Lara Rodrigues nasceu em Uberlândia/MG e por lá se criou. É formada em Letras pela Universidade Federal de Uberlândia, e mestre em Estudos Literários pela mesma instituição. Possui um apego muito forte pela leitura e criação literária. Crescida em uma casa com pais evangélicos e conservadores, essa, que um dia se descobriria sapatão, escondia o corpo que a condenava atrás dos livros. Hoje, produz conteúdo para a área de marketing e se arrisca na criação e adaptação de roteiros cinematográficos.
A obra A última névoa e A amortalhada, foi escrita pela chilena Maria Luisa Bombal e sua publicação mais recente, no Brasil, foi realizada pela editora Cosac Naify, em 2013. No título, há os dois livros da autora bastante aclamados pela crítica e que fez de seu nome um dos principais da literatura latino-americana. A excelência da obra é comprovada, sobretudo, na orelha dessa edição, pela voz do escritor argentino Jorge Luis Borges. Quando Bombal apresenta a ideia de A amortalhada para Borges, ele tenta dissuadi-la da empreitada, pois acha o enredo impossível de ser materializado literariamente. Meses depois, é surpreendido por esse “[l]ivro de triste magia, deliberadamente suranée, de oculta organização eficaz, que nossa América não esquecerá” (s/p).
Trataremos aqui apenas d’A última névoa. A obra se inicia com um carro chegando numa grande fazenda chilena. É inverno e há resquícios de uma tempestade da noite anterior – “o telhado não está preparado para um inverno como esse” (p.11) – afirmam os empregados, enquanto conduzem os recém-chegados à casa gelada e em que, aparentemente, goteja. São estes Daniel e sua prima, acabaram de se casar. Escrito em primeira pessoa, a novela é narrada, em um fluxo de consciência, por essa que acaba de se tornar esposa – inominada durante toda a trama.
Escrito de forma sucinta, a narrativa apresenta poucos personagens. A protagonista ao contar a sua história demonstra um afastamento forte, assim, a impressão é de que conta a história de uma outra. É como se não participasse dos acontecimentos e estivesse nos ambientes apenas como mera observadora. Ademais, existe sempre uma névoa a contribuir para uma percepção delirante da realidade. Se sonho ou loucura, cada leitor que decida por si.
Adentrando o enredo, temos esse casal, recém-casados que, evidentemente, não se amam. São cercados por uma apatia paralisante, sempre ressaltada pelos cômodos gelados, que se percebe, já no início da obra, no primeiro dia como casados:
Passamos para um segundo cômodo, ainda mais gelado que o primeiro. Jantamos sem falar.
– Você está entediada? – pergunta de repente meu marido.
– Estou exausta – respondo.
Com os cotovelos apoiados à mesa, ele me olha fixo por longo tempo e volta a me perguntar:
– Por que casamos?
– Por casar – respondo.
(p. 13).
Sabemos pela narradora ser este o segundo casamento de Daniel. Há poucos meses morrera sua primeira esposa e, aparentemente, o luto não fora ainda superado. Há na casa um grande retrato da morta, sempre admirado pelo viúvo. A morte de mulheres marca uma forte presença na obra. Ao acordar na manhã seguinte em que chega à casa, a narradora presencia, logo ao acordar, um velório, a morta é uma adolescente e é o primeiro rosto que ela vela. O silêncio do funeral faz com que a protagonista, atravessada pelo aspecto fúnebre do ambiente, afirme para si mesmo a sua existência: “– Eu existo, eu existo! – digo em voz alta – e sou bela e feliz! Sim, feliz! A felicidade nada mais é do que ter um corpo jovem, esbelto e ágil.” (p. 16).
A narrativa de A última névoa apresenta uma cronologia interrompida pela retomada, por flashbacks, de uma memória da protagonista – e isto é, também, o núcleo da história, que vai elucidar a verdadeira face dos personagens e dos acontecimentos. Antes, porém, é preciso citar Regina, casada com Felipe, o irmão de Daniel.
