Florencia Guzzetti é argentina e atualmente reside em Porto, Portugal, uma cidade que lhe apaixonou enormemente pelas ruas, o céu, a proximidade com o mar. Estudou Literatura em Buenos Aires e agora pensa sobre a pornografia e a suas relações com os feminismos. Gosta imensamente de ler e escrever e está muito motivada com o desafio de fazê-lo numa outra língua tão linda como é o português.
Introdução
A longa risada de todos estes anos [La larga risa de todos estos años] é um conto de Rodolfo Fogwill escrito e publicado pela primeira vez no Ejércitos imaginarios em 1983 e republicada, quase dez anos depois, em um de seus livros mais conhecidos: Muchacha Punk. Lamentavelmente, como não tem tradução ao português, os títulos são uma tradução livre e os trechos ficaram na língua original para respeitar o registro e a grande argentinidade que o conto tem.
Embora o argumento possa ser resumido em uma história de amor entre dois personagens, o conto é muito mais complexo. Já na superfície, esse relacionamento não é convencional: homossexual, não monogâmico e com práticas BDSM (ista é uma hipótese pessoal da história que irei desenvolver ao longo do texto), em um contexto de ditadura que silencia e reprime qualquer atitude que ameace a ordem hegemônica. Mas o grande sucesso de Fogwill não está em contar esta perspectiva dissidente, mas em conseguir acompanhá-la no plano formal: a construção da voz narrativa é trabalhada de tal forma que é apenas no final da história que percebemos a identidade feminina do locutor. Nesse momento, o leitor se descobre “enganado”, não só pelo narrador, mas principalmente por seus próprios preconceitos, que preenchiam os silêncios do texto.
Nesse sentido, seria muito pobre dizer que a história conta apenas uma história de amor. A história é, em todos os sentidos, política. Mas o “político” em Fogwill sempre tem um tom particular, algo como um murmúrio constante, como se, enquanto alguém o estivesse lendo, uma manifestação fosse ouvida ao fundo, através da janela, capaz de invadir o ambiente todo, como se pudessem ser sentidos na pele os milhares de corpos reunidos, aglomerados (penso agora no seu conto A fila [La cola]), ou como se fosse ouvido, como acontece em A longa risada…, o silêncio que é produto de uma repressão. Porque, como sabemos, o que não é dito tem tanto peso quanto o que é dito, e às vezes até mais.
O “político” em Rodolfo Fogwill não é explícito, mas é evidente. É a base de sua escrita. Nesse sentido, A longa risada de todos estes anos não se refere à ditadura, mas não deixa de tratar do assunto. É uma sugestão mais do que óbvia, um sinal que pretende ser evidência. Não descreve, como em tantos outros textos literários que remetem à época, a sociedade argentina daqueles tempos, mas é narrada através do cotidiano de um casal (lésbico) de classe média. É pertinente pensar a lésbica como um parêntese: na história, ela é relegada a esse lugar entre paredes, na esfera privada, sem sobressair, procurando ser despercebida.
Poderíamos afirmar que é político na medida em que “o pessoal é político”; na medida em que 1983 marca o fim de um período ditatorial e o início de uma nova era democrática na Argentina; político na medida em que Fogwill fala do silêncio com o silêncio, trabalhando em conjunto o plano formal e o plano da história.
Conquistar a palavra
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Voloshinov afirma que nas palavras “a luta de classes vence”: o próprio signo linguístico é uma arena de combate onde o conflito (e eu acrescento: o amor, o afeto) ocorre e seu resultado é necessariamente ideológico. Não existe palavra inabitada, não existe “palavra neutra” esvaziada de algum tipo de conotação.
Embora todo signo seja ideológico, existe, por assim dizer, uma espécie de “gradação”: palavras com mais ou menos conteúdo. Em A longa risada de todos estes anos essas palavras são fortes e imediatamente atraem a atenção de quem as lê. Exemplos disso são termos como “desaparición” ou “blanquear”. Ninguém na Argentina pós-ditadura poderia escrevê-las ingenuamente, ignorando a referência histórica que têm. São palavras cujo significado mudou para sempre: em termos de Voloshinov, uma arena de combate tingida de significado negativo.
