Luis Filipe Caivano nasceu em São Paulo, é um pouco mais velho do que gostaria e escreve porque não sabe desenhar. Foi quarto colocado na categoria crônica e finalista na categoria poesia do Prêmio Off Flip de Literatura 2021. Escreve mensalmente para a Aboio.
Gabriela Caivano mora em São Paulo e estuda psicologia. Desenha desde pequena e na pandemia começou a se dedicar mais à ilustração para se distrair do fato de que mora no Brasil.
O presidente segura uma arara ao lado de dois curumins sorridentes com o rosto pintado de urucum. Uma lágrima solitária escorre de um olho tingido (no Photoshop) com as cores da bandeira brasileira. Uma bunda com “Fora” escrito em uma nádega pintada de amarelo (na pele mesmo, nada de Photoshop aqui) e “STF” na outra, pintada de verde. Sim, você sabe, eu sei, todos nós sabemos que a crise também é – e talvez o seja sobretudo – estética.
A implosão da sensibilidade artística da extrema-direita brasileira não é mera casualidade, trata-se de um projeto de embrutecimento que vem sendo colocado em prática há anos. Ao elegerem a lei Rouanet (Roubanet, Roualei, etc.), Caetano Veloso, Chico Buarque e praticamente todos os artistas nacionais de peso como inimigos, nossos compatriotas liberais na economia e conservadores nos costumes acabaram declarando guerra indiscriminada a todo tipo de manifestação artística minimamente sofisticada. Basta olhar os memes, os vídeos e as convocações para protestos que circulam pelas redes bolsonaristas: parece que não há em todo o país um sobrinho sequer com noções básicas de design disposto a ajudar um tio a diagramar uma ameaça de morte contra um ministro do STF.
Mas justiça seja feita. É preciso reconhecer que também há entre a trupe do “bandido bom é bandido morto” aqueles que apreciam e defendem a preservação das artes. Monarquista e entusiasta de gravatas-borboletas, este seleto grupo só considera Arte (ou, como eles preferem, haute culture) aquilo que foi feito até o século XIX – e na Europa. Manifestações recentes e eventos nacionais como o samba e a Semana de Arte Moderna são descartados por eles como sendo mera “molecagem” produto de um meio sociocultural degenerado. Não se espante se escutá-los chamando a Proclamação da República de algo como a “quartelada de 1889” ou o “golpe de 15 de novembro”; eles ainda não se recuperaram do baque que foi a promulgação da lei Áurea.
Quando digo, e repito, que a crise também é estética, há no fundo disto uma profissão de fé no poder da arte. Arte, afinal, nos faz repensar o mundo à nossa volta, e, assim, ajuda-nos a desenvolver um senso de empatia por aqueles que são diferentes de nós. E, não por coincidência, a completa ausência de empatia é justamente uma das marcas registradas do grupo personificado pelo atual presidente da república. “Se eles lessem Grande Sertão: Veredas”, pego-me pensando frequentemente, “perceberiam os absurdos que estão dizendo e fazendo”. Logo, a solução para as mazelas do país no médio e no longo prazo seria fundamentalmente aumentar a carga horária de aulas de arte nas grades curriculares das escolas. Problema resolvido. Por que não me procuraram antes?
Ironias e exageros à parte, eu realmente acredito que a arte tem a capacidade de nos tornar pessoas melhores. Ou acreditava. Já não tenho tanta certeza. Esta minha ilusão juvenil foi colocada em xeque alguns dias atrás quando reassisti Laranja Mecânica. O nono longa-metragem de Kubrick, assim como a maior parte da filmografia do diretor, dispensa apresentações por já ser parte do inconsciente coletivo ocidental há algumas décadas. Ainda que não o tenha assistido, você com certeza seria capaz de identificá-lo em poucos segundos, seja por meio dos icônicos cílios postiços de Alex, seja pelos trajes inconfundíveis que o protagonista e seus drugues vestem para tocar o terror noite afora.
Mesmo já tendo assistido ao filme em outra ocasião, e mesmo tendo lido o livro de Anthony Burgess que lhe deu origem, a experiência de vê-lo em pleno Brasil de 2021 bateu diferente – e bateu forte. Como disse um amigo, aquele lance de nunca entrarmos duas vezes no mesmo rio e etc – e, no momento, o cheiro do rio imundo no qual país se transformou está entranhado nas minhas narinas, contaminando tudo aquilo que eu faço e penso nos últimos anos.
O que me pegou foi justamente a relação do protagonista com a música. Apesar de ser um grande apreciador de Beethoven (ou, como ele o chama carinhosamente, Ludwig van), Alex se deleita em espancar, estuprar e matar pessoas sem qualquer remorso. A cena em que ele se masturba ao som da Nona Sinfonia e imagina cenas de explosões, de pessoas sendo enforcadas e a si próprio com presas de vampiro cobertas de sangue foi quase um soco na cara. Já faz algum tempo que me conformei com o fato de que seres humanos abjetos são capazes de produzir obras de arte sublimes. Polanski, Picasso, Michael Jackson, enfim, a lista é interminável. A despeito disso, por alguma razão eu havia conseguido preservar a fantasia de que na outra ponta, do lado do receptor do estímulo artístico, o efeito seria sempre positivo e edificante.
