Abrindo a primeira década do século XXI, numa Angola pós-independência que se debruça sobre as feridas da guerra civil – estas fincadas no corpo de quem vai e de quem fica -, vem ao mundo Dizes-me coisas amargas como os frutos (2001), terceiro livro de poemas de Paula Tavares. Como indica o título, amargos não são somente os frutos: são as palavras que têm cor, textura, e dimensão, quase palpáveis, ligadas à construção de uma linguagem imagética composta por metáforas que remetem à guerra, aos ritos, e se vale da referência a elementos da natureza – animais e ciclos -, por sua vez compondo o mítico no poema. Os frutos, aqui, não são doces como habitualmente se espera; saboreia-se o amargo de um fruto já maturado numa dicção disfórica, sendo o doce o lugar intocado da memória: o estar junto em comunidade. Agora, o amado retorna “com a morte nos olhos/ e sem sandálias” (p.119), “mudo e sem o arco” (p.140), pois perdeu “o brilho de contar” (p.132).
A poeta cresceu em Lubango, na Huíla, região intestina e sem litoral ao sul de Angola, ambiente propício à construção de uma enunciação que fala de dentro, do íntimo e entranhado, buscando compreender o que a cerca. São vozes que enunciam com o sangue e tiram suas forças das veias da terra e do corpo, visando novos ciclos; a começar por lamber as feridas, ao modo que fazem os bichos para curá-las, condensando na imagem da vaca as experiências do feminino:
Vaca fêmea, guia bem amada dos rebanhos
a que não salta, não corre
avança lenta e firme,
lambe as minhas feridas
e o coração.
(TAVARES, p.117)
A epígrafe citada acima compõe o dístico harmônico e complementar boi [1]/vaca, animais elevados a símbolos nacionais. O boi, por um lado, guia a voz entre o som e o silêncio, compondo o imaginário dos povos bantu e pré-bantu [2] do território Angolano originário, que tinham o boi como animal sagrado; a vaca, por sua vez, dá leite, nutre e avança “lenta e firme”, remetendo ao arquétipo materno de manutenção da vida. A tristeza, no entanto, se instaura agora no poema, devido à impossibilidade de nutrir: “A mãe olhou as entranhas com tristeza/ espremeu os seios murchos” (TAVARES, p.149).
Se, até então, o arquétipo da Mãe era símbolo de identidade nacional e continental de grande expressão em diversos países africanos, em oposição ao paternalismo do colonizador, agora a mãe é de carne-e-osso e sangue, falando-nos mais próximo ao ouvido – ou à ponta dos dedos, se quiserem. A mãe é a principal mantenedora dos hábitos e costumes que visam a guarda da memória de um tempo, agora perdido: “A mãe viajou sem as pulseiras e os óleos de protecção” (TAVARES, p.148).
Sendo o cercado o espaço onde se inscrevem mães, filhas, esposas, irmãs e viúvas, à volta do qual o amado ou o filho anda “em círculos de fogo” (p.136), a enunciação feminina é aquela que, no momento histórico específico, dá conta de dizer e de contar, sendo a “esperança cansada da vida” após uma experiência histórica coletiva e traumática. A partir, então, da impossibilidade do retorno aos óleos puros do começo, sabendo que o amado ou o filho retorna incontornavelmente diferente – quase estrangeiro -, as vozes femininas se fortalecem no reconhecimento da falta e na elaboração do luto, organizando suas experiências em torno de sua religiosidade, de suas crenças e símbolos, e de suas visões críticas a respeito da realidade que lhes foi imposta.
Lírica amorosa, erótica, feminista, de expressão política… uma poética que não se adequa a uma categoria fixa, pois articula-se entre cruzamentos, entre os lagos ou na curva do rio, como indicam dois títulos de poemas; ou ainda entre o som e o silêncio, como prenuncia a primeira epígrafe.
Vale ainda dizer que o terceiro livro de Paula Tavares compõe uma “poética do gesto”, ao pretender refazê-lo através da palavra, apontando para as dificuldades encontradas pelas vozes femininas que estão aprendendo a dizer de maneira ativa. Isso se formaliza no poema através de uma costura minuciosa dos significantes que operam para a proliferação de significados, aproximando o leitor desta poética que, no regional, condensa todo um universo. É singular no que se refere às experiências das mulheres no interior de Angola; abre-se, no entanto, ao universal, à medida que dialoga com as matrizes das tradições orais e a dicção da modernidade que inaugura a cisão do eu, viabilizando a polifonia tão marcante na poética de Paula Tavares. Dizes-me coisas amargas como os frutos dá a ver sua fonte na literatura que vinha sendo construída no processo de formação nacional de Angola, sendo a polifonia procedimento encontrado nas obras do romancista Pepetela e mesmo do contista moçambicano Mia Couto – em O fio das missangas, por exemplo. No entanto, é deslocando os topoi, a partir de ângulos majoritariamente femininos, que Paula Tavares desafia o silêncio e a incomunicabilidade pós-guerra civil.
