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Eis os delírios do mundo conectado: quando Herzog encontra a internet

por Yasmin Bidim
Imagem de Luísa Machado para texto de Yasmin Bidim sobre Werner Herzog

Yasmin Bidim vive na cidade de São Carlos, interior de São Paulo. Tem formação em cinema e é doutoranda em Estudos de Literatura pela UFSCar. Trabalha como pesquisadora e educadora de arte e cultura, artista multimídia e produtora cultural. Produz o canal Poesia em Obra, no YouTube, no qual divulga seus poemas visuais e também o blog A Terra é Plena. Em 2020 lançou pela editora Penalux seu primeiro livro de poemas, o Livro dos Interiores.


“… é quase impossível não ser idealista com a matéria técnica quando tudo caminha bem e não ser materialista quando as coisas não saem como prevíamos”.
Bruno Latour [1]

Escolho essa citação do sociólogo Bruno Latour como epígrafe para esse breve comentário sobre o mais recente documentário de Werner Herzog, Eis os delírios do mundo conectado (2016), não apenas por ela evidenciar a postura dualista que normalmente se toma em relação a internet – o grande objeto técnico eleito pelo diretor alemão como tema principal de seu documentário –, mas principalmente por ela trazer duas reflexões que me parecem ser as premissas do filme: a primeira, que a perspectiva dualista não é rígida, mas maleável, de modo que podemos passar de uma a outra dependendo do grau de consciência da matéria internet; a segunda é precisamente essa, compreender a internet como uma matéria. Ainda que possa ser extremamente difícil não pensar a internet como algo abstrato e virtual, Herzog parece fazer questão de nos lembrar, durante todo o filme, que ela tem uma dimensão material.

Assumo desde já que a apropriação que faço do pensamento de Bruno Latour é bastante descompromissada já que meu conhecimento de seu trabalho é bastante raso, mas me parece, pelo pouco que li e estudei, adequado aproximar a internet à noção de objeto técnico, ainda que eu mesma não saiba dizer se a internet é, estritamente, uma técnica ou uma tecnologia. Tampouco isso importa para pensar o filme de Herzog, interessando-me apenas a ideia, que trago de Latour, de que a internet, seja tomada como uma técnica ou como tecnologia, é muito mais que um objeto apenas, mas sim uma cadeia de composições e desvios que, num eixo histórico, é produto (e simultaneamente produtora) de uma série de transformações protagonizada por diferentes atores, desde cientistas e pesquisadores passando por usuários e empresários.

E é justamente ao caráter dinâmico e processual da internet que Herzog parece se mostrar sensível na forma como conduz seu comentário documental sobre a internet. Por meio de pequenos capítulos que funcionam como crônicas, o documentário consegue dar uma dimensão do labirinto de conexões que constitui esse objeto que conhecemos como internet.  aqui é bom explicar que não me refiro (apenas) à materialidade em si da tecnologia que se constitui como uma rede de conexões infinitas, mas à dimensão que transborda sua materialidade interna, igualmente capilarizada e que envolve séries de relações sociais incontáveis, convertendo a internet no que Latour chama de objeto sociotécnico. O que significa que, embora na maior parte do tempo estejamos conectados  à internet sem percebê-la, sem tomar consciência dela, basta uma pane técnica para que nossa consciência em relação à tecnologia em si seja completamente alterada. Aí precisaremos entrar em contato com a operadora de internet, tentar descobrir qual o problema, e desse modo, de objeto técnico invisível, a internet migra rapidamente ao status de objeto sociotécnico que precisa da manipulação de diversas pessoas. Deixa de ser transparente e passa a ser opaca, deixa de ser uma solução e passa a ser um problema, transitando por esses dois polos entre o idealismo e o materialismo.

A ideia de materialidade da internet é reforçada no filme (…) por meio desse recurso de mostrar e revelar os aparelhos e objetos reais e palpáveis que de alguma forma fizeram parte da história da tecnologia.

No primeiro capítulo de Eis os delírios do mundo conectado, cujo título é “The early days”, Herzog vai até a universidade de Stanford para entrevistar alguns dos pesquisadores envolvidos na primeira “transmissão” de internet, que aconteceu entre dois computadores de duas universidades estadunidenses. Numa pequena sala, rodeado de máquinas jurássicas e documentos de papel, um dos cientistas nos conta a história dessa primeira transmissão, evidenciando seu caráter histórico ao comparar o registro em papel dessa primeira “conexão” ao registro de “terra à vista” feito na caravela de Cristóvão Colombo. Fica evidente o caráter dual da internet nesse momento: ao mesmo tempo que estamos numa sala repleta de materialidades que possibilitaram o começo da internet, também estamos ouvindo um discurso que traz uma visão idealizada da internet. Não que eu discorde que o surgimento da internet seja um evento histórico tão importante quanto as grandes navegações, mas a grande sacada de Herzog é começar o filme justamente com esses grandes cientistas que, para criar a internet, precisaram tomar consciência de suas materialidades. E é essa primeira tese, digamos assim, que o primeiro capítulo lança: a internet é um fato material, histórico e concreto. 

