Gabriel Cruz Lima nasceu em Mairiporã, em 1998. É autor da coletânea de contos O Último Romântico (Bar Editora, 2020). É pós-graduado em Escrita Criativa pelo Instituto Veracruz e Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero. Estuda Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Um Dia de Domingo (Aboio, 2024) é seu segundo livro de contos.
Três sets a dois
É preciso aprender a atirar.
— Limão e gelo, com adoçante. Limão em rodelas, por favor. Se puder também mudar o canal da televisão seria bacana, Josué. O Brasil feminino tá jogando no vôlei. E uma salada de agrião com palmito.
Meu garçom ficou me olhando com a caderneta na mão, a caneta batendo na espiral, esperando que eu tirasse o deles da reta e dissesse, Lola, nós não temos essas coisas aqui, você sabe.
Pedi uma coca e fiz um sorriso sem dentes para o Josué, nunca poderia ser legal mandar que o pessoal da cozinha fizesse
agrião com palmito de madrugada e concordar que mudassem da reprise da luta para o vôlei. Dei um sim com a cabeça e ele
compreendeu a ordem. Sozinhos, perguntei para Lola:
— Está evitando refrigerante, né, filha?
— Óbvio.
Aquele silêncio gostoso.
Enquanto Josué estava trepado numa cadeira tentando mudar de canal, ouvi alguns protestos.
Virei pra ver quem falava, dois homens sentados na nossa diagonal com o uniforme de uma empresa de telefonia comiam nosso frango ao molho especial e reclamavam. Fiquei com a impressão de conhecer os caras. Josué me olhou do alto da cadeira, esperando uma indicação, um sinal dizendo a quem obedecer, a eles, ou a mim e Lola. Cruzei os braços e depois fiz um joia pra ele. Isso, garoto, que continuasse trepado no banquinho e achasse o botão do aparelho.
Como eu vi que ele não alcançava o receptor que tinha ficado dependurado atrás da tv, me levantei, fui até o cangote dele e sussurrei:
—Vê com a Dona Márcia, por favor, se o controle não está lá atrás com ela e já pede pra ela mandar as bebidas.
Os homens olharam minha conversa com o Josué e, por vir das dúvidas, ajeitei a calça, jogando a fivela do cinto para a altura da barriga, tirando a camisa de dentro e deixando o volume nas costas mais aparente, nem tanto que pudesse ser visto, mas nem tão pouco que não fosse ameaça.
Voltei para Lola e me sentei ao seu lado, segurando suas mãos.
— Então, filha.
— Então o quê?
— Estou esperando.
Permaneci com as mãos em cima das mãos dela e fiquei sorrindo da mesma forma que fiz ao Josué quando pedi para ele buscar a salada, que me parecia o gesto pedante e fácil para ela pedir desculpa por ter me tirado do serviço no sábado à noite. Lola abaixou a cabeça. Vi um galo na testa dela.
— Caiu, foi?
— Caí, pai.
Reparei nos dedos, sem o anel de compromisso com o namorado.
— Não mente.
Ficamos de mãos dadas sem tocar no assunto e eu estendi meus braços como se quisesse chegar até ela. Por causa da nossa distância na mesa, ficamos num meio gesto, sem que nenhum de nós se levantasse para chegar no abraço.
O que eu ia fazer também se ela não queria falar?, não dá pra ficar falando besteira e ameaçar, conta tudo sobre esse merda, filha. Se ela não quer dizer, ela não quer dizer, violência faz parte.
Ela escorregou das minhas mãos e apontou para o Josué, que tinha voltado a se trepar na cadeira:
— Acho que ele não conseguiu mudar o canal. Será que eles vão demorar com a minha salada?
— Não vão não, já, já eles trazem.
— Estou com fome ainda, mas já tinha comido na casa da mãe aquela lasanha de abóbora com queijo. Sem pimenta síria.
— Ainda bem. Meu médico disse que pimenta síria acaba com casamentos.
— Larga mão de ser bobo.
Dona Márcia nos interrompe com a bandeja, trazendo as bebidas. Troquei o refrigerante de lugar com a água com gás para
ela beber um pouco de açúcar:
— Cosquinha gelada para a senhorita.
— Besta.
Dei um sorrisão para tentar agradar, a ponto de mostrar as obturações. Normal, nessas situações, a gente faz coisas para agradar mesmo, e, agora, penso, talvez essa tenha sido a última vez que me referi a um refrigerante assim para ela: cosquinha gelada.
