Rafael Meneses Miranda é graduando em Letras na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Anda de skate e escreve sobre cinema no seu Letterboxd. É colaborador da revista Aboio.
Muito se extrai do final de uma obra de arte. Mais ainda quando essa obra é a última de um autor. Parece então que o final dela não resume só a “mensagem” (conceito maldito) daquele trabalho mas toda a filosofia de vida do artista. Como Aliêksei defende um socialismo cristão no ápice de Irmãos Karamazov, claramente Dostoiévski então também era a favor disso. Tarantino funde todos os seus filmes em Era uma vez em Hollywood (EUA, 2019), seu grande épico e obra panorâmica reacionária, afinal, um único personagem ali é contra hippies, o que, para críticos como Richard Brody, já basta para comprovar as afinidades políticas conservadoras do diretor. Lubitsch, ao final da sua curta e gloriosa vida, estava obcecado com a inevitabilidade da morte e a futilidade da vida de acordo com O Diabo Disse Não (EUA, 1943) (o mesmo poderia ser dito do Scorsese, caso ele morra agora e seu último longa seja O Irlandês (EUA, 2019) que poderia ter sido traduzido para cá como O Diabo Disse Sim). São as declarações derradeiras desses titãs, reflexos tardios da vida.
Mas a verdade é que, tirando o caso de Lubitsch, que realmente já sabia que ia morrer logo e, portanto, qual seria seu último trabalho, essa noção de obra-final-síntese é simplesmente bobagem. Os outros citados que já morreram, por incrível que pareça, não sabiam quando iam comer capim pela raiz. E, lendo qualquer biografia de qualquer um deles, vemos a infinidade de trabalhos inacabados. Dostoievski por exemplo, pelo que indicam alguns manuscritos que deixou, iria fazer com que Aliêksei pendesse bem mais pra revolucionário do que crente na sequência. Esse papo de última-imagem-resumo, além de um clichê, é muitas vezes somente uma facilidade, um macete da crítica para tentar se aproximar, explicar e entupir de sentido esses lindos cantos de cisne que citei, além de tantos outros.
John Ford, como quase todos os grandes cineastas americanos (D. W. Griffith, Allan Dwan, Howard Hawks, Orson Welles e, mais recentemente, Brian De Palma), terminou a vida ostracizado, sozinho, velho, em casa; sonhando em fazer filmes que ninguém queria financiar. Seu último filme, 7 Mulheres (EUA, 1966) foi recebido friamente pela crítica estadunidense.
Tag Gallagher, crítico americano autor do incrível John Ford: The Man and His Films, resolveu então lhe enviar uma carta demonstrando o quanto gostou do longa. Obteve como resposta a carta abaixo, cuja tradução é minha:
“Meu querido Thomas Gallagher, obrigado pela sua carta muito gentil. Talvez só nós irlandeses que podemos apreciar o bom cinema (Meu nome de nascença é Sean Aloysius O´Feeney). Agora Hollywood é gerida por Wall Street + Madison Avenue que exigem Sexo + Violência. Isso vai contra a minha consciência + religião. Novamente, agradeço de coração. P.S. Agora mesmo eu recebi um imponente telegrama do London Film Festival que me informa que “7 Mulheres” foi escolhido como excelente filme americano! Isso é irônico? Ou só a vida?”
Como podemos perceber pelo teor da carta, Ford parecia resignado com a ideia de viver num mundo onde não entendiam mais seus filmes. Profético: no mesmo ano do lançamento de 7 Mulheres, 1966, dois faroestes excepcionais, inspirados parcialmente pelo cinema fordianos, (como todo faroeste que se preze) dirigidos por Monte Hellman, Disparo para Matar e A Vingança de um Pistoleiro, iniciariam o que depois ficou conhecido como Nova Hollywood, movimento que veio para subverter o cinema clássico. O mundo, como em tantos dos que ele criou, estava mudando rapidamente, e ele já tinha percebido.
Quando elas se reúnem naquela inflexível e tensa mesa de jantar, carregam mais que seus corpos: trazem histórias, paixões frustradas, afetos mal resolvidos. Jantam com os fantasmas de amantes passados.
Me afasto do ponto. Sobre o que afinal se trata o último trabalho de Ford?
A história mostra os últimos dias de uma missão católica no norte da China, em 1935, quando um médico é chamado para ajudar no parto de uma das senhoras que vivem nessa missão. Para o espanto de todas, principalmente da rígida líder (Margaret Leighton, aqui iluminada) o doutor (que conhecemos a partir de então só como Cartwright) é uma doutora (Anne Bancroft). Então, duas tensões se estabelecem: a interna, entre as mulheres e as suas conflitantes visões e filosofias. E a externa: os guerreiros chineses liderados por Tunga Khan se aproximam com sede de destruição.
