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Onde os Fargos Não Têm Vez: Rindo e chorando com os irmãos Coen

por Luis Filipe Caivano
Ilustração de Gabriela Caivano para crítica de Luis Filipe Caivano sobre cinematografia dos Irmãos Coen

Luis Filipe Caivano nasceu em São Paulo, é um pouco mais velho do que gostaria e escreve porque não sabe desenhar. Foi quarto colocado na categoria crônica e finalista na categoria poesia do Prêmio Off Flip de Literatura 2021. Escreve mensalmente para a Aboio.

Gabriela Caivano mora em São Paulo e estuda psicologia. Desenha desde pequena e na pandemia começou a se dedicar mais à ilustração para se distrair do fato de que mora no Brasil.


Premissa 1: Um homem encontra uma mala cheia de dinheiro em meio a vários corpos que são o resultado sangrento de uma transação de heroína que deu errado. Ele é perseguido por um assassino implacável contratado pelos donos do dinheiro e, assim como sua esposa que nada tinha a ver com a história, termina morto.

Premissa 2: Um homem endividado e desesperado arma o sequestro da própria esposa para extorquir o sogro milionário. Uma sucessão de incompetência e de azar faz com que o homem seja preso e sua esposa e seu sogro assassinados.

À primeira vista, a maior parte das pessoas provavelmente qualificaria as duas histórias como dramas. Em ambos os casos, afinal, estamos falando de temas normalmente tidos como “pesados”: ganância, mentira, morte. Entretanto, o leitor que aprecia os filmes dos irmãos Coen provavelmente já identificou que a premissa 1 corresponde a Onde os Fracos Não Têm Vez enquanto a 2 corresponde a Fargo; um drama e uma comédia, respectivamente.

Comédia, afinal, é tragédia (ou drama) com timing. Ou, invertendo a lógica tradicional, tragédia é comédia sem timing. O ponto é que nada é intrinsecamente engraçado, assustador ou triste por si só, é tudo uma questão de perspectiva. Uma pessoa rolando escada abaixo, um acidente de trem e até mesmo um atentado terrorista; com uma dose suficiente de insensibilidade (elemento do qual depende o humor segundo Henri Bergson, um dos principais teóricos do riso), não existe nada de que não se possa rir1. No limite, estou apenas repetindo o que já foi dito de forma muito mais eloquente por Mussum e os Originais do Samba no melancólico “Canto Chorado”: “O que dá pra rir, dá pra chorar/ Questão só de peso e medida/ Problema de hora e lugar”.

Assim sendo, não é de todo surpreendente que os irmãos Coen, realizadores famosos por uma filmografia que consiste fundamentalmente em comédias, tenham lançado um drama pungente como Onde os Fracos Não Têm Vez. A surpresa, se ainda existe alguma, é ainda menor quando se leva em conta o humor, digamos, sórdido da dupla. Traições, acidentes, sequestros e, é claro, morte; parece que não há quase nada de que os irmãos não consigam rir (e nos fazerem rir junto com eles). 

Portanto, é natural que a dupla tenha se interessado em adaptar para as telas o romance homônimo de Cormac McCarthy, até porque, em muitos aspectos, a história é uma espécie de outra face da moeda da qual Fargo também é parte, não apenas sob uma perspectiva temática. Os dois filmes giram ao redor das consequências de um crime que não sai como o esperado, têm protagonistas cuja motivação principal é o dinheiro e se passam na década de 80 em regiões inóspitas dos Estados Unidos que, apesar disso, são opostas uma à outra: de um lado, o deserto árido do interior texano e, do outro, a desolação glacial de Minnessota. A característica sucessão de acidentes e infortúnios aleatórios que convergem para um final inesperado, marca registrada dos realizadores, também está presente tanto em um quanto no outro, mas em Onde os Fracos Não Têm Vez, sem o alívio cômico que normalmente nos preserva de encarar o abismo diretamente. Um detalhe interessante e que dificilmente pode ser considerado coincidência dado o preciosismo dos irmãos Coen é que, nos dois filmes, o dinheiro que movimenta a trama é armazenado em malas idênticas.

Apesar disso, a abordagem de cada filme faz com que, no fim das contas, a experiência de assisti-los seja bastante distinta – para não dizer oposta. Da trilha sonora às atuações, passando pelo roteiro, o gênero de cada um dos filmes fica muito evidente desde os primeiros minutos: Fargo é uma comédia de erros sarcástica em que a aleatoriedade da vida e a banalidade do mal são motivos de piada; Onde os Fracos Não Têm Vez é um neo-western dramático que se apropria dos elementos típicos de um gênero em que o bem e o mal são muito distintos entre si apenas para mostrar como tais conceitos fazem pouco sentido diante do caos que é a existência humana. Os “vilões” de Fargo são dois palhaços no sentido teatral da expressão, imorais, atrapalhados e patéticos; Anton Chigurh, o vilão de Onde os Fracos Não Têm Vez, é uma força da natureza que, como tal, é amoral e implacável.

