Martha Rocha é graduanda em Administração Pública pela UNICAMP, taróloga e curiosa. Não é Miss Brasil (ainda). É colaboradora da revista Aboio.
Fazer alusão à obra de David Lynch como “onírica” é lugar-comum e tentarei ao máximo poupá-los do óbvio. Introduzir alguém ao universo da tarologia lançando mão de referências ao caldeirão de símbolos da psiquê é também algo batido quando nos habituamos ao menos um pouco com o estudo dos oráculos.
Mesmo assim, não posso deixar de admitir que, sempre que me permito ser invadida por cada uma das lâminas do tarô, uma infinidade de pequenas ondas se agita nas entranhas do meu inconsciente, pouquíssimo habituado a lidar com a falta de lógica quando estou desperta. Foi isso que me ocorreu da primeira vez que vi Mulholland Drive (EUA, 2001) e, desde então, sempre que acesso lembranças de minha experiência assistindo ao filme, acesso também um arcano do tarô (mais precisamente do tarô de Marselha), que é O Enamorado.
Lynch trabalha como ninguém nas lacunas e nos mistérios e, assim como o tarô, não tem a presunção ser impenetrável.
Em primeiro lugar, o tarô é um oráculo composto por 78 cartas (também chamadas de lâminas e arcanos) recheadas de símbolos e significados próprios que, se para alguns é uma ferramenta de espiritualidade e divinação, para outros é tão somente um arcabouço simbólico que fornece caminhos para o autoconhecimento e reflexão. Há quem pense que o tarô não é nada disso, há ainda quem pense que ele é tudo isso e mais um pouco. De qualquer maneira, dessas 78 cartas, 22 possuem uma carga mais detalhada de representações que permitem análises mais profundas e repletas de nuances. O Enamorado é a 6ª dessas 22.
Uma das coisas mais fascinantes é que, para além dos significados que são ponto pacífico entre os tarólogos, a experiência cotidiana e presente com o oráculo enriquece as dimensões em que os arcanos são percebidos.
“Arcano” significa, literalmente, mistério, e mergulhar em um arcano é também se permitir navegar pelos cantos vazios do que ainda não se percebeu sobre as suas possibilidades. Lynch trabalha como ninguém nas lacunas e nos mistérios e, assim como o tarô, não tem a presunção ser impenetrável. É justamente a não determinação de significados concretos que dá o espaço necessário para que tudo seja e não seja, para que a potencialidade se faça presente e convide o consulente e o espectador a passearem dentro das próprias percepções. Sei que o que o que faço aqui pode muito bem ser censurado sob esse mesmo pretexto. Os contornos que o amorfismo dos símbolos pode ganhar é uma questão de escolha, uma escolha muito íntima, inconsciente e que nem sempre precisa ser verbalizada. De qualquer forma, é na questão da escolha e de outras conversações mútuas que os paralelos entre O Enamorado e Mulholland Drive me saltam aos olhos.
Dentro do sonho, Betty é lúcida, clara, altiva, e Rita, por estar perdida, necessita dela.
Evidentemente, em uma camada menos densa, O Enamorado fala, sim, do amor romântico. Em essência, Mulholland Drive pode ser considerado um filme sobre uma paixão sôfrega, imaterial, concretizada a contento apenas no mundo dos sonhos. O Enamorado é um arcano que faz alusão à união entre os opostos, à inevitável aglutinação rumo à unicidade que nossa existência de dualidades nos nega. Dentro do filme, há um movimento constante de separação e ligação entre o que se espera ser incompatível, e até mesmo a chegada das personagens de Laura Harring e Naomi Watts à narrativa se contrapõem. Mesmo assim, é interessante ter em mente o ponto de vista de que boa parte da história se passa nos domínios da cabeça de Betty (Naomi Watts).
Sem a apresentação de um nome, a mulher interpretada por Laura Harring entra em cena através de um acidente de carro, perdida de si e da cidade, rodeada de obscuridades que vão desde o fato de seu “nascimento” na história ocorrer durante a noite até suas roupas e cabelos pretos. Nesse instante há o primeiro lampejo de separação que precede a união, que é o rompimento com quem quer que ela fosse antes desse infortúnio. Um pouco mais tarde descobrimos que, pelo menos durante o primeiro ato do filme, a personagem não se lembra de nada sobre sua vida em razão do acidente. A escuridão que a acompanha durante a narrativa da fantasia de Betty remonta ao buraco vazio de seu desconhecimento de si. A hostilidade que envolve sua primeira aparição carimba a sensação que muito provavelmente o jovem d’O Enamorado experimenta ao olhar para a figura também morena à sua esquerda. É certo que ela não deixa de conter certo magnetismo, pois é o objeto de sua atenção no momento. Qual é a atração que o desconforto e a escuridão trazem ao enamorado? Que aprendizados tortuosos e ricos, no fundo, ele sabe que escolhê-la em detrimento da aparente luminosidade da mulher loira pode trazer?