À primeira vista, esse último filme pode parecer diferente dos seus anteriores. A razão é óbvia: o elenco majoritariamente feminino. Ford é um cineasta lembrado por suas colaborações com Harry Carey, Henry Fonda, James Stewart, Woody Strode e, principalmente, John Wayne. Homens que definiram toda uma ideia de masculinidade para o século 20. Mas aqui, a figura masculina é covarde ou incomunicável. O padre é morto como resultado do seu primeiro e único ato de bravura e o grupo dos guerreiros só é discernível entre si por hierarquia e disputas de poder interno.
Já as mulheres são complexas, mais do que já eram em filmes como A Paixão dos Fortes (EUA, 1946) e Caravana de Bravos (EUA, 1950). Quando elas se reúnem naquela inflexível e tensa mesa de jantar, carregam mais que seus corpos: trazem histórias, paixões frustradas, afetos mal resolvidos. Jantam com os fantasmas de amantes passados.
Durante toda a curtíssima uma hora e meia de filme, somos apresentados aos pontos de vistas dessas mulheres, seus preconceitos e inocências, seus arrependimentos e resistências. Somos lembrados que a ameaça se aproxima, desde a primeira cena. Uma das mulheres, uma hora, se pergunta como é a tal da Inglaterra, já que nasceu de pais britânicos mas sempre viveu na China. Outra afirma que obviamente todo mundo come peru no Dia de Ação de Graças.
Ver um filme de John Ford é entrar em contato com algo maior, com um ápice, uma apoteose artística, uma grande conquista, um monumento vivo.
Há duas cenas inefáveis aqui, ou, como descreveu o crítico português João Bénard da Costa, “inadjetiváveis”: a conversa entre Cartwright e Andrews após o controle da epidemia de cólera (como é triste, de um ano e meio pra cá, ver qualquer filme com esse tema) e uma anterior em que Andrews deseja, silenciosamente, a jovem e impressionável personagem de Sue Lindows, Emma Clark.
Como Tag Gallagher descreveu, é muito difícil escrever sobre certas cenas de 7 Mulheres. É impossível colocar no papel som ou movimento, as bases da coisa toda. A primeira cena que eu descrevi como inefável é uma dessas tarefas ingratas de escrever sobre. As duas ali, sob um dos mais belos crepúsculos de Ford (com ele são sempre crepúsculos: algo sempre está acabando, a luz do que era se esvai enquanto uma nova escuridão aos poucos se apodera), se apoiando na árvore central daquele sítio. Cartwright pergunta porque Andrews faz o que faz, porque ela trabalha tanto, pra quê? Uma mulher pergunta pra outra, totalmente diferente: qual o sentido da sua vida? E Andrews, inesquecivelmente, responde:
É a única hora em que ela diz algo honesto no filme. E só um cineasta como Ford, cuja essência da mise-en-scène é a sua imensidão, presente não só nos planos gerais ou no tamanho das locações, mas nos mínimos atos, gestos, olhares, movimentos de câmera e até entonação das vozes de seus atores, pra conseguir tamanha emoção disso, uma confissão de uma senhora. Tudo toma uma proporção gigantesca, lendária, mitológica e histórica com ele. E uma declaração tão ateísta, desoladora sair da boca de uma mulher em um filme do Ford (“o cara que fazia faroestes”, um gênero menor) foi tão desorientador que muitos críticos da época nem souberam como reagir ou classificar o filme.
Como disse o diretor australiano Richard Franklin, é inacreditável que cenas como essa, ou o adeus de Henry Fonda à sua mãe em Vinhas da Ira (EUA, 1940) seja capturada basicamente com cobertura televisiva: dois closes de rostos se alternando em plano e contra plano. Mas Ford transforma isso em instantes mágicos, em que os olhos das pessoas se encontram, pela montagem, no meio da distância entre eles, como se ambos avistassem algo espiritual.
Ver um filme de John Ford é entrar em contato com algo maior, com um ápice, uma apoteose artística, uma grande conquista, um monumento vivo. Seus longas começam quando é dado o play, mas nunca terminam: ficam com você até a morte. O quanto eu chorei os assistindo… Se não ficou claro até agora, é o meu diretor favorito. Todos deveriam assistir pelo menos uns dez (ou quinze) longas dele, penso eu, simplesmente porque ele é o cinema.