A maior diferença entre os dois filmes, contudo, reside nos destinos de seus respectivos protagonistas. A despeito de não cometer um ato propriamente imoral (a mala de dinheiro encontrada seria usada para comprar heroína), Llewelyn Moss, protagonista de Onde os Fracos Não Têm Vez, sofre um final trágico. Não nos é dado sequer o direito de derramar uma lágrima por ele porque sua morte ocorre fora de cena e é mostrada com fria indiferença, apenas mais um ato de violência sem sentido dentro de um universo violento e sem sentido. O que torna tudo ainda pior é que, no limite, Llewelyn é punido por uma boa ação, uma vez que, se ele não tivesse voltado para o local do tiroteio para dar água para um homem moribundo, dificilmente ele teria sido encontrado por quem quer que seja. Karma, lei do retorno, justiça divina, chame como quiser, não existem aqui; há apenas a aleatoriedade pura e simples. Não é por outra razão que Chigurh usa uma moeda para decidir se irá matar ou não os infelizes que cruzam seu caminho. Em última instância, tudo o que acontece na nossa vida é uma variação de um cara ou coroa. 

Paralelamente, em Fargo, apesar de toda a maldade e da aleatoriedade que também caracterizam este filme, pode-se dizer que ao final o bem triunfa sobre o mal. Jerry Lundegaard, o protagonista que arma o sequestro da própria esposa, é preso, assim como um dos dois perpetradores do crime; o outro é morto pelo próprio parceiro e depois parcialmente triturado por um picador de madeira. Enfim, humor. É verdade que seis inocentes são mortos no caminho, mas saímos com a sensação de que, apesar de o mundo ser um lugar absurdo e assustador, ainda existe algum tipo de Papai Noel cósmico que, mesmo escrevendo por linhas bastante tortas e tardando quase a ponto de falhar, recompensa os bons garotos e pune os maus antes dos créditos subirem.

Outra consonância interessante que ao mesmo tempo aproxima e afasta os longas é que, nos dois, a banalidade do mal é objeto de reflexão para os policiais que investigam os crimes centrais de cada um. Tanto o experiente xerife Ed, de Onde os Fracos Não Têm Vez, quanto a jovem chefe de polícia Marge Gunderson, de Fargo, têm dificuldade em lidar com a sequência de atos de violência despropositados com a qual se veem face a face. Mas, enquanto Ed se debate com o problema ao longo de todo o filme, atuando mais como um espectador da história do que como um personagem propriamente dito, Marge verbaliza a questão brevemente nos minutos finais de Fargo e, talvez justamente por isso, ela consiga solucionar o caso e prender o bandido sobrevivente. 

Ao final do longa, nos braços do marido e prestes a ter um filho, Marge comenta que eles estão indo muito bem. Ed, por outro lado, sequer consegue encontrar Chigurh e não consegue salvar a vida de Llewelyn, chegando na cena do crime instantes depois de o protagonista ser assassinado por personagens que mal fazem parte da história contada. Incapaz de compreender o estado atual do mundo, ao final da narrativa o xerife se aposenta e conta à esposa sobre os sonhos que teve na noite anterior, ambos envolvendo seu pai há muito falecido. Marge, assim, encarna a leveza de quem é capaz de olhar para o futuro com esperança e – por que não? – com um sorriso; Ed, por sua vez, olha para trás com olhos marejados e o semblante carregado de pesar. 

Em outras palavras, cada um dos personagens representa em suas respectivas obras as distintas abordagens adotadas pelos irmãos Coen diante da mesma questão: a loucura que é o mundo. Uma ri, o outro chora. Trata-se, afinal, de uma questão só de peso e medida, de um problema de hora e lugar.


[1]  A propósito, em 2016 um americano escreveu um roteiro de Seinfeld no qual os protagonistas lidam (de forma hilária) com as consequências do atentado de 11/09: https://drive.google.com/file/d/0B50l484pDaMobXI2Wk5CX0NMbkU/view?resourcekey=0-SNjGjqQNeO7e9M6sLGt9Mw.

[2]  O samba, aliás, talvez seja o gênero musical que melhor retrata como a vida é fundamentalmente definida por uma questão de perspectiva. Samba-se, os que o sabem (infelizmente não é o meu caso), ao som da história de um despejo (“Saudosa Maloca”, de Adoniran Barbosa), de um comentário sobre a exploração dos operários no sistema capitalista (“Samba do Operário”, de Cartola) e de desilusões amorosas (“A Flor e o Espinho”, de Nelson Cavaquinho, apenas para citar um dentre os incontáveis sambas com esta temática). Por estas e outras Caetano definiu o samba como sendo, ao mesmo tempo, pai do prazer e filho da dor.

[3]  A imagem no link a seguir traz uma comparação das malas dos dois filmes em que isso fica bastante evidente: https://tinyurl.com/mala-dinheiro


Ilustração de Gabriela Caivano.

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