Em seguida, temos a doce chegada de Betty (Naomi Watts) a uma Los Angeles diurna, ensolarada. Tudo recende a um começo promissor, e a candura de sua esperança infla a atmosfera da cidade com uma alegre agitação violentamente contrária à imprecisão noturna do acidente que dá à luz a outra personagem. Visualmente é impossível não associar seu aspecto aceso nos cabelos, nos olhos e nas cores das vestimentas ao entusiasmo e à clareza da aspiração de ser atriz que a personagem quer perseguir.
Posteriormente, no filme, são dados indícios de que tudo pelo que Betty passa se trata de um delírio alegórico para sua paixão avassaladora e doída por Rita.
Sallie Nichols, em Jung e o Tarô, ao tratar da carta d’O Enamorado, aponta para uma interpretação que reconhece a mulher morena como a anima que remete à energia de tolhimento materno, enquanto a anima loira pode ser considerada a força sedutora que puxa o enamorado para longe desse domínio de sufocamento. Levando em consideração que nesse momento Betty não é mesmo Betty, mas sim uma representação de quem ela gostaria de ser idealmente, ela mesma acaba por cumprir o papel de, mais tarde, escolher remover-se de uma fantasia que, sob o jugo da personagem morena, exclui possibilidades concretas. Para todos os efeitos, Betty pode ser todos os componentes do arcano, até mesmo o cupido que sobrevoa o triângulo amoroso e que lança a flecha derradeira que sela um destino.
As duas personagens acabam cruzando seus caminhos na casa da tia de Betty em Los Angeles, o lugar que desde o princípio da narrativa era o destino da loira. A personagem morena anônima (que em determinado ponto escolhe o nome Rita, já que não lembra de seu próprio), entretanto, é uma intrusa ali. É lá que ela procura refúgio para se recompor do acidente e da perda de memória causada por ele. Posteriormente, no filme, são dados indícios de que tudo pelo que Betty passa se trata de um delírio alegórico para sua paixão avassaladora e doída por Rita.
Adentrando o reino dos símbolos, a casa de sua tia pode ser considerada sua própria psiquê e aqui surge algo interessante. Quando Betty chega à casa, Rita já está lá. Betty não se desespera, não a hostiliza, não se surpreende; em vez disso, a acolhe com suavidade. É como se, fora desse campo de ilusões, o sentimento que Betty nutria por Rita tivesse se instalado antes mesmo que ela pudesse tomar notas conscientes a seu respeito. A ela só restou se render. Por mais dolorida que seja a não efetivação do seu amor na vida real (e digo real com bastantes ressalvas, pois estamos falando de David Lynch), dentro de sua cabeça a rendição de que é vítima é subvertida pelo elemento da necessidade. Dentro do sonho, Betty é lúcida, clara, altiva, e Rita, por estar perdida, necessita dela.
Um dia antes, também, uma vizinha sente a necessidade de dizer a Betty, mesmo sem saber da presença de Rita na casa, que algo ruim estava acontecendo. É instalada uma atmosfera de instabilidade.
Acima mencionei alguns dos significados do arcano d’O Enamorado como a união e o amor. Perceba, entretanto, que este é o lado de luz da lâmina. Nesse ponto do filme, os primeiros traços de seu lado sombrio começam a aparecer: codependência, individualidade reduzida, perder a si mesmo no outro. É muito confortável, mesmo dentro da mente de Betty, que Rita necessite dela, pois isso gera um laço que espontaneamente poderia não existir. Mas é aí também que esse lado perverso d’O Enamorado é manifestado aos poucos. É na necessidade que Rita tem que Betty a oriente rumo a esclarecimentos sobre sua vida que o pêndulo entre separação e união volta a se inclinar para esta última. Rita se perdeu de si mesma, mas está se encontrando ao se espelhar em Betty (verdadeiramente ou não). Um adendo pessoal que faço é que, raramente, ao realizar consultas para outras pessoas no âmbito amoroso de suas vidas, Os Enamorados (que é o mesmo arcano, mas utilizado em uma variação moderna do tarô, o Smith-Waite) traz elementos de completa suavidade a uma relação. De uma maneira ou de outra, quando ele figura em uma tiragem, é bom se atentar para os limites da individualidade e do espaço que o relacionamento ocupa na vida do consulente.