Mas voltando. Durante todo o resto do filme Andrews é uma máquina de projeção que acusa Cartwright de todo o tipo de nome e adjetivos que ela pensa sobre si mesma. Morre de ciúmes dela por se aproximar tão facilmente de Emma, que deseja tanto. O que me leva à segunda cena inenarrável do filme: sua fraqueza, sua tensão em olhar Emma de camisola. Ela chega a tremer, perde o prumo, tem que sair do quarto para respirar. É a única cena explicitamente homossexual em um filme do Ford.
Andrews é, em muitos sentidos, a personagem, da longa linha fordiana dos que são obcecados pela forma e ordem (Coronel Thursday, Gwillym Morgan, Nathan Brittles), a que mais se deturpa por esse propósito doentio. Acaba o filme sem qualquer autoridade, abandonada pelas subordinadas, louca, repetindo frases sem sentido, tendo perdido todo protagonismo para Cartwright.
Já a personagem de Anne Bancroft, a Dra. Cartwright, é outro oposto na obra fordiana: o herói, o indivíduo que carrega dentro de si a mudança e que se sacrifica pelo coletivo. Mesmo que seja o primeiro suicídio literal na filmografia dele, já havia outros simbólicos: Ethan Edwards barrado de qualquer felicidade no antológico final de Rastros de Ódio (EUA, 1956), Capitão Kirby York levando outra tropa para uma nova missão suicida na última cena de Sangue de Heróis (EUA, 1948). Seus protagonistas, mesmo quando rejeitados pela sociedade, movem céus e montanhas por elas. É um ato messiânico, que os afasta do grupo e das suas leis humanas, e os coloca perto das leis divinas. Os maiores exemplos disso, dessa tentativa de transcendência, os grandes heróis fordianos, são Lincoln em A Mocidade do Senhor Lincoln (EUA, 1939) e Juiz Priest no filme homônimo de 1934.
7 Mulheres me parece ser parcialmente sobre isso: várias ideias de feminilidade, velhas e novas, (…) se encontrando nessa condenada missão católica no norte da China. É um filme muito pessimista.
A graça (no sentido religiosa da palavra) de Cartwright é o quanto ela se difere dos prévios ídolos fordianos pelo fato de ser uma mulher emancipada por excelência. Fala palavrões, tem o cabelo curto, pratica a medicina e não o catolicismo, admite ter tido um caso com um homem casado, bebe e fuma quando quiser.
Como é fascinante que exatamente essa mulher aja como a cristã máxima! Depois de anos vendo horrores em hospitais pobres, ela sacrifica não só sua vida, mas sua própria identidade: vira a nova gueixa de Tunga Khan, uma mulher numa posição de servidão. Num singelo plano sequência, ela atravessa um corredor lentamente, lampião na mão. Esse disfarce, esse esforço para indicar que vai se submeter a um homem, dói bem mais que seu suicídio.
João Bénard da Costa, ao descrevê-la, escreve:
“E é então – e não deixo de me pasmar de cada vez que vejo isso – que Brancoft ‘muda de sexo’; ou seja, que se veste pela primeira vez de mulher (depois do plano genial em que se vê ao espelho), nas vestes orientais: Tão bela e tão paramentada como a princesa chinesa que antes entrevíramos (num plano igualmente fabuloso cuja necessidade só então percebemos), oferece-se a Tunga Khan com a dignidade e grandeza de Yang-Kwei-Fei, a imperatriz de Mizoguchi”.
Aqui discordo levemente do grande crítico português. Na hora do sacrifício, Cartwright não muda de sexo, ela veste outra ideia de feminilidade. 7 Mulheres me parece ser parcialmente sobre isso: várias noções de feminilidade, velhas e novas, encarnadas em oito mulheres, se encontrando nessa condenada missão católica no norte da China. É um filme pessimista. Mesmo com todo o penar da protagonista, o bebê que nasce é um menino. O futuro, como o diretor sabia, continuaria masculino.
É impossível saber o que Ford sentia, como estava sua visão sobre o mundo na época que o filme foi lançado. O que não é só possível, mas um fato, é afirmar que O Homem Que Matou o Facínora (EUA, 1962), apesar de toda a sua perfeição fílmica, não é o seu último grande filme. O último grande longa dele é o seu último longa.
BIBLIOGRAFIA
– Gallagher, Tag: John Ford, the man and his films
– CCBB – Catálogo Easy Riders (Cinema da nova hollywood)
– Bénard da Costa, João: SETE MULHERES
– Franklin, Richard – Ford, John