Pedro Torreão (1988) é recifense, sociólogo e poeta. Mora em São Paulo desde 2017 e lançou o livro Pão só (Editora Urutau, 2021) pelo qual recebeu menção honrosa no Prêmio Maraã de 2019. Tem poemas publicados em revistas como Aboio, Ruído Manifesto, Lavoura, entre outros.
“E o prazer é o mais alto valor do espírito, pois é ao mesmo tempo alegria e signo: o signo de uma vitória de e sobre a vida, essa vitória que nos faz humanos.”
(Paul Zumthor, em Performance, recepção, leitura¹)
E se o prazer for o valor que nos implica na superação da humanidade? David Cronenberg nos coloca exatamente essa questão em Crimes of the Future (2022), retorno do diretor ao terror corporal e corpóreo.
Recortes sobre questões físicas, performáticas, sobre arte e papel do Estado, mas, sobretudo, sobre a função do corpo dentro dessa socialização são alguns dos questionamentos apresentados por Cronenberg no seu novo filme. O corpo media, como se numa ligação direta, as relações. Na obra, o espaço da analogia é o sentido estrito entre o corpo e as relações sociais, mas camuflados sob signos não-existentes para nós, espectadores.
Num futuro distópico no qual o corpo se ausenta de sinais e respostas biológicas, como dor ou doenças infecciosas, de que maneira podemos lastrear o uso do corpo e suas funções vitais, ou secundárias? Como fazê-lo sob o crescente protagonismo da biotecnologia e dos artefatos na vida cotidiana? Com todas essas mudanças corporais e sociais, que se refletem dentro do funcionamento cultural da sociedade, como podemos sinalizar o prazer? Ou melhor, será que podemos?
O corpo, tela em branco a ser explorada, dinamizada e desafiada, é explorado em suas diversas esferas dentro do roteiro e direção do filme, percorrendo caminhos artísticos, estéticos, burocráticos, políticos e, cada vez mais, persecutórios.
Corpo e opressão
O corpo, mais do que uma estrutura física dotada de uma héxis² própria e cultural, estabelecido em signos de genotípicos e fenotípicos, é o ponto de partida e pedra fundamental da nossa relação com o mundo. Por mais que possam ser colocados em segundo plano, dentro de uma experiência racionalizadora e racionalizada, o que sentimos corporeamente é o início de nossa experiência.
Cronenberg nos coloca em contato com uma sociedade em que o corpo é encontrado em um segundo plano, com barreiras que já foram sobrepostas, como as infecções e dores, e que buscam um novo parâmetro de vivência e desenvolvimento. Nesse momento nos dá a impressão de que essa ausência de barreiras é a ausência de opressão, tendo em vista a abertura a liberdade de seu uso e experimentação. Saul (Viggo Mortensen) e Caprice (Léa Seydoux) interpelam o papel do corpo dentro da arte performática estabelecendo rituais de extração de órgãos em um contexto de arte orgânica, onde autor e obra são mediados somente pela performance artística, uma vez que são um só.
A discussão sobre o papel da performance artística e seus limites é o fio condutor de um filme que traz ao debate a utilização do corpo não como um vetor artístico, mas como própria arte orgânica, visceral e, discursivamente, organizada. Entre o corpo do artista – que está em jogo – e o corpo burocrático do Estado, que repreende e tenta acertar os limites dessa partida, há diversas interpelações, sejam mais simbólicas ou mais reais.
Essa possibilidade de experimentar a realidade através da performance, no filme de Cronenberg, é o que traz à tona até nós, espectadores, a realidade ali lançada. Desse futuro distópico onde o corpo é forma, obra e objeto ao mesmo tempo.
A arte, o entretenimento, a estética, o político e o evolutivo nos mostram o quanto o corpo tem uma centralidade dentro da nossa sociedade, que várias vezes o delega a uma posição subalterna em relação à cultura. Subordinação essa que está atrelada aos seus limites, colocada nas raias do que podemos chamar de humanidade.
É como se pudéssemos parar de pensar nas extremidades das Moiras, irmãs, na mitologia grega, que determinam o destino tanto dos deuses como dos humanos, e nos atentássemos ao enrolar do fio e suas atribuições cheias de livre dominância.
Mas, enfim, quem poderia oprimir o corpo livre dessas amarras?
Forma e performance
O corpo, como forma, dentro do filme, suscita o debate sobre os limites da arte performática. A dimensão estática do corpo como tela diante da sua possibilidade orgânica nos traz a dimensão do valor do trabalho artístico dentro daquele universo desenhado pelo diretor. Em uma de suas cenas mais visualmente impactantes, um homem coberto por orelhas em uma performance, tem seu valor estético confrontado a partir da funcionalidade orgânica do seu visual. Qual seria o valor da arte em uma disposição corpórea-orgânica? Uma função em si, que usa o corpo como manivela sensorial, ou uma função estética?
Os limites entre a arte brutal, corporificada, performática e criadora de um tecido orgânico e destruidora de um trilho socialmente estabelecido continua sendo diferenciada entre o avant-garde e o freak-show. O campo artístico, malha imaterial e dotada de regras de exclusão e acesso, continua a funcionar como um relógio, como uma faceta mecânica que se sobrepõe ao mais orgânico possível.
O corpo desdotado de dor abre espaço para construção de um novo prazer físico, um novo sexo, uma nova interação e iteração. Interativo pela sua capacidade de troca com o ambiente e com possibilidade evolutivas e iterativo por uma nova relação com o tempo e com os ciclos, também, evolutivos.
A expressão do que se entende como performance artística, no filme, nasce aí, das trocas, e, dentro desses intercâmbios, os tempos. O fio tecido que enrola. A espera, o rito, o público, e como consequência, a recepção.
