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O que fazer com a luz: a questão existencial do cineasta em Antes Que Tudo Desapareça (2017)

por Luiz Afonso Morêda
Cena do filme "Antes que Tudo Desapareça" para ilustrar o texto "O que fazer com a luz", de Luiz Afonso Morêda.

Luiz Afonso Morêda é estudante de cinema e cineasta. Teve a cabeça contaminada pela escrita depois de dois anos estudando jornalismo na faculdade e procura expurgar isso escrevendo sobre cinema. Vive num trânsito entre Recife e São Paulo, e é movido por aquilo que experiencia no caminho.


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O registo do visível. Essa é a máxima que guia o ofício de um(a) cineasta. Tem que ser assim. Mesmo nos casos mais extremos, quando não conseguimos identificar o que está sendo filmado, como por vezes em Germaine Dulac ou Stan Brakhage, há alguma coisa visível. Mostrar algo, expor uma aparência: a prerrogativa base do cinema, seu caráter essencial. É talvez a isso que se referia a inocência clamada por Jacques Rivette em 1950 [1]. Se vai ser entendida como uma dádiva ou como um fardo, depende apenas de nós.

Num cinema mais convencional, narrativo, essa questão é mais interessante. Se Germaine Dulac, quando realizou Disque 957 (1929), procurava alguma coisa no mundo visível para se expressar, um cineasta lidando com a encenação de uma narrativa de ficção tem um desafio a meu ver mais encantador: que eventos que se passam no mundo material, na vida das pessoas, dão conta de expressar aquilo que carrego comigo? É a jornada em busca da salvação, a tentativa de usar o tempo que se tem no plano material para realizar algo que o transcenda. E eu não falo aqui de um cinema direto, em que se trabalha com registros brutos do mundo, sem encenação [2]. De todo modo, o que fica: é preciso se ter um olhar pessoal sobre as coisas, ideias próprias sobre o mundo, para se conseguir realizar algo.

O que me intriga nos filmes, falo aqui especialmente do cinema contemporâneo, é a relação que eles estabelecem com essa questão, digamos, existencial, que perpassa o ofício de um cineasta. Como esses artistas lidam com o desafio essencial de sua arte. Como eles encaram a missão de encontrar no mundo aparente, nas pessoas, uma forma de expressão.

Nos piores casos, os filmes parecem simplesmente alheios a esse quesito. Repetem um fazer cinema não reflexivo, só reproduzindo convenções, modelos adquiridos inconscientemente. Em outras palavras, obras que não se esforçam para criar algo diferente, e é aqui que ficam todos os filmes genéricos, questão puramente subjetiva. Já noutros casos, o problema existencial se faz presente. Na verdade, acredito que é possível enxergá-lo em qualquer filme verdadeiramente sincero, comprometido com o que faz. 

Apresento esses parágrafos iniciais como uma introdução para o que quero falar sobre Antes Que Tudo Desapareça (2017), de Kiyoshi Kurosawa. Um filme que, além de ser sincero e ter uma ideia própria sobre o mundo, e sobre o cinema (o que já o coloca no segundo grupo), reconhece e alude a esse desafio essencial do cineasta. Está a todo momento colocando essa questão em cena e, a partir de todos os seus outros elementos, refletindo sobre a sua própria condição, de modo que a questão existencial que perpassa o trabalho do cineasta é, de alguma forma, o próprio tema do filme.

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Num mundo de conceitos, é preciso redescobrir a matéria. 

O cinema em essência: luz que incide na película, e que é, portanto, matéria. O cineasta em essência: ser que precisa encontrar aparências que deem conta de expressar a si mesmo. Antes Que Tudo Desapareça: um filme catástrofe, um filme de fim de mundo. Três alienígenas viajam para Terra numa missão de reconhecimento para preparar uma invasão em massa. Eles tomam posse de corpos humanos e partem para roubar o máximo de conceitos possível. Pede-se para a pessoa imaginar o significado por trás de um conceito, então o invasor coloca o dedo na testa dela, como no filme de Steven Spielberg, e apreende aquele significado, enquanto, ao mesmo tempo, a vítima o perde.

Em certo momento, um dos alienígenas toma posse do corpo de Shinji, um homem que vinha tendo problemas no seu casamento com Narumi. A sua esposa fica abatida, achando que, além da crise conjugal que eles estão tendo, o seu marido também perdera a sanidade. Conforme a invasão se aproxima, e com ela o fim da nossa espécie, e o Alien Shinji, junto com os seus dois parceiros extraterrestres, vai aprendendo mais sobre os humanos, Narumi se agarra à nova versão do seu marido para aproveitar ao máximo o tempo que tem com ele. Eis o resumo desse que é um filme sobre luz e gestos. Explico-me.

