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Rita Almeida Zimmermann

por Carla Guerson
Foto de Luísa Machado para ilustrar o conto "Rita Almeida Zimmermann", de Carla Guerson.

Carla Guerson é escritora, feminista, geminiana, incomodada. Capixaba, nascida e criada em Vitória/ES, onde reside. Escreve contos, crônicas e poemas e tem textos publicados em diversas revistas literárias, coletâneas e antologias. Autora do livro de contos “O som do tapa” (Editora Patuá, 2021).


– Pode repetir, por favor?

Respondo pela terceira vez meu sobrenome, enquanto guardo o cartão de crédito: Zimmermann, com Z. Dois emes no início, dois enes no final. Não, o eme do meio é um só. Z-I-M-M-E-R-M-A-N-N.

A recepcionista me olha com ar de curiosidade e me entrega a ficha para assinar. Tem um eme no lugar errado. Devolvo e faço ela refazer a ficha até que leio meu nome perfeitamente escrito no papel. Rita Almeida Zimmermann.

– Vai chegar mais alguém?

Pego a chave do quarto e subo sem responder.

Deito na cama arrumada para dois e me espalho. Os grampos do penteado me incomodam. O vestido pensado para ser tirado com a ajuda de alguém não me deixa dobrar. Fico estirada como um cadáver, os pés para fora para não sujar os lençóis. Deixo cair os sapatos de verniz feitos sob medida que não pretendiam terminar ali, em um hotelzinho do centro da cidade.

Adormeço um sono profundo sonhando com o sim seguido do não.

Acordo sem saber as horas. As lentes de contato coladas na parte interna dos olhos secos me impedem de abri-los. Levo a mão no rosto para afastar um tufo duro de cabelo, retiro um cílio postiço da bochecha. Não consigo decidir o que fazer primeiro, tantas coisas me incomodam. Tento pegar no sono novamente, mas não consigo, me levanto e vou até o banheiro.

A imagem que vejo no espelho é ainda pior do que eu imaginava. Descabelada e borrada, pareço uma assombração. Jogo fora as lentes, os cílios, os grampos que consigo retirar dos cabelos, tateando. Meu braço dói como se eu tivesse passado horas na academia. A falta de correção da miopia me impede de enxergar qualquer coisa além de dois palmos, só vejo vultos. Sou eu mesma um grande vulto envolta em um enorme vestido branco que não consigo tirar.

Abro a cortina, lá fora ainda escuro. Em cima da mesa de cabeceira, um rádio despertador. Procuro uma estação para sintonizar, ouço Cassia Eller me dizer que alguma coisa aconteceu, tá tudo assim tão diferente. Na gaveta, dorme uma Bíblia empoeirada.

Talvez eu devesse abri-la e procurar uma direção, como fazia na minha infância, quando minha avó me deixava de castigo copiando versículos da Bíblia. Passava o dedo devagar na lombada e abria, escolhendo de olhos fechados onde o dedo pousaria. Lia com coragem querendo entender e ser abraçada pelo que me fosse revelado. Escrevia repetidas vezes no caderno as palavras de Isaías: “ai de vocês que fazem leis injustas, leis para explorar o povo!”. Já era comunista e não sabia.

O porteiro quer saber quem quer falar. Rita Zimmermann, respondo, me apossando mais uma vez do sobrenome que insistia em rejeitar. O sobrenome é meu, não dele.

Minha avó morreria, se me visse agora. Sorte já estar morta. Tanto chorei por não ter ela comigo no dia do meu casamento. Agora agradeço por ela não ter visto a neta que tanto se esforçou para educar abandonar uma audiência cheia e o pastor com a Bíblia na mão. Deve ter penitência dupla no inferno para quem dá as costas para a Bíblia.

Devolvo o volume fechado para a gaveta, não conseguiria ler, de qualquer forma. Desligo o rádio e decido sair. Os primeiros raios da manhã apontam e eu preciso de um café. Preciso tirar esse vestido. O celular dentro da bolsa de mão está descarregado. O carregador está dentro da mala média no porta malas do carro que daqui a algumas horas estaria partindo rumo ao aeroporto. Penso em Augusto, será que vai fazer a viagem sem mim?

Na recepção, a mesma moça de ontem cochila em uma cadeira velha. Penso em acordá-la, mas desisto. Apenas largo a chave no balcão sem fazer barulho e saio andando pela cidade que ainda dorme. Paro no balcão do boteco da esquina e peço um café amargo. O atendente me olha com menos estranheza do que eu esperava. Me questiono se costuma ver noivas desmanteladas com frequência.

No ponto de ônibus, procuro na bolsa e no pensamento uma pista que me diga para onde seguir. Seguro a chave de casa, a casa que não é mais minha, por ser nossa. Imagino Augusto deitado na cama desarrumada ou sentado, insone, na poltrona próxima à janela.

Encontro papéis de uma vida que não me pertence mais, recibos de loja de móveis, o canhoto do estacionamento que paguei no último dia que fomos ao cinema juntos ver o filme que ele escolheu.

Abro a carteira e releio o nome na identidade: Rita Almeida Zimmermann. Com dois emes no início e dois enes no final. É um nome difícil, por que você não tira? – a voz de Augusto. Sim, é possível retirar o último sobrenome e colocar o do marido, é só assinalar aqui neste campo – a voz do atendente do cartório. Você nem gosta do seu pai mesmo – dessa vez, a voz é minha.

Dou o sinal e subo no ônibus em direção à casa de quem não me deu muita coisa nos últimos anos ou em nenhum deles. Um pai ausente que, não sabendo lidar com a morte de minha mãe, me entregou para a sua mãe. Que não estava nos aniversários, nas apresentações de balé, nem na formatura. Que não foi convidado para o meu próprio casamento. Que não me carregou ao altar.

Na portaria do edifício antigo, peço para falar com Otávio, do 503. O porteiro quer saber quem quer falar. Rita Zimmermann, respondo, me apossando mais uma vez do sobrenome que insistia em rejeitar. O sobrenome é meu, não dele.

Na porta do apartamento, um pai amassado me recebe: Oi, Rita, o que aconteceu?

– Preciso que você tire esse vestido de mim.


Foto de Luísa Machado.

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