Nessa linha, outro marco de época é a ação de “fingir”: fingir que algo não era conhecido. Nessa história, fingir é um ato duplo, que pertence tanto ao domínio “público” quanto ao “privado”: é simulado em relação ao que acontece no país e também é fingido em relação ao que acontece dentro de casa: o relacionamento lésbico.
O silêncio é um corpo que cai
Seguindo a lógica de Voloshinov, surge uma pergunta: é válido dizer que esse signo que não aparece existe e que também é ideológico? Acredito que a história do nosso país nos permite afirmar isso, e que o conto honra esse silêncio, esse parêntese.
O silêncio é um corpo que cai é o nome de um documentário de 2017 escrito e dirigido por Agustina Comedi e que conta a história de um gay (pai da diretora) que decide se casar com uma mulher e constituir uma família “tradicional”. Um homem que depois da ditadura decide silenciar seu passado e “fingir” uma vida que não lhe pertence.
Comedi vasculha e revela a sua história por meio de pedaços de documentos que descobre depois de ele morrer. O silêncio é um corpo que cai demonstra que a verdade que o silêncio tenta calar acaba por se manifestar. No conto de Fogwill, a elipse voluntária – de fatos, de pessoas, de marcas de gênero – destaca essa falta de forma paradoxal: o silêncio e a omissão fazem também parte da linguagem.
Como a cultura argentina da época não estava preparada para falar de lesbianismo, não podemos dizer que o discurso seja nem subversivo nem rebelde: é silêncio mesmo, e a marca de gênero é apagada. Lesbianismo e ditadura são o que não se pode contar dessa história. Para tanto, a narradora recorre a palavras que sugerem o contexto, pois em nenhum momento cita nenhum deles. Nem a palavra “ditadura” nem “lesbianismo” aparecem explicitamente, mas há certos significantes que, dentro do texto, revelam o contexto a que se referem. Isso faz parte da marca registrada de Fogwill, sua maneira de escrever o “político”.
Narrador(a)
Como o lesbianismo não podia ser anunciado, a construção da voz narrativa exige um trabalho muito meticuloso. Precisa não deixar marcas de gênero explícitas e, portanto, obriga o leitor a “preencher” essas lacunas, a inferir o todo (identidades) a partir da parte (hábitos). Nesse sentido, a enumeração de atividades geralmente atribuídas ao homem em nossa cultura cis-heteropatriarcal (praticar judô, escrever, dar aulas na universidade, fumar, beber uísque, frequentar prostitutas) leva quem lê a recriar a imagem de um personagem masculino. Pode-se dizer o mesmo de todos os estereótipos do papel de mulher reproduzidos pela personagem de Franca, sua parceira: cozinhar, sentir ciúmes, não ter força ou capacidade suficiente para o judô, seduzir homens, entre outros. Mas o final do texto apresenta uma reviravolta que nos surpreende: a narradora se revela mulher e assim deixa nossos preconceitos de lado, em um gesto irônico característico da escrita de Rodolfo Fogwill.
Vamos analisar o momento da história em que se revela a verdadeira identidade da narradora. “Ochenta y tres”, ano em que a democracia argentina está para recomeçar, “Franca tampoco envejeció. Hace puntos aún, pero jura que el marido no lo sabe. […] Ella protesta que es feliz, que ya no siente celos, y que ahora es él –el marido- quien siente celos. Sabe que ella hacía puntos, pero no sabe, o finge que no sabe, que sigue haciendo puntos ahora. Ella dice que él nunca conocerá lo nuestro, porque si se enterase la echaría de la casa, le quitaría los hijos o haría cualquier locura. Lo cree capaz.”. [grifo meu]. O fingimento, os ciúmes e a violência no relacionamento de Franca com o marido são, nesse fragmento, absolutamente naturalizados porque fazem parte da norma, do que se espera em uma relação dentro desse sistema.
A história continua: “Cuenta que, salvo alguna situación en la que debió entrar para satisfacer caprichos de los clientes, jamás ha vuelto a acostarse con mujeres, y que yo fui la única por quien sintió algo fuerte y sincero en la vida”. Nesse ponto paramos, perplexos. Quem está narrando é uma mulher, e a ideia de que era homem foi uma construção nossa.
