Publicada em 10 revistas digitais ao longo de dois anos e meio, tais como Ruído Manifesto, Mallarmargens, Vício Velho e Aboio, Lorraine Ramos Assis, em seus 25 anos, é uma artesã do caos. É estudante de Sociologia, na UFF. Integrou a antologia Ruínas, da editora Patuá. Concedeu duas entrevistas no canal “como eu escrevo”. Colabora com o portal Faziapoesia.
Milena Martins Moura (1986), poeta, editora e multiartista, fertiliza o caminho sonoro para seus versos ao levantar a pertinência de temas uma vez já trabalhados pelo campo literário contemporâneo, mas ainda postos a matutar no jogo de tramas da vida, do ser.
Tal qual um oráculo a ser desvendado – ou desmistificado -, a autora, em seu mais recente livro, A orquestra dos inocentes condenados (Editora Primata, 2021), imprime o corpo viajante nas vicissitudes da neurodiversidade, confluindo com a fala lírica da necessidade imediata dita de forma apressada, mas ainda silenciada. Porém, não indizível.
Nas primeiras estrofes da poesia que abre a obra, a realização dos atos:
eu já vi esse filme
começa com um grito
Por favor não
termina numa gota
no canto da boca
miséria pouca
Por favor não
Em nome dos que suplicam, a escritora, em termos de identificação com os intérpretes das sequências do ato fílmico, utiliza a reflexividade como demarcação de um território em contínuo ruído poético, como silêncios a serem descortinados por sua aparição nas enunciações ininterruptas.
Mais uma vez, a repetição é enfatizada:
tempo
tempo
tempo
tempo
não devia ser finito
Construindo o espaço ao confessar a temporalidade como um momento de contínua angústia, pois se trata de algo temporário, a ansiedade se torna representação da linguagem orquestrada como início das inquietações lúdicas, transferindo, de forma a lermos nos próximos poemas, uma harmonia ao colocar os versos em ritmos diversos, sem perder necessariamente a coesão entre suas sonoridades e articulações.
a semana começou ruim.
sim.
acontece.
eu me arriscaria a dizer
paciência!
mas nunca tive muita.
é que a novela sempre acaba bem
e a princesa beijada contra a vontade
sempre sofre de síndrome de estocolmo.
é que ninguém se arrisca
a responder
não
ao
tudo bem?
Adiante com o fluxo de consciência, o próprio texto estabelece uma relação não somente de uma manutenção da inquietude, mas também de maior densidade do questionamento direto a si e ao leitor sobre os acontecimentos e a condição desgostosa e estrutural das personagens da realidade. É ao não se arriscar – é ao não nos arriscarmos – que as sequências das cenas não se alternam no espaço de construção, flexionando as perguntas, a afirmação do discurso para uma resolução que Milena incomoda para uma linguagem dialética.
O tensionamento enunciativo da poeta é enfatizador. No trajeto do processo da leitura, a autora não se resguarda ao demonstrar as marcas de seu corpo, da sua subjetividade e do contato com o mundo. Um exemplo disso é na poesia “tudo hoje num blues tristeza”
aí que me parto em três todos os dias
um pedaço para cada ferroada
rastejando eu me mantenho forte
ou louca
eu mantenho sóbria
ou triste
eu me mantenho viva
ou não
A atenção ao eu, esse signo fragmentário, tanto colocado nos últimos versos quanto nos primeiros, nos é remanejado a todo tempo na composição da obra. A liberação da escrita, de tal modo ensurdecedora, é um mecanismo com o qual não se contrapõem ao indizível das sensações que percorrem as andanças da estrutura poemática.
Uma vez que no silêncio a reflexão se traduz no grito, as palavras finalmente se encarregam de se movimentarem. A partir da negação do que se é, a necessidade primária é a busca ao barulho. Ao alargamento dele.
Em um de seus últimos poemas, a artista insere-nos, novamente, na experimentação de seu plano:
flerta com os olhos do luto pela janela
mais um dia
ele devolve o aceno
à espera
o paraíso é um desenho na parede
que já estava ali quando eu cheguei
O modo de falar poético se traduz na memória enlutada, premeditando um eterno retorno. Se o corpo do sujeito parece regrado, mais um dia “à espera”, o corpo final do texto nos dá uma sensação de movimento da memória circunscrita no condicionamento de uma geração. Mas que geração seria essa? Um novo questionamento se entrelaça aos demais nas cadências de Milena, articulando passado, presente e futuro na definição da produção da memória para com o leitor.
Em Diante da dor dos outros, a escritora Susan Sontag (2003) assevera que não basta ao indivíduo mostrar o inferno aos demais e desejar magicamente uma resolução para o fim das labaredas, mas sim no reconhecimento e disseminação da consciência do sofrimento humano causado pelo outro que nós compartilhamos.
Por fim, A orquestra dos inocentes condenados, não obstante porta os instrumentos necessários ao enriquecimento criativo, maduro em seu acervo composicional e associação harmônica, mas também crítico.
No intuito de denunciar os abusos, as mazelas sofridas por indivíduos neurodiversos, a afirmação não é a tragédia teatralizada, mas sim afirmar a identidade produzida com fins de conscientizar um amplo veículo de leitores em assuntos desmistificadores de uma sociedade que pede para ser libertada.
Foto de Luísa Machado.