a compartilhar por fim. Confissão feita, oferecia-lhe sua bênção para Seguir. O caminho era um só, mas deveria ser descoberto em solitude.

Seguiu o mesmo roteiro por algumas eras. A falta de novidades nunca foi sinônimo de tédio. As chegadas eram gotejo de tragédias individuais ou tsunami de desastres coletivos. (Não que a diferença fosse tão grande assim.) Acompanhava desse jeito as voltas dadas pelo mundo desde os seus tempos. Ia agora em velocidade vertiginosa, mais rápido a cada translação; e mesmo assim, pouca coisa mudara realmente durante esse lapso infinito.

Até um dia.

Até o dia em que atravessa os portões uma garota de tranquilidade desconcertante. Passeia sem pressa, pés leves e mãos sossegadas nos bolsos da calça jeans rasgada. Absorve a paisagem com a intensidade de quem retorna depois de uma ausência demorada e tenta sorver de volta o ninho num trago só. Quando seus olhos enfim pousam em Santa Profana, abre um sorriso torto cheio de familiaridade.

— Cê tem um cigarro aí?

O pedido é inédito. A calma na voz também. Adivinhando a preferência, a anfitriã pega uma caixa de Camel de um armário abastecido até o topo com maços de todas as marcas. Entrega um cigarro para a recém-chegada. Uma pausa, e puxa um para si também. Recebe um riso entre o incrédulo e o cúmplice, mas troca qualquer explicação por um simples dar de ombros. Há sacrilégios piores.

Deixam o fumo queimar devagar por instantes silenciosos. Espirais de fumaça
preenchem o espaço entre as duas. Santa Profana decide então quebrar seu protocolo:

— Você sabia?

A outra puxa um trago profundo.

— Olha, saber, saber mesmo, assim, com certeza, não. Não tem um time de várzea que seja com o seu nome. — Bate as cinzas no chão. — Mas eu acendia velas mesmo assim, rezava pra você, para alguém estar aqui… A gente vem pra cá fugindo da solidão, né? Imagina dar com o nada.

Santa Profana ri uma risada azeda pensando na própria chegada. Um vazio até onde a vista alcançava e a certeza de que ainda viria mais gente.

— Era uma agonia aqui dentro, uma inquietação de arrepiar os ossos… — Acende mais um Camel na ponta do anterior. — Plantei as primeiras flores só pra deixar o lugar mais bonito. Não queria ninguém mais sentindo o mesmo medo que eu senti. Aí vocês começaram a chegar, eu fui ficando… e aqui estou.

Empoleirado no galho mais discreto de um cambuci no meio do jardim, um cardeal observa as duas.

— Ainda.

— O quê?

— Cê ainda tá aqui.

Sobrancelhas se enroscam por trás da brasa do cigarro.

— Você… quer que eu vá embora?

— Eu quero que cê saiba que pode ir se quiser.

— Eu sei disso. Eu escolhi ficar.

— Escolheu?

Uma pausa. Mais longa do que breve.

— Você mesma falou. Imagina chegar aqui e dar com o nada.

A réplica vem em voz suave:

— Meu bem, olha este lugar. Cê fez do nada um lugar seguro. Missão cumprida. Por que cê continua se punindo? Ou vai me dizer que nunca sentiu vontade de ir descansar?

Santa Profana se sente terrena de repente. Busca com a mão o maço de cigarros só para descobrir já ter fumado todos. A revelação de seu desejo mais furtivo desperta uma sensação de nudez quase esquecida. O último encontro com essa vulnerabilidade fora durante seus primeiros dias no Vazio, antes de mesmo da canonização.

— Tudo bem. Cê foi humana antes de ser santa.

Engole a memória a seco. Às vezes, é fácil esquecer.

— E quem vai nos guiar quando chegarmos aqui?

— Só tem um caminho. Não é tão difícil assim achá-lo.

A anfitriã aceita por fim a própria fragilidade. Em estado de graça, renuncia ao seu altar com a mesma facilidade com a qual nele subira alguns infinitos antes.

— Você não vem?

O brilho obstinado no olhar da outra basta como resposta. Não se surpreende ao ver ali uma vontade, aquela mesma, antiga conhecida com quem perdera o contato na dança das estações e de quem se despede de vez inesperadamente.

— Vai indo. Eu já vou.

O cardeal no cambuci canta uma melodia curta. Já anistiada de qualquer sacralidade, a ex-santa, agora toda profana, recebe a bênção de sua nova padroeira para enfim Seguir. O caminho é um só, e é inevitável.

— Bem-aventurada seja.


Foto de Maria Cecília Chaves Machado.

Leave Your Comment

faz um PIX!

Caso dê erro na leitura do QRCode, nossa chave PIX é editora@aboio.com.br

DIAS :
HORAS :
MINUTOS :
SEGUNDOS

— pré-venda no ar! —

Literatura nórdica
10% Off