Contudo, conforme eu revisitava a história de Alex, fui me dando conta da diferença marcante entre o protagonista e os demais membros de sua gangue. Sob um primeiro olhar, todos apresentam condutas igualmente repulsivas – talvez Georgie, Dim e Pete possam até serem considerados “piores” do que Alex, uma vez que o traem e fazem com que ele seja preso pela polícia. Não obstante, por volta dos 30 minutos do filme ocorre a cena em que Alex tem sua liderança diretamente questionada por Georgie e pelos demais drugues. Além de rejeitarem as agressões desnecessárias as quais o protagonista submete Dim, os três questionam a “ética” de suas aventuras noturnas. “Nós saímos por aí crastando lojas e coisas assim”, argumenta Georgie, “mas só saímos com uma ruquerada de dinheiro para cada um”. A resposta de Alex nos dá um vislumbre de uma personalidade muito diferente: “E o que vocês farão com muito, muito dinheiro? Vocês não têm tudo do que precisam? Se precisarem de um carro, é só colhê-lo das árvores. Se precisarem de uma mulher, é só pegar”.
Alex não comete as atrocidades que comete pelo dinheiro ou para descontar suas frustrações; a violência para ele é um fim em si mesmo, mais até, uma performance artística. As fantasias, a cantoria, as danças, a narração e até o cinismo que não passa de uma forma de atuação; tudo o que Alex faz é consciente e tem uma plasticidade intencional, e isso torna mais perigoso do que todos os seus amigos juntos. E o que Beethoven tem a ver com isso? Talvez nada. Talvez tudo. Pode ser que o gosto do protagonista por música seja um mero acaso que não guarda relação profunda – ao menos não de causa e efeito – com sua índole perversa. Mas também pode ser justamente aquilo que lhe dá clareza sobre o Bem e o Mal, e que no fim das contas o faça escolher este último. Coincidência ou não, o fato é que o famigerado método Ludovico em uma mesma tacada impede Alex de cometer atos de violência e de escutar Ludwig van. Ao ser questionado acerca desta contradição (aparente) na personalidade do protagonista, Kubrick respondeu que “isso mostra certamente o fracasso da cultura no campo moral. Os nazistas escutavam Beethoven. Alguns deles eram pessoas bem cultas. Isso não mudou em nada o comportamento moral deles”.
Minha hipótese, porém, é ainda mais perturbadora: talvez não existisse nazismo, ao menos não nos moldes como o conhecemos, sem Beethoven. Talvez a maldade em seu estado puro pressuponha uma certa dose de sensibilidade artística, um certo refinamento de gosto. A violência, afinal, é uma característica onipresentes na natureza, é parte do jogo e muitas vezes uma questão de sobrevivência. A maldade, por outro lado, é prerrogativa exclusiva da humanidade justamente por depender em primeiro lugar da capacidade de distingui-la da bondade. Nesse sentido, podemos quase perdoar os amigos de Alex porque eles são seres embrutecidos e infantilizados. Por meio da violência eles buscam aquilo de que são privados: dinheiro, satisfação e controle. Alex, por outro lado, deleita-se em infligir dor nos outros e é profundamente cínico; basta ver como consegue despertar nossa empatia por meio da narração. Ele não apenas sabe contar uma história como também nos manipula e nos convence de que é uma vítima do sistema, sistema do qual ele passa a fazer parte ao final do filme.
A arte, o refinamento estético, a sensibilidade artística, chame-o como quiser, seria, então, um dos frutos da famigerada Árvore do Bem e do Mal. Ao provar dela, passamos a diferenciar os dois extremos da condição humana, mas nada garante o lado que iremos escolher. Logo, se a crise também não fosse estética, é possível que já nem houvesse mais espaço para reflexões deste tipo. No limite, a ojeriza que a extrema-direita tem de praticamente toda manifestação artística e cultural brasileira acaba sendo uma salvaguarda para o restante de nós, uma rede de proteção – tênue – que nos impede de cair de vez na barbárie.
Por ora, ao menos para o resto do mundo, voltamos a ser uma república das bananas com direito a um pretenso ditadorzinho que parece saído de uma sketch de Hermes e Renato. Por mais que o risco de ele próprio adquirir qualquer sofisticação seja bastante remoto, já existem diversos ministros e assessores ao seu redor que seguramente possuem a capacidade para cometerem atos ainda mais indizíveis do que os que já vivenciamos diariamente. Enquanto a banana for orgânica, perecível, tosca, ainda há esperança. O problema é que, a cada dia que passa, dá-se margem para o surgimento da banana mecânica, tão patética quanto a natural, mas metódica e implacável. Aí, meus amigos, só nos restarão o consolo de um bom vinho e de um bom livro. Se a arte não nos salva e não nos redime, ela ao menos segue como um meio simples de escapar da realidade.
Ilustração de Gabriela Caivano.