E ela riu, ainda bem, e já foi pegando o canudo do porta–guardanapos. Olhei os homens, quietos, parecendo sondar o
ambiente, mas emendei com ela para continuarmos numa boa:
— Não sei se tem um refrigerante tão gostoso quanto coca. Talvez porque seja a que mais detona a gente.
— Eu estava tentando parar. Mas sei lá, a partir de hoje, desisti de desistir da coca cola.
Ela abriu a embalagem do canudo e percebi como ela fazia as mesmas coisas que eu ao tirar o papelzinho: amassava, formava
uma bolinha e ficava esfarelando com os dedos e a palma da mão até formar uma esfera perfeita. Apoiei meus indicadores na mesa e juntei os polegares, como uma trave. Ela compreendeu e deu um peteleco para dentro do gol. Comemorei:
— É gol do São Paulo.
— Do Palmeiras.
— Eu fico surpreso como eduquei mal você.
Ela franziu o nariz, mostrando a língua e começou a tomar a coca. Nem bem subiam as borbulhas do canudo e ela ficava digitando sem parar no celular. De onde eu estava não dava para ler o que ela escrevia, mas parecia bastante coisa pelo tamanho das mensagens, e, pela foto de contato, entendi que era o namorado. Ela interrompeu a conversa no celular:
— Mas e a salada de agrião, pai?
— Lola, não tem nem dez minutos que eu pedi. Calma. Resolve suas coisas aí primeiro, já, já eles trazem.
E digitava à revelia. Se ela esqueceu do vôlei no outro canal, imagine do pai. Olhei para trás para checar os homens. Aos poucos, reconheci os dois, pé de chinelo, nada demais, mas que merda. E a memória que eu tinha deles foi crescendo e eu fui ficando meio puto com a presença dos caras.
Saquei o maço de cigarro do bolso da camisa para me acalmar, seguido de uma bufada para que ela percebesse que eu queria atenção. Não sei, eu sou um cara mau. E caras maus precisam de atenção.
—Me dá o isqueiro, menina.
Lola entregou o fogo rosa-choque e demos risada. Eu poderia ter repreendido com qualquer aviso sobre fumar na adolescência, mas seria falso. Falso, porque não considerava um problema ela fumar seu cigarro, e falso, porque eu já sabia: cheiro de nicotina, furo no moletom, rinite. Ofereci um para ela.
Lola colocou uma mão na frente do cigarro para tampar o vento do ventilador. Experiente.
—Só lembra de soltar a fumaça pra fora que aqui também não é bagunça. A Dona Márcia colocou essa toalha quando eu falei que ia te buscar. Você achava bonito quando era criança.
—Elas têm seu charme.
—Meu pai me ensinou a fumar com uns 12 anos, me agradece depois que te dei uns aninhos de folga.
—Na época que ele te levava para pescar e você soltava fumaça para espantar os mosquitos?
—Foi mais ou menos isso sim. Na verdade, não. Não precisa arregalar esse olho, não é bem isso que você tá pensando.
—Continua. Você pode pedir para o Josué trazer o cinzeiro?
—Batendo pra fora da janela não tem problema, depois o Josué limpa se cair alguma coisa no chão. Só não deixa cair na mesa que esse pano vermelho e branco não acha mais. Mas enfim, eu nunca vou te falar a verdade sobre como eu comecei a fumar, vai que você se inspira.
— Às vezes você age como um idiota.
— Pois é, seu pai. — E apontei para a latinha de coca.
— Eu realmente estou com fome, pai.
— Você não quer uma cerveja no lugar de refrigerante ou água? Aí eu já aproveito e cobro da sua salada.
Ela sorriu. Me levantei e fui manso até Josué, que agora estava sentado na cadeira que ele tinha usado para tentar mudar de canal. Os homens pareciam ter esquecido a televisão e palitavam os dentes. Encostei no ombro dele e ele se assustou.
—Josué, deixa a TV de lado e traz aquela cerveja gelada e a cachacinha.
Nem bem dois minutos, Josué trouxe a cerveja, a cachaça e uns aperitivos que eu não pedi. Azeitona, ovo de codorna e salame. Ele fazia de sacanagem, só pode, o salame está caro, porra.
Levantei da mesa e pedi que ele me seguisse. Passamos na frente da televisão e, como os dois caras no fundo só tinham o palito na boca para se entreter, tive que ouvir uns protestos.