Primeiro, a luz. A fotografia segue o estilo do cineasta: cores pouco saturadas, fundos estourados nas cenas internas, contrastes pontuais, alguns momentos mais escuros que o normal. Mas aqui tem algo de especial. Em algumas cenas a luz simplesmente apaga ou acende sobre o rosto de uma personagem (não se trata de uma elipse da cena, é mais como uma elipse apenas no rosto da personagem, como se ela estivesse deitada sob o céu aberto e passasse uma nuvem). O cineasta não procura justificar essa mudança na iluminação, o que serve apenas para lembrar que: corpos emitem luz. 

Depois, há um esforço nítido na fotografia do longa em evidenciar a presença da luz a todo momento. Seja de maneira mais solene, as sombras em excesso, o movimento de uma personagem que evidencia a luz que ilumina a cena; seja de maneira mais evidente, por exemplo quando os aliens roubam um conceito de um humano e aparece um foco de luz artificial no meio da imagem para simbolizar o ocorrido, ou na cena em que a protagonista confunde o pôr do sol com o início da invasão alienígena. Na verdade, nesses momentos mais explícitos, a luz é usada claramente como um recurso expressivo. 

Um exemplo é no começo do filme quando Sakurai, um jornalista de revista sensacionalista, e Amano, o garoto hospedeiro de um outro alienígena, estão conversando do lado de fora da van. Eles estão do lado direito do veículo, com o jornalista, rosto iluminado pelo sol, parado na parte dianteira e o jovem, que vemos de costas, na parte traseira. Eles vão para o outro lado da van e a câmera os acompanha. Sakurai, ainda na parte dianteira, faz perguntas para o garoto. Amano volta para o lado direito do veículo, mas agora no lugar que o jornalista ocupava, na dianteira. Sakurai o acompanha, assim como a câmera. Mas dessa vez, uma surpresa tensa, digna de um filme de horror: Amano está todo escuro, coberto por uma sombra enfática que contrasta com a iluminação dada ao outro personagem anteriormente na cena. É algo que poderia se justificar pela mudança natural na luz do sol, mas o contraste é gritante demais para entendermos como obra do acaso. Além do que, esse é o momento que o extraterrestre vai revelar que eles planejam uma invasão ao planeta. A iluminação é puro recurso expressivo. 

Particularmente me fascina como o cineasta consegue imprimir certas marcas autorais, momentos em que a presença da câmera teoricamente seria sentida, sem perder um certo minimalismo formal que persiste na obra: numa cena em que Narumi e o marido conversam dentro do carro, o plano-contraplano é feito com a câmera do lado de fora do veículo, enquadrando os atores por trás do vidro fosco da janela, juntamente com os postes da rua que nele estão refletidos, o que nos lembra mais uma vez que: tudo é luz — aliás, planos com superfícies que refletem elementos do extracampo são demasiadamente recorrentes no filme, o que reforça o ponto. Além disso, é bom ressaltar o uso das lentes anamórficas, lentes que distorcem um pouco as laterais da imagem e que dão um efeito diferente sempre que há um foco de luz no plano. O uso destas lentes não é tão comum na carreira do diretor, mas como esse é talvez seu filme mais diretamente sobre luz, não poderia ser diferente.

Em segundo lugar, os gestos e, por que não, o movimento. Numa das primeiras cenas do filme, o alienígena que tomou posse de Shinji é mostrado tentando mimetizar os gestos do homem do tempo no noticiário da televisão. Mais na frente descobrimos que os extraterrestres precisam tocar na testa da pessoa para roubar um conceito e que ela cai no chão, caso esteja em pé, sempre que isso acontece. A câmera de Kurosawa, quase sempre em movimento sutil, procura evidenciar o movimento e a presença das suas personagens (mostra-se um espaço vazio, a montagem alterna com um ou outro plano e em seguida o espaço preenchido por um corpo).

É como se, ao evidenciar a presença da luz, seja ela diegética ou não, e reverenciar o movimento e o gesto humano como algo fundamental à espécie, o realizador materializasse esse desafio existencial que o assombra. A luz, os gestos constituem a base da arte cinematográfica e usar esses recursos de maneira tão enfática e consciente indica que Kiyoshi Kurosawa sabe, em absoluto, o desafio que vem junto com o seu trabalho. Usar esses recursos dessa forma faz com que, de alguma forma, a tal questão existencial seja o próprio tema do filme.

É engraçado que junto a essa autoconsciência, paradoxalmente, vem uma ingenuidade que está no fascínio que a câmera parece ter diante do que se está filmando (quando na mão, trêmula, feito no alerta inútil que Sakurai tenta fazer às pessoas que passam na praça). Depois que se constata que tudo que se pode mostrar é luz, o filme adere a um fascínio por aquilo que está filmando, como se estivesse a redescobrir o cinema.