Palavras que sugerem contexto
Conforme mencionado, embora a palavra “ditadura” não apareça explicitada em momento nenhum, existem certos significantes que aparecem dentro do texto e que revelam o que está fora, o contexto a que se referem.
“Muchos dicen que recién ahora se enteran. Otros, más decentes, dicen que siempre lo supieron, pero que recién ahora lo comprenden”. Saber mas não saber, falar mas não falar é algo que todos reconhecemos como uma cicatriz da nossa história. Em seguida, acrescenta: “y que si ahora piensan o dicen pensar cosas diferentes, es porque se ha hecho una costumbre hablar o pensar distinto”.
Nesse sentido, podemos usar as ferramentas que Voloshinov nos oferece para pensar a linguagem e o espectro do pensamento possível. Não como um significado estático, mas como em movimento constante, em constante empurrão e tensão, luta e resistência entre um significado e outro. Assim, o que é pensado e, mais curiosamente, o que pode ser pensado muda em cada época, no sentido de que o que é dito concede a possibilidade de pensar outras coisas.
Tongue of thongs, the belt that does await you [1]
Um dos pontos mais interessantes para se pensar nessa história é o da violência. Como expliquei no início, a violência física que a narradora exerce sobre Franca (e sobre sua parceira posterior, Claudia) é explícita:
Entonces dejaba mi escritorio; iba hacia ella, le aplicaba una palanca de radio-cúbito, y la llevaba encorvada hacia el sofá. Trabándola contra los almohadones, sobre el sofá o sobre la alfombra, evitaba que se lastimase tratando de librarse de mi palanca. – Calmáte amor… no sigas… – le pedía entonces, hablándole contra la oreja. Pero ella gritaba más: que la iba a matar, que la quería matar. Y yo pensaba en los vecinos, intentando callarla, y aplastaba su boca contra los almohadones.
Nesse ponto da história, ainda não conhecemos a identidade da narradora e a imaginamos homem pelos estereótipos que reproduz. A violência que ela narra – e essa desigualdade de forças – e o cuidado com as fofocas dos vizinhos nos leva a pensar na típica violência doméstica de homens sobre mulheres. Mas a história continua e se torna ambígua, permitindo outra leitura um pouco mais complexa:
Entonces le vendaba la boca con mi cinturón, tensaba el cinturón bajo su pelo, por la nuca, y con sus cabos le ataba las manos contra la espalda. Inmóvil, podía decirle lentamente que la quería […]. Le hablaba despacito. La desnudaba y antes de desatar el cinturón le acariciaba el cuello y los brazos para probar si estaba relajada.
Esse fragmento apresenta um tom bem mais erótico do que o anterior, o que possibilita uma leitura não na chave da violência, mas de um jogo sexual em que ambas as partes dão consenso. Assim, toda a história se transforma: tanto Franca quanto Claudia desfrutam desse tratamento, procuram gerá-lo porque o “castigo”, nesse tipo de relação, é a porta do prazer, condição sine qua non para que ele apareça.
Amenazo: -Si seguís, Claudia, sabés lo que te va a pasar… Pero sigue […] Chilla por la nariz, sacude la cabeza. Todo retumba. Después, desnuda, comienzo a desnudarla […] Comienzo a acariciarla. Beso sus lágrimas. Beso sus ojos, beso su pelo húmedo y siento el gusto de su sangre: otra vez se le han abierto las cicatrices de la sien. La abrazo. Siento cómo se va calmando lentamente. Entonces paso mis manos tras su espalda y desato el cinturón. La mano libre de ella se clava en mi cintura, bajo la espalda. Me hiere con sus uñas, pero se está calmando. Después se aquieta y nos besamos. Se mezclan gustos en nuestras bocas: las lágrimas, la sangre, los restos de rimmel y de lápiz de labios. Nos abrazamos más. Nos apretamos cada vez más y vamos abrazadas a la hamaca o al cuarto, para hamacarnos, o acariciarnos. Ríe. Reímos juntas.