Debruçadas sobre os “óleos sagrados da espera” – a espera agora sem sentido -, muitas vozes femininas ecoam mensagens aos companheiros, sendo algumas dentre elas verdadeiros alertas. A espera feminina, habitualmente concebida como passiva e esperançosa, é topos de uma longa tradição clássica e lusófona – haja vista as cantigas trovadorescas de amigo – com a qual conversam muitos dos poemas. Estes, no entanto, parecem deslocar o lugar da espera para um pólo ativo e desencantado, reconfigurando o lugar canônico do feminino que habita o imaginário ocidental, num contexto sócio-político em que a inscrição da ausência e o rasgo na memória são marcados pelo homem, após sua partida. Nesse sentido, quem fala, nos poemas de Paula Tavares, é quem fica, impõe limites – a partir do corpo-território e do cercado-mundo – e assume uma postura ativa do contar como força vital que move a vida e reorganiza a memória, reconhecendo-a fragmentada pela experiência histórica.
A poesia de Paula Tavares, habitualmente pensada no conjunto das obras da Geração das incertezas, formaliza uma busca por novas maneiras de reacender a palavra e entender a História, desta vez a partir da vida pra dentro do cercado, mantenedora da memória de um tempo:
Guardo a memória do tempo
em que éramos vatwa,
os dos frutos silvestres.
Guardo a memória de um tempo
sem tempo
antes da guerra,
das colheitas
e das cerimônias.
(TAVARES, p.120)
Na grande área dos estudos africanos em língua portuguesa e francesa, aponta-se para o deslocamento de uma dicção afirmativa pré-independência, muito centrada nas questões identitárias no olho do furacão dos movimentos de luta pela libertação, para uma dicção desencantada pós-independência, que se volta para a inscrição da falta, haja vista a situação de extrema miséria em Angola. A falta de alimento, de companheiro, de sossego, de sono, e de esperança: “Os celeiros estão vazios/ As crianças sem leite” (TAVARES, p.121).
É, então, através das experiências plurais do feminino, guardião do conhecimento dos ritos e costumes que organizavam a tradição de povos como Kwanyama – grupo étnico-linguístico do território Angolano, referência do primeiro poema -, que é tecido o corpo dos poemas, formando um verdadeiro tear vertical polifônico e, até mesmo, metalinguístico:
Meu corpo
é um tear vertical
(…)
é uma floresta fechada
onde escolheste o caminho
Depois de te perderes
guardaste a chave e o provérbio.
(TAVARES, p.124)
Se às mulheres não coube fazer a guerra, a elas caberá a reordenação do cosmos a partir do universo encantatório da palavra, à maneira como propõe Paula Tavares. Compreender, criticar e reordenar – “dar nomes aos bois” – para que as próximas gerações compartilhem uma existência em comunidade onde cada qual realize um papel singular e insubstituível, equiparável socialmente, implicado numa rede de relações interdependentes. A potência do feminino, em Dizes-me coisas amargas como os frutos, encontra-se na descoberta da voz que afirma “Sou eu que teço/ a rede onde se deita.” (p.122); com seu arcabouço vocabular feminino por excelência – o útero, o sangue, os seios, o leite -, expõe a ferida e reivindica uma nova posição na trama social.
As vozes femininas de Paula Tavares nos dão notícia de que não são somente espera. Colocam-se, como pode-se ler nos poemas Mukai (6) e Mulher VIII, questionadoras, reformulando o imaginário em torno do feminino, na impossibilidade de caber nos papéis tradicionais já violentamente rompidos. Ser pássaro e serpente, à maneira de lançar-se ao sublime, em busca da liberdade da palavra, tendo como ponto de partida o chão que sustenta a existência muito próxima da terra e da ancestralidade, pilar fundamental contido nos provérbios, que guia caminhos inéditos e possíveis para além dos cercados.
Notas
[1] Primeira epígrafe de Dizes-me coisas amargas como os frutos: “Boi, boi/ Boi verdadeiro,/ guia a minha voz/ entre o som e o silêncio” (p.117).
[2] Haja vista a referência ao grupo étnico-linguístico vatwa no poema “Origens”.
Referências Bibliográficas
CHEVRIER, Jacques. Littératures d’Afrique Noire de Langue Française. Paris: Éditions Nathan Université.
PADILHA, Laura Cavalcante. Bordejando a margem (escrita feminina, cânone africano e encenação de diferenças). Belo Horizonte: SCRIPTA, 2004.
SECCO, Carmen Lucia Tindó. A literatura e arte em Angola na pós-independência. Belo Horizonte: SCRIPTA, 2008.
TAVARES, Paula. Amargos como os frutos: poesia reunida. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.
Lena Martins é graduanda em Letras Português/Francês (FFLCH/USP) e tem interesse pelas literaturas africanas de expressão portuguesa e francesa. Professora particular de inglês e francês, atualmente vive em São Bernardo do Campo (SP). Escreve e ri, pois tem em conta o provérbio cabinda: chorar não chorar, a planície fica na mesma.
Francisco Van-Dúnem (Van) é mestre em educação artística pela University of Surrey Roehampton, Londres, em colaboração com o Instituto Superior Politécnico de Viana do Castelo (Portugal), membro fundador da União Nacional dos Artistas Plásticos e co-fundador e professor da Escola Média de Artes Plásticas em Luanda.