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Por outro lado, Antes Que Tudo Desapareça não é um filme “feito para cinéfilos” ou virtuoso, hermético, apenas capaz de tocar aquelas pessoas tão ligadas ao cinema quanto ele. As questões sobre o cinema permeiam toda a obra, mas não são seu maior interesse. Ou, melhor dizendo, por ser tão diretamente ligado às questões essenciais do próprio cinema, ele é, necessariamente, sobre algo maior que elas. 

É de se notar que é um filme sobre um evento sobrenatural. Mas, salvo aquela cena em que luzes saem do céu, já depois do Alien Shinji descobrir o que é o amor, Kurosawa não se preocupa em filmar o sobrenatural: os extraterrestres nunca são vistos nas suas verdadeiras formas, apenas já em posse de um corpo humano; a apreensão de conceitos é feita por um movimento físico; as lutas que os aliens travam são corporais; jamais vemos as abduções; e a conexão telepática entre eles é realizada por um plano-contraplano. Isto é, o filme é basicamente formado por situações fantasiosas (sempre um E.T em cena) e, no entanto, ele concretiza isso formalmente da maneira mais pé no chão possível. Isso faz com que o místico (com exceção da cena que citei), presente talvez em toda a obra de Kiyoshi Kurosawa, seja visto apenas através do mundano, daquilo que pode ser filmado, daquilo que emite luz. É o vento que bate na cortina e nas árvores, o céu nublado, o crepúsculo, o movimento dos corpos (os momentos mais belos estão no final quando Narumi se agarra ao Alien Shinji no quarto do hotel pedindo para ele roubar dela o conceito de amor, e alguns momentos depois quando ele, tomado por amor, a protege dos bombardeios da invasão, duas instâncias puramente físicas).

Dito isso, outra característica do filme: a mescla de gêneros. O longa abre com uma sequência brutal que dá a entender que estamos diante de um filme de horror: uma família inteira aparece assassinada numa casa. Em seguida, logo antes de aparecer o título do filme, sobrepondo-se de forma irônica ao rosto da assassina sorrindo, surge uma música cômica que vai voltar várias vezes no decorrer da obra. Depois, quando somos apresentados a Narumi e Shinji, o drama predomina. Quando Sakurai aparece pela primeira vez e conhece Amano, o suspense. Mais tarde a ficção científica, depois a ação, a catástrofe.

Pode parecer mais uma característica autorreferencial, mais uma alusão às questões sobre o próprio cinema, no entanto, essa miscelânea de gêneros mostra uma encenação fluida, que evidencia algo sobre a sua própria natureza (que tem como pré-requisito a presença física dos atores). Para Kurosawa, não importa a qual gênero ela esteja filiada, a encenação é um dos pilares da expressão cinematográfica. É ela que articula a relação que as personagens estabelecem umas com as outras, e com o mundo, o que parece ser o maior interesse do cineasta neste filme.

Essa relação estabelecida pelas personagens é a base da obra. É o mistério, o universo. Em alguns momentos chego a pensar que todo o enredo de ficção científica que se instaura é apenas um devaneio em decorrência daquele conflito conjugal apresentado logo no início. Como se a invasão alienígena, as abduções, a apreensão de conceitos, tudo fosse uma metáfora que buscasse expressar e enfatizar aquele conflito inicial.

O apelo principal do filme, que é, a meu ver, o que o faz uma obra potencialmente popular, é justamente essa relação que se dá por meio de um drama físico. Na verdade, por estar, através da luz e dos gestos, aludindo àquela questão existencial do início do texto, o filme não poderia seguir um caminho hermético, se distanciando da narrativa, das personagens, em função de um conceito — o uso do CGI, sob esse ponto de vista, parece bem coerente. Estar ligado ao desafio da representação faz com que Antes Que Tudo Desapareça, necessariamente, se aproxime dos filmes dos primórdios do cinema. Isto é, seja misterioso, fascinado por aquilo que filma, atrativo, dinâmico e, essencialmente, imagem [3].

É, afinal de contas, um filme sobre a história dessa personagem (Narumi), um filme sobre pessoas, sobre corpos que emitem luz, mas também, e por conta disso, desse desafio que assombra o cineasta, desse caráter efêmero da existência humana, ao qual obviamente o realizador também está submetido: é preciso filmar o mundo antes que ele desapareça.


[1]: “Já não somos inocentes”, primeiro texto publicado de Jacques Rivette, no Bulletin intérieur du Ciné-club du Quartier Latin, em janeiro de 1950.

[2]: A própria encenação é um registro do mundo e ao filmá-la, registra-se o real tanto quanto se estivesse a filmar o mar, algo que o próprio Rivette já observara em seu texto.

[3]:  Poderia-se passar um texto inteiro falando sobre como o som, em Kurosawa, não se comporta como uma instância própria, mas como um acessório perfeito a enfatizar as imagens.


Foto: Cena de Antes Que Tudo Desapareça (2017), de Kiyoshi Kurosawa.

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