Depois da violência, vem o carinho e a ternura da narradora, os beijos, as carícias, o abraço. Nesse tipo de relação isso existe e até tem nome (aftercare), pois se entende que uma pessoa requer atenção especial após a extrema vulnerabilidade a que se sujeitou. A ambiguidade é que esse cuidado também poderia responder à “culpa” ou ao duplo discurso do violento. A única diferença é, como se viu, o consenso, e apenas saber disso nos permitiria saber “a verdade”, ou seja, se é uma relação BDSM ou se é simplesmente violência doméstica. Mas, como o ponto de vista da história é o da pessoa violenta, essa dúvida sempre se manterá em vigor e ficará à livre interpretação de quem a lê.
Com essa leitura, então, todos os elementos da história se transformam: as fofocas dos vizinhos, que tanto preocupam a narradora, correspondem não só ao estigma da homossexualidade, mas ao estigma do “sadomasoquismo”. No entanto, o contexto histórico e a hipocrisia generalizada são favoráveis a eles: “Atentos, educados, fingen no habernos oído nunca. Así son ellos: viven fingiendo, ocultando lo que ocurre detrás”. Eles, dentro de casa (sempre dentro de casa), podem continuar agindo como quiserem, pois sabem que têm o silêncio do mundo externo; mas uma vez do lado de fora, no restaurante, o narrador responde cinicamente com uma risada: “río de un país, de una ciudad, de un restaurante y de sus mesas semejantes donde la gente come menús idénticos al nuestro y todo nos parece natural” .
Conclusão
O que o jogo proposto pelo narrador nos mostra é que é preciso desenvolver a capacidade de conceber a diferença. Sem essa capacidade, como leitores e como sujeitos de um meio social, caímos no erro de assumir identidades que não o são, atribuindo papéis e “classificando” o que vemos no “já conhecido”. Na história, isso se reflete na suposição de que o narrador é homem porque suas atitudes e atividades historicamente corresponderam a esse gênero e porque sabemos que sua parceira é mulher e tendemos a pensar primeiro em um relacionamento heterossexual antes que homossexual.
Embora seja ambíguo, creio que o mesmo pode acontecer com o elemento violento: assumir que se trata de violência doméstica é, talvez, ignorar que existem outros tipos de relacionamentos afetivo sexuais possíveis e assim corremos o risco de ficar no conforto do “conhecido” em vez de pensar um pouco mais longe. Como diz a escritora María Negroni na epígrafe de La Anunciación (2007), ou, em tradução livre, Anunciação, “a verdade não é só uma, mas múltipla” e a riqueza da literatura está em possibilitar várias formas de leitura possíveis.
Todas essas vias de análise são possíveis graças aos vazios formais que o texto propõe, ou seja, à elipse voluntária das marcas de gênero no discurso da narradora. Partindo do pressuposto da teoria de Voloshinov, que afirma que todo signo é ideológico, podemos deduzir que todo silêncio (não-signo) é também ideológico e que, da mesma forma, reflete uma luta de classes e de gênero.
O discurso hegemônico não é, enfim, anacrônico: ele está vivo, em luta e em constante transformação e por isso esse silêncio em algum momento se rompe e, quem sabe, se torna um grito. É evidente que hoje em dia, em plena democracia e quase quarenta anos depois, a homossexualidade pode ser falada com muito mais liberdade; mas esse texto também deixa claro que o regime cis-heteropatriarcal (e o “imperativo heterossexual”) ainda está em vigor e penetra mais fundo do que pensamos mesmo entre aqueles que dentre nós constantemente tentam questioná-lo.
[1] O título da seção corresponde a “Venus in furs”, uma música do The Velvet Underground baseada no livro A vênus das peles de Leopold Von Sacher-Masoch. Esse livro é a ficcionalização de sua própria história de amor e, embora mais tarde tenha sido patologizado, tanto ele quanto o tipo de relacionamento que ele propõe (Krafft-Ebing inclui “masoquismo” em sua lista de psicopatologias sexuais), isso não entra em discussão, é um consenso. Severin e Wanda (personagens do livro) e Leopold e Fanny Pistor (personagens reais) assinam um contrato, estabelecendo os termos da relação e assumindo a responsabilidade pelos atos de ambas as partes.
Foto de Maria Cecília Chaves Machado.