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O último piolho

por Gabriela Ripper Naigeborin
Foto de Leopoldo Cavalcante, para ilustrar o conto "O último piolho", de Gabriela Ripper Naigeborin.

Gabriela Ripper Naigeborin (mira) nasceu em 1997 em São Paulo, onde vive atualmente. Estudou literatura comparada, psicologia e cultura moderna na Universidade Brown e na Universidade de Cambridge. Hoje trabalha como assistente editorial na Ubu Editora, além de atuar como revisora de texto independente (@gabriela.ripper).


I. André na Marília

Encontrei. Encontrei um, dois, três. Pera que tem mais, pode crer que tem mais. Uma gota de água minúscula, plástica, pronta pra explodir, envolta numa gosminha tipo Super Bonder, com gotinhas menores de diferentes tamanhos grudadas na parte de baixo, todas concentradas, brilhantes. É inteiro transparente, dorsal, encerado, mas a parte de cima tem uma transparência marrom, igualmente aquosa, só que suja. Engraçado que os associem à sujeira, porque é um bicho tão alvo, tão de água, que parece bendito. Se Deus tivesse nascido de um ovo e não de uma mulher, seria assim, desse ovo, desse ponto escondido na cabeça de uma pessoa, uma gotícula de nada, que os outros acham suja. E por que, por que acham suja? Por ser bicho, por ser vivo? Nesse caso, por ser quase vivo, né. Porque ainda não eclodiu – não se preocupa, já falei que pode tirar as mãos, senão vai atrapalhar. E pelamordedeus calma, que por enquanto só achei os ovos. Não tô rindo da sua desgraça, ainda mais porque meu estado tá muito mais lamentável, né. Eu tô com piolho mesmo, em você só achei lêndea. Por enquanto. Tá, vou parar. De rir, não de procurar, ô, boboca. Ih, mexeu. Tô brincando, você que mexeu. Olha aqui pra você ver. Tá vendo? Não é nada. Quer apertar?

II. Pediculus humanus capitis

Ora pro nobis: Rogai por nós.
Non ducor duco: Não sou conduzido; conduzo.
Cogito ergo sum: Penso; logo, existo.
Pediculus humanus capitis: Pezinhos da cabeça humana.

III. Vida do piolho

Criatura detestável que abre o cu para soltar cem, duzentas, trezentas como ela. Eu sei que não é o cu, mas é como se fosse, porque o ruim sai todo do mesmo lugar. Mas esta piolha, que poderia chamar Rebeca ou talvez Sara (ou talvez Marli ou talvez Diane), é estéril. Quase estéril. Ela consegue soltar uma lêndea pelo cuzinho dela – uma lendeazinha só. Ela vai de cá a lá, bailarina dos fios pretos escuros, descendendo em corda-bamba ao modo dos moribundos, no tzic tzic de uma dança macabra em que é ela a peste, sem ossos próprios, sem sangue que seja só seu. Então encontra um cantinho, aqui, não sabemos se atrás da orelha ou mais abaixo, na nuca, ou no epicentro superior da cabeça, porque ela não sabe; e que poderia ser outro, em outra cabeça até, mas não é, ela escolheu este lugar e agora faz força para expelir a pequena do corpo dela. Veja só como ela crê, com a obstinação monumental das fêmeas quase estéreis, que vai conseguir produzir algo com valor, algo com vida, que viva um dia sozinho fora dela e possa tomar seu lugar; ela está cansada e quer que tomem seu lugar que nenhum outro piolho nem ninguém quer tomar. Dói para produzir este ovinho gelado, envelope de muito pouco, invisível, que ela bota sobre um espesso úmido e escuro, pingo de gelado no quentinho, e fica ali, em cima da ovinha, porque ela torce por uma companheira fêmea, minha lendeazinha, ela diz, e choca, choca a ovinha dela como se fosse uma galinha, sem saber o que é uma galinha, sem ter palavras como “galinha”, “piolho”, “humano”, sem separar cabeça de pé e macho de fêmea, mas ela quer muito botar essa ovinha e salvar essa ovinha, enquanto ela própria, ao cabo de trinta ou quarenta parcos dias de vida, vai definhando, o sangue finíssimo que ela retém, às mostras, num bolsão do corpinho finíssimo, se esvaindo, um sangue que ela nem pode dizer que é dela, mas talvez seja; achado não é roubado ou, se for, então o roubado passa a pertencer a quem o roubou, e tanto faz que tenha sido roubado. O que importa é que assim ela vive, assim viveu, assim percorreu, durante trinta ou quarenta dias, o couro cabeludo do André, o único macho que, mesmo sem entender como, amou, do jeito parasita como amam as piolhas quase estéreis que se veem, no fim da vida, adensadas no mais espesso, sozinhas, grávidas de um milagrezinho detestado por todos, menos por ela.