Gravei o rosto de cada um. Era isso mesmo. O maior deles era um maluco fino, bigode de leite com Nescau, sei quem é: Nestor. O segundo, pela cara redonda, alcunha de Bolacha. Da janela do balcão para a cozinha vi a Dona Márcia mexendo no celular.
—Bonito, hein, Dona Marcia, trabalhar que é bom, nada. E você nem pra cobrar, Josué. Não tem uma rúcula aqui? Cadê o controle da televisão? Vocês dois não acharam nada?
—Não, Bigode, olha isso, vem cá, é coisa importante. Tô vendo esse clipe de um menino que tocou fogo na casa.
Ela foi esticando o celular e eu afastei da minha frente.
—Que belas merda que a senhora anda vendo, hein, Dona Márcia, mas e a salada?
— Sei lá.
— Sei lá, sei lá. Eu só queria um agrião, uma rúcula, Lola tá com fome.
— Olha, só tem esses alfaces aqui que sobraram do almoço. Ainda dá pra dar um jeito se apanhar bem as folhas.
— Corta em tirinhas bem finas e manda bastante com shoyu que a Lola não vai reclamar depois. O Josué vai servir
pra ela e manda um chocolatinho também, desses com coco, que eu sei que ela gosta, pra dar uma reforçada.
Enquanto Dona Márcia terminava de lavar e picar a alface, eu observava os dois caras terminando a garrafa de cerveja.
Daqui até eles daria mais ou menos quinze passos contornando o balcão. Se eu pulasse por cima, uns cinco. Pela maneira como ele segurava o copo, dava para entender que Nestor era canhoto e, observando mais, tinha o dedo anelar faltando. Beleza, mas Bolacha era destro e não tirava a mão de dentro do macacão.
Pensei que ninguém seria tão estúpido a ponto de vir armado no meu restaurante. De tentar me assaltar, então, jamais.
— Josué, depois que você entregar a alface dela, volta aqui. Mas vai rápido.
Se fosse como na minha época, eu atirava de dentro da cozinha mesmo. Mas decidi que nós dois chegaríamos na boa, sem alarde.
Pedi pro Josué levar outra cerveja pra eles e fui atrás. Ele na minha frente, corpão e a bandeja como cobertura. Foi o tempo dele colocar na mesa e eu contornar o pescoço do Bolacha. Levantei a bainha da camisa e deixei que os dois vissem a 9 milímetros prata com um palhaço no cabo. De onde eu estava dava para ver Lola de costas, comendo a alface. Apontei com o bico da arma em direção a ela.
— Minha filha está passando por um dia difícil. Eu sei quem vocês são.
— A gente só veio aqui tomar cerveja e falar com a Márcia.
— Não se faça de desentendido. Chega disso, Bolacha. Fica tranquilo, tamo só conversando, né.
— Eu não conheço ninguém com esse apelido.
— Eu não sou otário. Vocês tão armados, eu sei. Nem pense nisso que eu atiro. O que passou pela cabeça de vocês para virem aqui assim?
— E desde quando um homem anda sem arma?
— Desde que ele entra no estabelecimento de outro homem, Bolacha. Hierarquia, cara. Hierarquia.
Alisei meu bigode e deixei que vissem a honra ao mérito na cara do palhaço, disse:
— Por favor, pensa bem. Estamos nós quatro armados. Não vai pegar bem pra vocês, pro futuro de vocês em qualquer lugar, pra ela, pra todo mundo.
Lola foi ao banheiro no fundo e fiquei mais tranquilo porque, apesar dela estar acostumada comigo, é sempre uma questão de decência. Tem coisas que minha filha não precisa ver.
— Isso, mão pro alto. Vou tomar suas pistolas, mas eu devolvo, porque vocês ainda são novos, tem muito o que aprender. Quando minha filha sair pode pedir pro Josué chamar o Bigode. Você também, Nestor. Sem cara feia. Isso, meus meninos, Entreguem pra mim. A cerveja é por conta, de pai para filhos. Sem briga.
Demos as costas, a cerveja suando na mesa, as armas deles na bandeja, como troféu. Eu nem gosto disso, de me mostrar, mas ali era uma questão simples, eu estava com a arma deles dois como punição. E quem pune tem que mostrar autoridade, nem que isso signifique ficar por aí com armas rodando pelo bar.