A ideia de materialidade da internet é reforçada no filme, em outros momentos, por meio desse recurso de mostrar e revelar os aparelhos e objetos reais e palpáveis que de alguma forma fizeram parte da história da tecnologia. Um deles é um catálogo telefônico impresso, datado dos anos 70, que relacionava todas as pessoas que tinham pontos de conexão com a internet naquele momento, um documento impresso com a espessura de um livro de cem páginas, algo que hoje, cinquenta anos mais tarde, é quase inconcebível de se imaginar pelo que é a internet hoje. 

Simultaneamente a essa exposição de objetos palpáveis (computadores antigos de dois metros de altura, logs registrados em fichas de papel, catálogos telefônicos etc.), que evidenciam a dimensão material e o caráter sociotécnico da internet, Herzog também agrupa, ainda no primeiro capítulo do filme, uma série de discursos técnicos de cientistas e pesquisadores que, para quem não é um deles, soam como abstrações generalizadas, ainda que estejam falando da concretude da matéria internet. O que mais chama atenção nesse sentido é a entrevista de Ted Nelson, identificado como um “pioneiro da internet”, que num discurso bastante metafísico nos conta como tudo começou quando ele tinha cinco anos de idade e colocou a mão na água e percebeu como a água se separava e depois se encontrava novamente ao passar pelos seus dedos, e como esse pensamento foi difícil de explicar e ao mesmo tempo lhe pareceu uma verdade reveladora, o que posteriormente o fez pensar na ideia de uma rede de computadores, baseada nas interconexões infinitas e universais. 

Nessa e em outras entrevistas cujos conteúdos nos soam absurdamente abstratos e por vezes sem relação aparente com o que conhecemos da internet hoje, o que importa não é de fato compreender o que os pesquisadores e pensadores falam. Me parece que esses depoimentos estão no filme justamente para dar conta dessa dimensão absurdamente abstrata da internet, e que por mais que a utilizemos todos os dias e o mundo, tal qual o vivenciamos hoje, dependa dela, a internet é ainda um mistério, um território oculto do qual pouco sabemos a origem e o funcionamento, controlado por um número muito pequeno de pessoas e conhecido por um número talvez ainda menor.

 Originalmente idealizada como essa grande rede de computadores que possibilitaria conexões horizontais entre indivíduos ao redor do mundo, e, consequentemente, a democratização de conhecimento e saberes, a internet converteu-se num território dominado por apenas algumas empresas – ou seja, mais um espaço colonizado pelo capitalismo – e seu aspecto de controle é representado no filme pela entrevista que Herzog faz com Elon Musk, ironicamente identificado no filme como um “entrepreneur”.

(…) penso que o filme consegue, minimamente, apresentar a visão de um sujeito relativamente distanciado de seu objeto, que o trata com o misto de ironia e desprezo, e simultaneamente um certo fascínio pelas consequências sociais e humanas da presença ubíqua da internet. 

Herzog contrapõe a entediante explanação de Musk sobre a possibilidade de criar colônias em Marte e de como seria fácil implementar internet no planeta vizinho ao depoimento lúcido da cientista que afirma que, por mais atraente que possa parecer a ideia de colonizar o planeta vermelho, o que fica cada vez mais evidente é não tanto nossa capacidade de tornar novos planetas habitáveis, mas sim a de tornar nosso próprio planeta cada vez mais inóspito, e que, obviamente, a ideia de vivermos em Marte representa alguma salvação para a humanidade é falsa. Nesse momento há um corte para Elon Musk, sentado em sua cadeira de escritório com uma camiseta polo e o rosto apoiado em uma das mãos olhando resignado para o canto direito da tela. Depois de alguns segundos nessa posição ele ergue os olhos para a câmera e afirma “não acho que tenho bons sonhos”. 

Elon Musk e sua empreitada de gastar bilhões de dólares para colonizar Marte é o ápice do delírio do mundo conectado que dá nome ao documentário. Não à toa o tom irônico predomina neste trecho já no final do filme, no capítulo sete cujo título é “Internet em Marte”.