Em sete dias Deus fez o mundo e em sete a dez dias nasce uma nova piolha.

IV. Coceira insuportável

Hoje acordei com uma coceira horrível. Começou com uma picada anestesiante no lóbulo da orelha esquerda, circundou a orelha em uma curva ágil e preguiçosa, como uma gata se espreguiçando que, uma vez acordada, se eletrificava, tzic tzic, até chegar no meu pescoço; nisso, começaram os arranhões, mordidinhas de verdade e também mordidas em falso que eu dava a cada “ai” e, ágil como mil ventinhos cortantes, mil agulhinhas de seis patas, foi se esconder na nuca, na penugem rala da nuca e nos pelinhos-cabelinhos entre a orelha e a face, que sempre pulam pra fora quando a gente prende o cabelo, por que eu fui deixar o cabelo crescer?, espalhando até o cume da cabeça, descendo para a fronteira entre testa e cara e, de repente, desceu mais, para longe, para o fundo; tentei por tudo parar a coceira sem meter a unha, que machuca; primeira com a mão espalmada, massageando o membro para ver se aquiescia, mas ele, intolerante, pedia mais, pedia dedos, primeiro o polegar, que é mais cego e borroso, mais incerto; depois pediu o médio, o mais longo, o líder, no que logo tive de enfiar também minhas unhas, meu dedo completo, e apertei com a mão toda, alternando entre macio e pontiagudo, entre raspão e carícia, entre o quente da carne com sangue, que é o que se quer e o que se pede, e o inerte da unha, que é o que se quer e não se pede, um neutro que machuca, como faca sem serra mas com força.

V. Morte do piolho (ou: Como matar piolhos)

Primeiro passo: Molhe a cabeça. Não é recomendável entrar acompanhado no chuveiro. Posicione a cabeça sob a boca, deixe a água jorrar farta por alguns segundos, sinta a pressão até penetrar todos os fios, encharcados. Apronte-se para o passo seguinte.

Segundo passo: Com uma toalha, remova o excesso de água, tomando o cuidado de manter os fios úmidos. Entorne sobre a cabeça um terço da garrafa de Pediletan (o procedimento deve ser realizado durante três dias). Espalhe o conteúdo por toda extensão do couro cabeludo, sem fazer espuma, até o branco leitoso da substância se dissolver completamente no substrato proteico que o recebe. Envolva os cabelos com uma touca que deve ser mantida por trinta minutos, para sufocar bem a criatura. Os piolhos ainda não morrem neste estágio. A substância exerce a dupla função de desagregar as lêndeas dos fios de cabelo, exercendo sobre esses ovos um efeito de dissolução da cola que as mantêm agarradas ao couro cabeludo, e de paralisar as ninfas e piolhos adultos. Não é certo, mas os dermatologistas afirmam que os bichinhos ficam em êxtase nesse estágio do tratamento, como que tomados por uma descarga de prazer que nem a veia mais nutritiva poderia lhes oferecer. Os entomólogos discordam.

Terceiro passo: Remova a touca e enxague os cabelos. Xampu, condicionador e sabonete são opcionais. Despeje sobre os cabelos uma mistura caseira de cerca de 300ml de água e vinagre em partes iguais. Para maior precisão nesta etapa, também é possível umidificar um algodão com a mistura e com ela permear os fios, da raiz às pontas. O vinagre não atua sobre as ninfas e piolhos adultos; o objetivo desta etapa é neutralizar as lêndeas ainda não nascidas.

