Luis Filipe Caivano nasceu em São Paulo, é um pouco mais velho do que gostaria e escreve porque não sabe desenhar. Foi quarto colocado na categoria crônica e finalista na categoria poesia do Prêmio Off Flip de Literatura 2021.
Gabriela Caivano mora em São Paulo e estuda psicologia. Desenha desde pequena e na pandemia começou a se dedicar mais à ilustração para se distrair do fato de que mora no Brasil.
A história de Sísifo é bastante conhecida. Por ter passado a perna em Zeus e em outros inquilinos do Olimpo em mais de uma ocasião, o primeiro rei de Éfira foi condenado a passar a eternidade no Tártaro carregando (ou empurrando, depende da versão) uma pedra ladeira acima. Como se isso já não fosse suficientemente desagradável, o deus dos raios, que tinha muito tempo livre, selecionou a dedo uma combinação de pedra e ladeira de modo que todo dia, após horas de esforço extenuante, prestes a concluir a tarefa, os músculos de Sísifo fraquejavam e lá se ia a rocha ladeira abaixo mais uma vez. A despeito de quase conseguir chegar ao topo a cada tentativa, ao final do dia o mais astuto dos mortais não tinha conseguido progresso algum em sua empreitada.
Dizer que há algo de Sísifo em todo personagem de ficção, sobretudo aqueles com destino trágico, não é exatamente uma constatação original. Toda vez que abrimos um livro, apertamos play no controle remoto para ver um filme ou assistimos a uma peça de teatro, recolocamos uma pedra nos ombros dos personagens e os obrigamos a mais uma vez subir a montanha do absurdo. Mesmo aqueles que têm um final feliz estão condenados a este angustiante e perpétuo ciclo de repetição atrás de repetição. A situação, contudo, adquire contornos ainda mais dramáticos quando pensamos em Macbeth, Desdêmona no rei Lear e em outros personagens cuja história não termina com um “e viveram felizes para sempre”. Como os deuses sádicos que criamos, nós também gostamos de ver ratinhos presos em labirintos e saber que, independentemente do que eles façam, não existe um final em que eles consigam escapar. Não seria muito surpreendente descobrir que as divindades do Olimpo se reuniam aos domingos com pipoca e refrigerante para jogar conversa fora enquanto acompanhavam o sofrimento de Sísifo, algumas delas talvez até torcendo por ele, mas todas incapazes de conter um sorriso quando a pedra inevitavelmente escorregava como o fizera no dia anterior e como o faria no dia seguinte.
É verdade, porém, que existem pedras e pedras, assim como há ladeiras e ladeiras. Hamlet, por exemplo, recebeu de Shakespeare uma senhora pedra e uma escarpa de quase noventa graus de inclinação. Não à toa, o jovem herdeiro do trono da Dinamarca é até hoje considerado um dos personagens mais complexos já criados. Ainda assim – ou melhor, justamente por isso -, por mais que ele sofra como um condenado a cada nova encenação da tragédia, caso lhe fosse dada escolha, não me parece tão absurdo assim supor que Hamlet optaria por manter as coisas exatamente como Shakespeare as concebeu, ao invés de trocar o ardiloso tio Cláudio por um, sei lá, tio Bob, que não só não mataria seu pai e se casaria com a sua mãe como também seria um churrasqueiro de mão cheia. A fama do príncipe, afinal, é proporcional às adversidades que ele enfrenta. Logo, por mais que sua pedra role ladeira abaixo ao final da peça deixando um rastro de sangue e destruição, Hamlet faz parte de um panteão tão seleto, tão singular, que no fundo podemos considerar seu fracasso um grande sucesso. No pain, no gain, já diriam os sujeitos com os quais eu tinha vergonha de dividir aparelhos na academia – um constrangimento do qual a pandemia me livrou, pelo menos.
Sísifo ao menos conhecia as razões de seu calvário; Sísifo ao menos sabia que vivia no inferno
Esse, porém, não é o caso de todos os personagens que dividem o palco com Hamlet. Não é o caso da pobre Ofélia, da infeliz rainha Gertude ou do pateta do Polônio; e certamente não é o caso de Rosencrantz e Guildenstern. E o que sabemos sobre estes dois? Não muito. Sabemos que são amigos do protagonista, sabemos que o rei Cláudio lhes pede ajuda para saber o que se passa com seu sobrinho e sabemos que eles morrem nas mãos do rei da Inglaterra porque a carta em que Cláudio pedia ao monarca inglês para matar Hamlet foi adulterada pelo próprio príncipe, de modo que os executados foram Rosencrantz e Guildenstern. Não podemos ter certeza de que eles eram cúmplices ou que sequer estavam cientes dos planos maléficos de Cláudio. Ou seja, os dois foram atirados para o seio de uma das maiores intrigas palacianas da história sem que lhes fosse dado contexto algum e, de quebra, acabaram mortos. Sísifo ao menos conhecia as razões de seu calvário; Sísifo ao menos sabia que vivia no inferno.
Partindo da situação injusta e caótica vivenciada pelos dois personagens na tragédia de Shakespeare, o dramaturgo inglês Tom Stoppard escreveu a peça Rosencrantz e Guildenstern Estão Mortos (Reino Unido/EUA, 1990) e depois dirigiu a versão que ele próprio adaptou para o cinema. O título é tirado diretamente de uma fala do embaixador inglês, que anuncia todo orgulhoso que os dois foram mortos conforme – supunha-se – solicitado por Cláudio, em uma cena que só poderia ser descrita pelo narrador da Sessão da Tarde como “uma tremenda confusão aprontada por um príncipe do barulho”. A narrativa criada por Tom Stoppard corre paralelamente à ação de “Hamlet”, mas é contada na perspectiva dos dois infelizes cuja morte já vem anunciada no título, o que faz com que ela esteja para o filme O Rei Leão 3: Hakuna Matata (EUA, 2004) assim como Hamlet está para O Rei Leão (EUA, 1994), na medida em que ambas alçam ao patamar de protagonistas dois personagens secundários de uma história original que envolve uma trama fratricida para tomada da coroa por parte de um tio que muito provavelmente dava os piores presentes no amigo secreto da família. Timão e Pumba, entretanto, não são enforcados no final.