Quando comecei a assistir ao documentário tive a sensação de estar vendo um filme menor de Herzog, aparentemente despretensioso, ainda que apresentado com a característica voz do diretor narrando o filme em voz off e eventualmente surgindo em alguma entrevista, em alguma pergunta ou comentário irônico. Conforme o filme corria fui perdendo essa sensação e chegando à conclusão de que é extremamente difícil falar da internet sem fugir da dicotomia materialismo/idealismo que falamos no início do texto. 

Não acredito que Herzog consiga se manter neutro dentro desse idealismo, mesmo porque não acredito que isso possa ser possível, mas sim que oscilamos permanentemente entre esses dois estados, dependendo de nosso grau de atenção e consciência à matéria internet em si. Mas penso que o filme consegue, minimamente, apresentar a visão de um sujeito relativamente distanciado de seu objeto, que o trata com o misto de ironia e desprezo, e simultaneamente um certo fascínio pelas consequências sociais e humanas da presença ubíqua da internet. 

Herzog escolhe entrevistar pessoas cujas relações com a internet passam, necessariamente e de maneira exacerbada, pela constante dinâmica de aproximação e distanciamento com esta tecnologia específica. Sejam cientistas que precisaram abstrair e concretizar a matéria internet para criá-la, sejam estudantes que constroem robôs pelos quais são apaixonados, seja um grande empresário que fez da internet um negócio bilionário, todos estabelecem uma relação ativa com a internet. Mesmo que sem consciência da dualidade materialismo/idealismo estão constantemente saindo de um e entrando no outro, abstraindo e concretizando esse objeto sociotécnico, o que, em última análise, faz com que estabeleçam com ele uma relação bastante diferente do que a grande massa de usuários que apenas navega pela internet.

Desse modo Herzog elabora um filme-mosaico, no qual cada capítulo, menos que trazer uma tese fechada ou um comentário crítico simplista que conclua se a internet é algo bom ou ruim, busca criar uma rede de possibilidades, um mosaico mesmo do que a internet pode ser, a depender que quem está falando sobre ela. Na prática é um filme muito mais sobre as relações que se estabelecem com a internet do que sobre a tecnologia em si. O que o aproxima muito de Latour no sentido de assumir que nenhuma técnica existe isolada de seu contexto social e que mais que um produto ou um objeto, a internet é na prática um processo, um acontecimento, um sistema de relações.

Talvez o momento mais emblemático que demonstra essa dimensão no filme é quando Herzog entrevista uma família que perdeu uma de suas filhas num terrível acidente de carro. Fotos do acidente e do corpo da jovem foram parar na internet, o que de fato constitui, para a família, a parte mais traumática do evento. Num determinado momento da entrevista, a mãe afirma acreditar que a internet é a manifestação do Anticristo, o mal em si mesmo. Essa declaração, somada à direção de arte do filme, na qual toda a família – o pai, a mãe e três filhas adolescentes – estão dispostos de frente a câmera, todos vestidos de preto, as filhas em silêncio, como se tivessem acabado de voltar do enterro da filha morta, evidenciam o caráter materialmente devastador que a internet teve na vida dessa família. E, ainda assim, na declaração da mãe vemos o caráter totalmente idealizado da internet, que assume, ela mesma, a forma do mal. 

É uma sequência poeticamente muito potente e que nos permite essa tomada de consciência da técnica, e ao mesmo tempo torna ainda mais evidente o quão a internet é um fato material fora de controle. Não pela consequência particular no caso desta família, mas justamente por ela assumir todas as máscaras, todas essas conotações divergentes que vão do céu ao inferno, passando por Marte, pelo deslumbramento de cientistas, pelo terror de uma família.

Ainda que eu seja apenas uma pobre navegadora da internet, uma cidadã comum que prefere pensar que nenhuma relação sociotécnica complexa existe entre mim e meu objetivo de escrever essa crônica, a verdade é que eu vivo assombrada pela internet. Horrorizada de saber que agora o mundo é isso, que não há mais vida fora das redes sociais, dos apps, dos QR codes, dos bots. E se o filme do Herzog não é capaz de resolver essa angústia que me atormenta, ele pelo menos é capaz de me oferecer uma perspectiva acolhedora, com a qual posso me identificar e saber que não sou a única que sinto que, neste mundo conectado, nossa existência é um grande delírio coletivo sem precedentes.

[1] : [1]: LATOUR, Bruno. Cogitamos: seis cartas sobre as humanidades científicas. São Paulo: Editora 34. 2020. p. 49


Foto de Luísa Machado.

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