Quarto passo: A parte mais infame do processo consiste em passar um pente fino nos cabelos, da base do couro cabeludo até as pontas. Além de permitir uma melhor visualização de lêndeas e piolhos, esta etapa permite remover do cabelo também as cápsulas vazias de lêndeas já nascidas. Muitos chamam essas cápsulas de “piolhos mortos”, pensando se tratar da carcaça dos bichos assassinados, mas trata-se de um equívoco. Atenção: não tente estourar nem os piolhos, nem as lêndeas, nem as ovas vazias.

Quinto passo: Se nada disso funcionar, resta raspar os cabelos, ou então morrer – na falta de sangue, o piolho perece fielmente junto do hospedeiro, ou então, se for esperto, trata de sair logo dali e buscar um novo hospedeiro. O contágio, no entanto, só se dá através do compartilhamento de artefatos pessoais, especialmente peças destinadas à cabeça; ou se as cabeças se encostarem, por exemplo, no momento de posar para tirar uma foto sorrindo; ou então através do contato íntimo. Por motivos de saúde, não é recomendável realizar com o portador do piolho nenhuma das atividades elencadas anteriormente, especialmente se ele estiver morto. Por fim, é importante salientar: contrariando a crença popular, piolhos são insetos ápteros, ou seja, não voam. Eles nem mesmo pulam. E tendem a aparecer nos couros cabeludos mais limpinhos. Gisele Bündchen, por exemplo, já teve duas crises de infestação de piolhos. A segunda delas foi em 2014, pouco depois de ter recebido uma notificação da escola de seu filho Benjamin, então com cinco anos incompletos, acerca da ocorrência de três casos de pediculose na turma. A primeira vez foi em 1996, na primeira aparição da jovem modelo na New York Fashion Week. Onze modelos e dois designers foram contaminados, além de inúmeras outras figuras ilustres que participaram do evento. Destes, nem todos desenvolveram o sintoma típico da coceira. Dentre os que desenvolveram, todos, exceto um, trataram o caso em absoluto sigilo, especialmente uma das modelos, que se recusou a aceitar o tratamento até a coceira tornar-se insustentável. A dermatologista especializada encontrada por seu agente assegurou-lhe de que o tratamento era somente preventivo, mas mandatório. Um dos designers até hoje não se deu conta de que se tratava de pediculose. Entre seus pares, e na mídia, comentava-se que ele desenvolvera, depois dos quarenta anos, o curioso cacoete de coçar a cabeça, a parte de trás das orelhas, a nuca.

VI. Marília no André

Ele sentou-se à frente dela nos degraus que davam para o jardim nos fundos da casa. Ela, comprimindo o corpo dele com os joelhos, permitiu que ele descansasse as costas na barriga dela. Como sutil agradecimento, André acariciava com o polegar os dedos dos pés de Marília, apoiados no degrau na altura de seus ombros. Como era um ângulo pouco natural para que André lhe fizesse esse carinho (por mais alto que ele fosse, os degraus também eram altos e os pés dela estavam um pouco demais para trás do corpo dele), Marília tomou nota do gesto, comentando, em tom jocoso, que ele parecia gostar tanto dos pés dela que literalmente se desdobrava para poder apreciá-los. Gosto dos seus pés, respondeu absolutamente sério, tanto quanto eu gosto de todas as outras partes do seu corpo. Marília continuou penteando os cabelos longos do homem alto e magro que ela abraçava com as pernas. Comprimiu-as um pouco mais, de leve, em retribuição pelo carinho que ela não sabia aceitar com palavras. O pente fino capturava alguns poucos fios de cabelo preto, grosso, cabelo de animal, repuxados até o fim. André não sentia o cabelo sendo arrancado ou, se sentia, não dizia nada, porque fazia parte. Não estou achando mais nada. Te proclamo oficialmente livre de piolhos, ela anunciou, secretamente desejando que não, que ele não estivesse livre, que precisasse dela ali por muitos dias mais, firme, seguindo a rotina de pentear os cabelos dele fedendo a vinagre, com mãos que tudo viam e olhos como pinças que não deixavam passar nem um piolho, nem um gesto, nem um dia em que os dois não estivessem juntos, piolho e lêndea, André e Marília, tentando pôr fim àquela coceira danada.


Foto de Leopoldo Cavalcante.

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