Entre condutas, a performance
Dell Hymes, segundo Paul Zumthor, designa três tipos de atividades de um homem: o Behavior, a Conduta e a Performance. Podemos diferenciar as três formas de ação em decorrência do grau de responsabilidade em relação à ação. A performance se coloca como o mais alto grau de responsabilidade do sujeito, sendo uma conduta abertamente responsabilizada. A conduta, por outro caminho, seria uma forma de se relacionar com as normas sociais, seja através da aceitação ou rejeição delas. Através da ampla individualização, a performance teria o papel de se despojar dessas amarras ou se relacionar diretamente com elas, como um agente e não mais um intermediário.
Há um grande debate durante grande parte do filme: como se dá a questão da consensualidade dentro da arte performática? Qual o limite dela dentro desse ambiente estéril e que traz camadas de ação muito amplas?
Se hoje pensamos em criar esse imponderável dentro da expressão artística, talvez na sociedade criada por Cronenberg há a necessidade exatamente oposta: a criação do ponderável, do físico, do tátil. Do órgão.
O corpo presente, como vetor de modificações, faz com que o debate corra muito além do que seria arte, ao fim. Mas o que seria estético e permissível? Body modification e livre-arbítrio são colocados como uma possibilidade real e estética, mesmo que sejam relegadas a um espaço menor dentro da arte – tal qual hoje, por sinal.
Performance, como nos traz Zumthor, é algo ligado diretamente à cultura e à situação em que se coloca, em um movimento de saída e de encontro com o momento ao qual ela pertence. Porém, dentro do contexto literário que Zumthor aborda, ele nos fala da leitura como uma experiência do desejo, enquanto a performance oral – a prática vocalizada e corporificada – como a realidade experimentada.
Essa possibilidade de experimentar a realidade através da performance, no filme de Cronenberg, é o que traz à tona até nós, espectadores, a realidade ali lançada. Desse futuro distópico onde o corpo é forma, obra e objeto ao mesmo tempo.
Nesse aspecto, estamos em uma sobreposição do que podemos entender por recepção: assistimos ali uma obra de arte que nos mostra a recepção de uma obra de arte – os sentimentos, o impacto. Contudo, há uma relacionalidade que não conseguimos tocar pois se toda a recepção de uma obra de arte – seja ela uma performance, um livro ou qualquer outra – é entendida dentro de um contexto cultural, assistir a recepção de uma performance artística realizada em um futuro ficcional e distópico nos coloca uma pulga atrás da orelha: o que eles sentem para além do que estou sentindo? Nesse palimpsesto da mistura de ficção, arte e recepção, Cronenberg acha seu espaço, por mais que não seja o quesito principal dentro do roteiro.
O degradê social
Mas, enfim, retorno aqui à questão colocada ainda no começo desse texto: quem poderia oprimir esse corpo liberto de respostas físicas? Seria mesmo esse corpo liberto de reações?
O espaço ficcional, dentro da performance, traz consigo a emulação dessa dor, a construção da dor como algo necessário para que se atinja o espaço da arte. Todas as formas de modificação do corpo, ausentes de resposta física, se dissolvem. Há a necessidade do vigor, de uma teatralidade que passa pelo espaço, pelo corpo, e da interação entre uma coisa e outra. Também do iterativo, como mencionado antes: do tempo da arte, no qual o tempo físico se dilata, se estica e não permanece.
O momento ganha suma importância nesse debate. A relação com o tempo, com o rito, cria esse espaço de performance dentro do filme, onde o que está programado, no lugar programado, com órgãos programados (mesmo sem funções definidas), cria o símbolo de uma sociedade sem tempo – ou ao menos como entendemos o tempo hoje.
Há, nesse ponto, uma quebra de uma perspectiva histórica, onde o avanço cria a não-alternativa, fomenta o imponderável. Se hoje pensamos em criar esse imponderável dentro da expressão artística, talvez na sociedade criada por Cronenberg há a necessidade exatamente oposta: a criação do ponderável, do físico, do tátil. Do órgão.
Esse caráter antropológico da performance, como nos diz Zumthor, é o que dá dinamismo a uma sociedade feita por indivíduos que se demonstram autossuficientes. Pode até existir essa existência em si, mas é relacional e, ainda mais fortemente, mediada por máquinas. Pessoas que assistem máquinas que lidam com corpos. Máquinas dominadas por quem as fabrica, pela tecnologia e por quem as cerceia.
Performance: hedonismo ou informação?
O jogo evolutivo aparece pela mediação e controle do Estado, no filme. Processos evolutivos e corpóreos emergem junto com o debate sobre a possibilidade de junção entre a arte e o controle.
Zumthor, mais uma vez, nos traz uma distinção crucial quando estamos falando de arte e poética: ela existe quando há mais capacidade de trazer prazer do que informação. Não que a informação tenha que ser negada, mas necessariamente não deve ser o primeiro plano.
Mais do que um risco como sociedade, Cronenberg nos coloca cara a cara com a necessidade do prazer, seja ele qual for, sendo elemento constitutivo tanto do fazer artístico quanto de sua recepção – mesmo que sádica ou cruel, por ambos os lados. A informação, a sanha autopsial e/ou arqueológica do caráter artístico pode fazer com que o prazer inexista e isso sim seja a opressão sobre o corpo. Vivo ou morto.
Tomem cuidado com o retorno ao corpo de Cronenberg. Como nos disse Bruce Nauman, em sua instrução de performance Body Pressure (1974):
“This may become a very erotic exercise.”
¹ ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2014. 128 p.
² O conceito de Héxis Corporal é definido por Pierre Bourdieu a luz do conceito de habitus, como um grupo de disposições socialmente estruturadas e estruturantes, nesse caso, corporificadas, compreendendo o corpo como um signo social.
Foto de Luísa Machado.