Regina representa, para a narradora, o ideal de mulher por emanar uma sensualidade, que lhe dá uma certa independência, e por ter, além disso, um amante. O espelho compõe, do mesmo modo, um aspecto importante na narrativa explorado pela narradora que sempre se volta a ele a fim de acompanhar o envelhecimento de seu corpo e as marcas deixadas por sua história. Olhando o próprio reflexo, ela imagina que o amante de Regina teria apreciado a sua beleza quando podia usar os cabelos soltos, agora o marido a obriga a prendê-los.
A história que a narradora vasculha em sua memória acontece quando ela, Daniel, Felipe e Regina viajam para a casa da sogra, na cidade. Há um jantar, em que Daniel, Felipe e a mãe de ambos falam o tempo todo. Regina e a protagonista estão caladas. Mas os silêncios das duas mulheres são diferentes: enquanto uma pensa no amante, a outra apenas inexiste – apesar de sua tentativa desesperada de tentar se convencer do contrário.
No jantar, enquanto os presentes conversam, a narradora aprecia uma grande quantidade de vinho. Por ser ignorada por todos os presentes, ninguém percebe a quantidade de álcool que ingere. Ao acabar o jantar, ela e Daniel vão para seus aposentos. O marido dorme rapidamente. Ela também. Mas acorda à meia-noite, asfixiada. Abre a janela, lá fora, apenas um nevoeiro “esfumando os ângulos, filtrando os ruídos, imprimiu à cidade a morna intimidade de um quarto fechado” (p. 25). A protagonista então, tem uma ideia súbita e vai cumpri-la: quer andar, sair de casa. Pede permissão ao marido, que consente, sonolento, dizendo-lhe para fazer o que quiser.
É a partir dessa saída para a rua que tudo acontece. A narradora corre, aleatoriamente, pela cidade, até parar em um ponto. Fica ali, até que um homem chega. É como se houvessem combinado o encontro. Existe um aspecto de sonho, ressaltado pela névoa. O homem leva a narradora para a sua mansão e passam, ali, uma noite de amor. Ao amanhecer, a protagonista levanta-se e volta para o marido.
Depois do ocorrido, voltam à fazenda e a vida da protagonista é de constante espera por esse amante. Ele, porém, nunca chega. Sua presença, contudo, é pressentida pela narradora em algumas ocasiões. Quando vai banhar-se no açude, ela o vê, mas eles não interagem, é apenas um vislumbre. Andrés, o filho do jardineiro é o único que, além da narradora, avista o amante sempre, tal como a personagem que conta a história, sem nome. Depois desse “encontro”, a protagonista vive “sufocada pela felicidade” (p. 39). A partir daí ela não se desespera por conta da ausência do amante, aguarda, agora, a sua vinda “com docilidade” (p. 40).
Por ter Andrés como testemunha, a narradora passa a ansiar por encontrá-lo, pois acredita que seu amante vai enviar alguma mensagem pelo menino, isso, porém, não acontece. Tempos depois de avistar o amante no açude, Daniel beija sua mulher e fazem amor. A protagonista sabe que não é ela que o marido beija – e sim a esposa anterior, que morrera. E ela também tem outro, que não o esposo, em mente, mesmo assim, se sente culpada e escreve em seu caderno uma carta de desculpas ao amante, por sentir que o traíra. Outro ocorrido interessante da trama, elogiado por Jorge Luis Borges na orelha do livro, é o incêndio que ocorre posterior à noite em que Daniel e a esposa ficam juntos.
Por conta do fogo que atearam no monte de folhas secas no jardim, a narradora sente-se sufocada novamente. Ela abre a janela e, da mesma forma como aconteceu na noite de névoa na cidade quando encontra o amante, há muita fumaça “e o silêncio é tão grande lá fora como nosso quarto fechado.” (p. 47). Observa-se que, da mesma forma que no primeiro momento em que a protagonista se asfixia e sai a andar pela cidade, o fora represente uma intimidade como “a do quarto”, no entanto, percebe-se pelas sutilezas da histórias, a falta de familiaridade no dentro, no espaço que deveria ser acolhedor. A personagem volta, então, a se deitar e sonha com uma cabeça, que deitada em seu peito, a sufoca. Ela decide, assim, sair à rua na esperança de um segundo encontro com o amante.