Betty e Rita passam a se dar cada vez melhor e vivenciam momentos descontraídos juntas, como se já conhecessem de outros tempos. Mas, como era de se esperar, a união é ameaçada. Coco, a administradora do pequeno condomínio onde a casa da tia de Betty se localiza, percebe a desconhecida tranquilamente bebericando um chá, e estranha sua presença naquela casa. Um dia antes, também, uma vizinha sente a necessidade de dizer a Betty, mesmo sem saber da presença de Rita na casa, que algo ruim estava acontecendo. É instalada uma atmosfera de instabilidade.
A partir daí é possível notar que a existência de Betty e Rita no mesmo universo é comprometida simultaneamente pela distância entre elas (pois, se elas não se encontram, o universo do sonho de Betty perde a razão de ser) e por sua proximidade (se há comunhão entre elas, o universo do sonho de Betty também perde a razão de ser, mas porque atingiu seu clímax).
O Enamorado precisa se decidir: para qual das direções ele irá caminhar?
Mais adiante a consumação da união das duas é o pavio aceso para que essa realidade ilusória imploda. Entretanto, agora o momento de decidir se aproxima e a tensão começa a se acumular num crescendo: já que O Enamorado precisa se decidir, para qual das direções ele irá caminhar?
Os significados desse arcano mais relacionados ao livre-arbítrio e à autonomia humanas, para além de uma escolha amorosa, talvez fiquem mais evidentes na versão de Pamela Colman Smith no tarô Waite-Smith. A escolha pictográfica do Jardim do Éden evoca claramente o mito bíblico de Adão e Eva e da opção por provar ou não do fruto do conhecimento do bem e do mal. Em ambas as versões, contudo, não é possível concluir qual escolha foi tomada.
O Enamorado (e também Os Enamorados) é, necessariamente, um arcano de transição, e contém em si a inquietação que precede a necessidade de prosseguir o resto da jornada com os outros dezesseis arcanos. A bem da verdade, nenhum dos arcanos do tarô possui uma natureza estática. Não se pode residir no arcano número 6 para sempre, e é essa urgência que se traduz na tensão que põe em risco a existência simultânea de Betty e Rita. Não fazer uma escolha também é uma escolha, e a hora de Betty transpor a suspensão da realidade se faz mais próxima a cada instante. Chega o momento em que a comunhão das duas atinge seu ápice para logo desmoronar de vez.
O Enamorado não consegue desempenhar sua função se não por uma decisão que sacrifica todas as outras não selecionadas.
É insustentável para Betty e Rita continuarem coexistindo e a descoberta catártica de um cadáver na suposta antiga casa de Rita desencadeia o início do solve et coagula final desse arco. Rita não suporta mais estar na própria pele, e a solução dada por Betty a essa agonia é deixá-la mais parecida consigo mesma. Depois disso, da inevitável percepção da atração que já paira no ar e só é corroborada pela existência de agora duas mulheres loiras, as duas dormem juntas, o que leva a experiência da união ao seu nível mais culminante.
A sobreposição entre Betty e Rita pela aparência e pelo sexo põe em risco, de vez, a viabilidade de compartilharem do mesmo universo, o que mesmo após o sonho continua a ser uma verdade para Betty. Se eu sou você e você sou eu, por que precisamos ambos estar aqui?
Ao maximizar a potência da anima loira, Betty escolhe dar um salto para fora dessa ilusão. Fora do sonho, onde Betty é Diane, uma escolha ainda resta a ser feita. E novamente, para ela é insustentável que ela e Rita, agora Camila, habitem o mesmo planeta. Se antes a impossibilidade se dava pela comunhão, agora é a cisão que torna impossível a elas que existam juntas. O Enamorado não consegue desempenhar sua função se não por uma decisão que sacrifica todas as outras não selecionadas. Betty, tal como o cupido fincando sua seta precisa, decide matar Rita (Diane) e a si mesma. Betty é O Enamorado em todas as suas expressões. É O Enamorado em si, é a mulher à sua esquerda e à sua direita, é o cupido que lança sua seta certeira e conduzida a um só fim. É a atração e a repulsa concomitantes, criando e destruindo o amor que quer e o que abomina. Agora que sua escolha foi feita, não há mais por que continuar habitando sua forma de arcano. Seu papel foi cumprido e lhe resta o silêncio. Silencio. No hay banda.
Releitura da carta O Enamorado (do tarô de Marselha) feita pela artista visual Bambi.