Rosencrantz e Guildenstern Estão Mortos, fazendo do limão uma limonada, tem um pé no teatro do absurdo e o outro no humor inglês que em alguns momentos até lembra um episódio de Monty Python. A dinâmica de Rosencrantz e Guildenstern (Gary Oldman e Tim Roth em duas atuações precisas) é a de dois palhaços (ou, no jargão teatral, dois clowns): frequentemente trocando os próprios nomes um pelo do outro, engajando-se em diálogos absurdos que não chegam a lugar algum, eles lentamente percebem que há algo muito mais podre no reino da Dinamarca do que poderia sonhar a vã filosofia de Hamlet.
O filme abre com um deles encontrando uma moeda que, ao ser atirada para cima em um cara-ou-coroa sem muito propósito, resulta em cara em nada menos do que 157 vezes seguida. Diante disso, Rosencrantz (ou talvez seja Guildenstern, é difícil dizer quem é quem com certeza) comenta levianamente que deve se tratar de um novo recorde e segue preparando uma refeição despreocupadamente, mas Guildenstern (ou Rosencrantz – já deu pra entender a questão) fica devidamente inquieto com a improbabilidade da situação. “Talvez o tempo tenha parado”, especula ele, “e a experiência de uma mesma moeda dando cara uma mesma vez está se repetindo indefinidamente”. Guildenstern, portanto, intui algo acerca da situação deles próprios enquanto personagens de uma história ficcional. Os dois, afinal, habitam um universo de cartas marcadas, fazem parte de uma cadeia de causas e consequências predeterminadas, um mundo em que é perfeitamente plausível que uma moeda dê cara 157 vezes seguidas se assim for decidido pelo autor. As tramas e maquinações da corte, então, empalidecem diante desta constatação aterradora, diante deste horror existencial.
Qual é o tamanho da pedra deles? Quão inclinada é a ladeira que precisam galgar?
Conforme a trama avança e os protagonistas caminham para a forca que lhes aguarda e sempre aguardará ao final do percurso, vemos a história de Hamlet se desenrolando ao fundo, quase como parte do cenário. As poucas cenas da peça original em que Rosencrantz e Guildenstern aparecem estão todas lá, mas também acabam sendo ressignificadas em razão do clima e da abordagem do filme. Nos momentos em que Shakespeare os retira do palco, os dois caminham pelo castelo quase que a esmo, transitando entre debates filosóficos e discussões infantis em um piscar de olhos, apenas para de repente se verem no local e no momento exatos para ajudarem a manter a trama de Hamlet em movimento. Por isso o ideal é ter alguma familiaridade com a peça de Shakespeare para que ao menos se tenha um ponto de apoio mais firme, mas mesmo isso não tornará a experiência muito menos confusa, e digo isso no melhor dos sentidos possíveis. Confusão, afinal de contas, é o estado perpétuo de Rosencrantz e Guildenstern ao longo de todo o filme. Eles mal conseguem se lembrar de quando foram chamados para o palácio pelo rei Cláudio, e isso provavelmente se deve ao fato de que este momento não constitui uma cena de Hamlet, ou, em outras palavras, de um momento que, para todos os fins e efeitos, não existe.
Prestes a serem executados, os dois protestam e exigem uma explicação para o que estão acontecendo, algo que justifique seu iminente fim, ao que um outro personagem responde, laconicamente: “vocês são Rosencrantz e Guildenstern, e isso basta”. E, em um certo sentido, pensando exclusivamente na cadeia de causas e efeitos da narrativa, ele tem completa razão. É quase um silogismo socrático. Shakespeare escreveu que Rosencrantz e Guildenstern morrem em algum momento entre o final do quarto e o começo do quinto ato; os dois são Rosencrantz e Guildenstern e estão justamente em algum momento entre o final do quarto ato e o começo do quinto; logo, eles devem morrer. E isso basta. Qual é o tamanho da pedra deles? Quão inclinada é a ladeira que precisam galgar? Não sabemos; nem eles sabem. Sabemos apenas que eles deixam a pedra escapar porque assim foram criados, para falhar. Guildenstern, inconformado, expressa seu remorso dizendo que deve ter havido um momento, no começo de tudo, em que eles poderiam ter dito não e que assim teriam escapado do seu terrível destino, mas que de alguma forma eles o perderam. De fato, havia inúmeras possibilidades de que as coisas terminassem de outro modo, não só para Rosencrantz e Guildenstern, mas para Hamlet, Laertes, Horácio, lady Macbeth, Otelo, Próspero e todos os personagens já criados por Shakespeare ou por qualquer outra pessoa em toda a história do mundo. Mas as coisas foram escritas de outro modo. Rosencrantz e Guildenstern poderiam ter dito não a Cláudio, mas Shakespeare quis que eles dissessem “sim”; e isso basta.
“Nós estaremos preparados da próxima vez”, lamenta um mal iludido Guildenstern já com a corda no pescoço, tentando negar a brutal realidade de que cada vez em que um grupo de teatro de ensino médio ou uma mega companhia da Broadway resolver encenar “Hamlet”, toda vez que alguém ler o texto da peça ou assistir a uma de suas incontáveis adaptações para a TV e para o cinema, Rosencrantz e Guildenstern vão morrer de novo, de novo e de novo.