Esse momento, da segunda saída da protagonista à rua, marca a reviravolta da novela, porque o marido, dessa vez, acorda e pergunta aonde ela vai. A mulher, ansiosa, responde rapidamente que precisa andar e que ele não precisa se preocupar, afinal, já não fizera isso outras vezes? Mas o marido não se lembra dela ter saído outra vez no meio da noite, de modo que a mulher vai narrar em detalhes, a fim de que ele se recorde, de tudo o que ocorreu na noite em específico: o vinho, o jantar, a voltar para o quarto, o sentir-se asfixiada, a caminhada sem destino pela cidade, o encontro com o amante e como o deixou.
O clímax da história está no ponto em que é narrado todo o episódio do amante ao marido, porque, nesse ponto, ele desconstrói todo o ocorrido. Para Daniel essa noite é apenas uma invenção da mulher, que se embebedara no jantar. A protagonista se desespera, afinal, aquela é a sua história. Ficção ou não, ela foi salva por isso e precisa desse amante e de toda a imagem em volta dessa noite para sobreviver ao ar gélido e sem intimidade da casa e do casamento sem amor que possui. Daniel, no entanto, vai questioná-la friamente:
Grito: Não! Suplico: Lembre-se, lembre-se!
Daniel me olha fixo por um segundo e depois me interroga com sarcasmo:
– E você encontrou alguém no seu passeio daquela noite?
– Um homem – respondo provocante.
– Ele falou com você?
– Sim.
– Você se lembra da voz dele?
Da voz dele? Como era a voz dele? Não lembro. Por que não lembro? Empalideço e sinto-me empalidecer. Não lembro da voz dele… porque não a conheço. Repasso cada minuto daquela noite extraordinária. Havia mentido para Daniel. Não é verdade que aquele homem tenha falado comigo.
– Não falou com você? Então era um fantasma…
(p. 48-49).
A protagonista, a fim de provar a sua história, procura Andrés, o único que testemunhara a presença do amante, além dela, mas não o encontra, os pais do menino informam que ele saíra para limpar o açude. Na manhã seguinte, porém, Daniel conta que a criança morrera afogada e à deriva no açude. Sem aquela última prova e com a dúvida que o marido instiga, a protagonista se questiona se é, agora, possível que ela mesma continue a viver.
Numa madrugada, Daniel recebe um telegrama comunicando que Regina está hospitalizada e que seu caso é grave. A narradora nos conta, então, que a cunhada, ao ser rejeitada pelo amante, tentara se suicidar. A protagonista está feliz, porque vão à cidade visitar a convalescente e isso é uma oportunidade de tirar a limpo a história do amante e provar a si mesma que não está louca.
Assim acontece, saindo do hospital, ela percorre as ruas, refaz o caminho por que passara tempos antes. Enfim, encontra à mansão do amante. Mas se surpreende, pois à luz do dia é apenas uma casa normal, com um mordomo empertigado e uma criança a tocar violino no quarto em que passara a noite de amor. Ao sair da casa pergunta ao empregado pelo senhor e fica sabendo que ele falecera há mais de quinze anos: era cego e escorregara da escada – o acharam morto.
A protagonista volta ao hospital, acometida de uma angústia sem precedentes e que é enfatizada com a decadência de Regina, moribunda na cama de hospital. A narradora, com raiva da doente e desesperada com a sua própria inexistência em vida, quer, também, morrer:
Sou acometida por desejos furiosos de me aproximar e sacudi-la duramente, para lhe perguntar de que se queixa ela que teve tudo! Amor, vertigem e abandono.
No precioso instante em que vou saindo, uma ambulância entra no hospital. Encosto-me na parede para deixa-la passar, enquanto algumas vezes ressoam sob a abóboda do portão… “Um rapaz atropelado por um automóvel…”
Lançar-se sob as rodas de um veículo requer um tipo de inconsciência. Fecharei os olhos e tentarei não pensar por um segundo.
