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Eu li o poema, por Maria Caram

por Maria Caram
Arte: Suzanne, de Auguste Levêque.

Maria Caram é uma cearense nascida em Minas Gerais e nos últimos anos resolveu mostrar seus escritos para o mundo. Publicou o zine Do outro lado em 2022 e, junto com o Coletivo Escrivaninha lançou as coletâneas de contos Itinerários para o caos e Lava sob neve. Entre os textos e seu trabalho como comunicadora, cria canções com a motossera, cuida de gatos e plantas e assa brownies pros amigos.


Li para Flávia meu poema sobre O homem que caiu na terra e ela gostou te conto isso dizendo para minha surpresa ela gostou e você ri você ri porque acha que é sem importância que alguém goste ou não o importante é que eu faça de qualquer forma e mostre de qualquer maneira mas não te mostro porque você nunca gosta ou nunca demostra você demonstra que se preocupa mas nunca que gosta eu conto isso na terapia e Paola me diz que preocupação pode ser um jeito de gostar mas eu sei que nesse caso não nesse caso é só algo tão mais forte que você que atropelou tudo e destruiu aquele caso sem afinidade ou apego que tivemos por um breve período do outono passado eu também me preocupo mas nunca demonstro ou demonstro pouco porque sei que preocupar é um jeito de gostar e não quero gostar mas Freud diz que aquilo que mais tememos é o que mais queremos e sigo assim não querendo gostar e já gostando tanto tanto que dói mas voltando ao poema e à Flávia conheci Flávia num dia que mudaria minha vida e tenho uma foto com ela nesse dia quando ainda não sabia que esse dia mudaria tudo e tanto e também não sabia que tanto tempo depois ela falaria de Marília Garcia das fotos que Marília Garcia fez em Paris e que me fariam voltar a olhar as fotos de Paris e pensar que nunca mais verei Paris pela primeira vez e que de novo recorrendo a psicanálise viver um sonho é o primeiro passo para a esquizofrenia ou algo assim sou como Benjamin cito quase de cor mas meu coração você sabe não funciona muito bem pois bem a Flávia gostou do poema em parte porque ela sabe da história por trás do poema do livro por trás do poema da minha obsessão em articular referências várias desde que comecei a ouvir rap e repito por aí cheia de autoironia que o rap salvou minha vida em parte ela sabe a história porque me conhece um pouco mas também porque conhece a dor essa dor que todas nós conhecemos em algum momento a dor que senti toda de novo quando Carlos me disse que só queria ficar perto ou quando Isabel falou na minha cozinha ele foi horrível Maria na mesma voz e no mesmo tom que alguém já tinha me falado de você e acho dolorosamente irônico que você apareça nessa história justo nesse ponto pois pouco tempo depois eu disse a alguém uma coisa sobre você isso lá naquele tempo quando você tinha sido horrível e a pessoa me respondeu você é horrível Maria você se cansa das pessoas como você consegue fugir no meio da festa e depois fugir no meio da noite e depois chorar como se fosse importante você é horrível Maria então tentei não envolver mais ninguém no meu ser horrível tentei evitar que meu nome fosse dito em cozinhas quentes pelo álcool e pelo chocolate ela foi horrível Diogo e foi assim que vi meu casamento terminar enquanto eu tentava fugir de ser horrível naquele bar com sinuca e jukebox no centro de São Paulo já amanhecendo onde a moça me puxou pelo taco e perguntou como é ser olhada assim como quem é amada incondicionalmente e eu ri e um moço disse que infeliz no jogo mas muito feliz no amor bem se via e de novo entrei no primeiro táxi e desapareci e nunca pude dizer para ninguém em cozinha nenhuma em ligação nenhuma nunca pude dizer para ninguém a não ser para uma única amiga numa praça horrível que nem era uma praça a família nunca soube apenas achou que cansei e fui e foi assim com todo esse cansaço esse choro esses textos acumulados as músicas que ficam na minha cabeça as lembranças confusas que olhei para aquele livro na estante e pensei tem meu nome dentro desse livro mas só posso abrir se encarar o fato de que eu sou horrível horrível como você horrível como o rapaz que entristeceu Isabel ou aquele professor por quem uma amiga se apaixonou mas não queria casamento-filhos-casa-cachorroro e isso eu não podia encarar não podia aceitar que apesar de tudo de todas as vezes que fui escondida renegada colocada em segundo plano apesar de me achar desesperadamente parecida com a Fleabag da primeira temporada que todo mundo acha divertida porque transa o tempo todo mas é só terrivelmente solitária e autopunitiva não podia aceitar que apesar de ser a pessoa tão legal e tão paciente e tão cordata eu também era terrível terrível como um homem e foi para não encarar essa verdade mas também não ser sufocada por ela que escrevi o poema o mini-poema quase um haikai e mostrei para a Flávia e ela gostou e é por isso que eu nunca vou te mostrar o tal poema porque eu queria que você gostasse não exatamente do poema mas de mim.


Arte: Suzanne, de Auguste Levêque.

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