Na cozinha, Dona Márcia ria do vídeo do menino tacando fogo no apartamento. Entramos eu e Josué, levíssimos, e a interrompi apontando pra Josué e sua bandeja.
— Mais uma vez ao resgate.
— Puta merda, de onde veio isso?
— Da cacetolândia, Dona Márcia.
Sinalizei o armário de baixo pra ele guardar as pistolas.
— Só não mexerem nas panelas do fundo daquele armário. E você, Dona Márcia, não invente de querer fazer seu trabalho e cozinhar com essas panelas.
— Dizem que quando você coloca um prego pra cozinhar dentro do feijão afasta a anemia.
— Isso, Dona Márcia, é isso que eu espero da senhora, cozinhar feijão com um revólver dentro.
Risada cúmplice: amizade é amizade e vice-versa.
Coisa boa quando acontece, chama outra. Josué achou o controle da televisão em cima da bancada, atrás do açucareiro, logo acima das panelas que, agora, escondiam os revólveres. Amém.
Saí da cozinha e já deixei no vôlei. Final do último set. Dois a dois. Nestor e Bolacha quietos, cabisbaixos, eu diria até, pensativos, só na cervejinha de cortesia. Lola tinha apagado outra bituca e acabado com a alface, os ovinhos e salame. Fase de crescimento nunca para, pensei. Me sentei e disse para ela:
— Parece que o Brasil está ganhando.
— Eu preciso de um favor seu.
— Tinha uma época que a gente sentava aqui e ficava tentando adivinhar a cor do próximo carro que ia passar. Aposto que vai ser vermelho.
— É sério, pai.
— Sério quanto? Não me interessa saber o que ele fez.
— Pensei que eu podia pegar os cachorros dele, envenenar e deixar debaixo do lençol quando ele não estivesse em casa. Pode ser também chumbinho, coloca dentro da linguiça e lança dentro da casa dele. Bater um prego na unha, qualquer
coisa assim. Ou só me emprestar sua arma, sei lá.
— Tenha modos, você não quer fazer isso.
— Eu quero, pai. O que eu preciso fazer para te provar que eu sou adulta?
— Arranha o carro dele, joga merda na janela da vó. Eu não gosto dele. Mas se é só ameaçar, não precisa de muito, você não quer traumatizar o cara e se traumatizar.
— Tudo bem, desculpa. Mas eu quero fazer alguma coisa. Eu acho que eu preciso. Você nem precisa participar, na verdade, se não quiser.
— Não? Você tem certeza? Se quiser eu dou um jeito.
— Estou nervosa, mas acho que eu consigo fazer isso sozinha.
— Não vai fazer besteira.
— É só um susto.
— Quase dezoito é uma vida no fim das contas. Eu confio em você, mas você precisa ficar tranquila.
— Eu vou me acalmar. No fim do dia, é importante se defender e você sabe disso.
— Não sei se eu queria que fosse assim.
— Eu sou uma mulher.
— Quase uma mulher. Assim como eu sou quase um idoso.
— Nem só pela ameaça, eu preciso disso pra mim mesma.
— Um dia talvez você se arrependa.
— Ou não. Cada um vai fazer o uso que der, pai. Eu sei que você não gosta da ideia, mas no fim, é só uma ameaça.
Ela tem razão. Levanto a camisa e dou minha pistola pra ela, a valiosa. Que ela faça bom uso, outro uso, se possível.
No fim, acho que é isso mesmo: é preciso aprender a atirar.
Você acabou de ler um conto de Um dia de domingo (Aboio, 2024), de Gabriel Cruz Lima. Gostou do que leu? Você pode adquirir o livro no nosso site ou apoiar a campanha na Benfeitoria.
Mais sobre a obra
“Violência faz parte”, reza um dos personagens que transitam entre os contos de Um dia de domingo. Quando dizemos que algo “faz parte”, nos mais diferentes contextos, em regra está implícita a expressão “infelizmente”. Na prosa retesa de Gabriel Cruz Lima, a expressão “fazer parte” reinaugura o olhar: há coisas que fazem parte, há violências e sujeiras que compõem a vida, e nessa integração está também a possibilidade de ternura, felizmente.
Operando num registro entre a acidez das imagens e o balanço oral da linguagem, os narradores de Gabriel Cruz Lima testemunham e performam as brutalidades que atravessam a experiência. Brincando com o riso da maldade e a selvageria do afeto, Um dia de domingo é todos os dias da semana vislumbrados no vórtice dos recomeços.