Duas mãos que parecem brutais atraem-me com vigor para trás […]
(p.64-65)
Em sua tentativa de suicídio a protagonista é “salva” por seu marido. Nesse momento, olhando, depois de anos para ele, não o reconhece: “entrevejo o rosto vermelho e murcho de um estranho.” (p. 65). Marido e mulher saem pela rua em silêncio, como se nada tivesse acontecido. A personagem pensa que o suicídio de uma mulher velha seria algo repugnante. Assim, a obra termina. A narradora segue o seu homem – que não lhe permite viver, mas que também retira dela o seu poder de morrer:
Sigo-o para levar a cabo uma infinidade de pequenos afazeres; para cumprir uma infinidade de frivolidades amenas; para chorar por hábito e sorrir por dever. Sigo-o para viver corretamente, para morrer corretamente algum dia. Ao nosso redor, a névoa empresta às coisas um caráter de imobilidade definitiva. (p. 66).
O livro A última Névoa se inicia e se encerra de forma circular, tendo a imobilidade, o silêncio e o contrato social – no caso, o casamento – como a base em que se funda. A rigidez do livro e a sensação de que “nada acontece” na rotina da protagonista, seguida de uma narrativa delirante, deixa o paralelo com o feminismo, a história das mulheres e o papel que representam socialmente, fácil de decifrar.
Observa-se nas obras de Maria Luisa Bombal, tanto a que tratamos aqui, quanto em A amortalhada – em que se conta a história de uma mulher, morta, em seu funeral, tendo memórias de momentos vividos com cada pessoa que chega ao caixão para se despedir – uma paralisia e uma inexistência nas figuras femininas que lembram, da mesma forma, as personagens da cineasta Chantal Akerman. A protagonista de Jeanne Dielman (1975), por exemplo, nos asfixia tanto quanto as mulheres de Bombal, ao se apresentar como uma dona de casa que apenas vai de um cômodo a outro, em silêncio, no mínimo cantarolando, ocupada com os afazeres domésticos, até ser acometida por um acesso, aparentemente, de loucura – para voltar ao cotidiano como se nada houvesse passado.
Em A última névoa existe uma percepção estremecida da realidade. A névoa que toma toda a ambientação instiga o leitor a pensar se a protagonista está acordada ou em alguma espécie delírio. É interessante pensar, do mesmo modo, em como a loucura está intimamente ligado ao feminino na literatura, não só de Bombal, e como parece ser esse o caminho de sobrevivência das mulheres. A ficção é o escape de um real que se faz de impossibilidades: de falar, de ser ouvida, de estar, de existir, em síntese.
A mulher é sufocada pelo que a circunda e sua única maneira de transformar essa realidade é por meio da invenção. A protagonista da obra aqui tratada, por exemplo, possui um caderno em que escreve os seus “nadas” cotidianos. Talvez, seja aí, o único momento em que verdadeiramente exista. Desse modo, é possível aproximá-la de outras escritas de mulheres e sobre mulheres, como Marguerite Duras e Clarice Lispector: sempre lidando com o feminino doméstico que sucumbem, em algum momento, à loucura.
Ademais, a literatura de Maria Luisa Bombal possui um tom do fantástico latino-americano tanto em sua ambientação: a fazenda, o casarão, a floresta, quanto no desenlace da história. Existe um tom premonitório no velório com que a protagonista se depara no início da trama e sobrenatural naquele “andar de cima” em que o corpo é velado. Toda a atmosfera do encontro entre a personagem e o amante traz consigo uma espécie de irrealidade. E quando se descobre que o “senhor da casa” – que entendemos como o homem que amou a narradora por uma noite – era cego e morrera, nessa mesma noite, algo de terrorífico e irracional se impõe ao texto.
Maria Luisa Bombal, descreve, magistralmente, a história da maioria das mulheres latino-americanas do século XX cuja independência do marido era nula. Essas mulheres, feitas para procriarem e para o trabalho doméstico, careciam de um sentido maior na vida e é exatamente isso que a protagonista de A última névoa tenta recuperar ao rememorar a sua história, ambígua – pois não sabemos se sonho ou realidade. Ao escrever sobre o amante e sobre si mesma, sua carência de afetos e erótica frustrada, a personagem desse texto representa e dá voz às figuras femininas ainda hoje oprimidas e, apesar de todas as conquistas feministas, ainda violentadas socialmente, ainda sem o afeto que lhes são devidos e ainda com uma sexualidade pouco explorada.
Foto de Luísa Machado.