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Fragmentos de Safo (ou Fragmentos de Mim)

por Guilherme Talerman
Foto de Maria Cecília Chaves Machado, ilustrando texto de Guilheme Talerman

Guilherme Talerman Pereira (24) é formado em Direito pela Universidade de São Paulo e cursa Filosofia também na mesma instituição. Deseja mudar de carreira (se uma mudança antes do início de uma carreira significa realmente uma mudança de carreira em si) e ser professor. Seus escritos são abertos à crítica, mas serão defendidos ferrenhamente. Escreve no blog ContraTalerman. É colaborador-fixo de literatura na Aboio.


Duas breves notas relacionadas: i) comecei a trabalhar em março deste ano (estou bem satisfeito com os meus colegas de trabalho e o trabalho em si) e minhas aulas de Filosofia seguem à distância, como o momento exige; ii) meus estudos em grego antigo não cessaram e — com a ânsia por ler tudo e a todos somada, agora, a essa nova fonte de renda — minha biblioteca aumenta cada vez mais.

É nesse frenesi que finalmente adquiri Fragmentos completos / Safo, publicada pela Editora 34 (2017) e traduzida por Guilherme Gontijo Flores. Essa obra estava em meu radar há mais de seis meses, desde a última feira do livro online, mas que, por motivos financeiros, tive de adiar minha leitura. Bom, agora não mais.

Vou começar de trás para frente. Primeiro direi o que esse livro está sendo para mim agora e só depois entrarei em detalhes da poeta grega Safo e sua obra.

Venho presenciando um fenômeno estranho… Onde e quando geralmente eu deixava a voz do outro entrar, do poeta, vejo a minha voz sair no lugar.

Estou lendo os fragmentos dos poemas de Safo todas as noites em que não durmo com Maria, minha namorada. Eu me sento, leio bem devagar e repetidas vezes alguns poucos poemas e versos (se um resquício de palavra pode ser considerado um verso) e escolho um dentre eles para enviar à Maria. Tiro uma foto das páginas em que aquele fragmento está (o livro é bilíngue), e a envio à Maria com um áudio meu recitando-o em grego e às vezes em português. Maria, pelo que ela me passa, gosta (“muito”) disso.

Não tenho a intenção de ler Safo de forma acadêmica, mas como um poema geralmente é lido (ou como acho que um poema deve ser lido): com tranquilidade temporal e dedicação afetiva, ou seja, acompanhado por uma tentativa genuína de abrir uma portinha em mim que deixe a voz de Safo entrar e eu possa sentir o que ela sentiu há tantos anos.

Mas não sei bem. Venho presenciando um fenômeno estranho… Onde e quando geralmente eu deixava a voz do outro entrar, do poeta, vejo a minha voz sair no lugar.

No começo deste ano tentei pôr no papel um esboço do que seria o desenvolvimento de minha relação com a poesia e minha leitura da poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen. Eu disse que:

Comecei a ler seus versos e me deparei lendo com calma, em silêncio; minha voz convocada a recitar palavras somente quando preciso. Me peguei parado pensando após alguns de seus poemas, lembrando do cheiro do mar, de meus amigos, e discutindo (comigo mesmo) como estou subaproveitando minha vida nesse momento; percebendo, pela primeira vez, como o tempo passa.

Havia um duplo caminho nessa leitura de antes: primeiro, eu dava minha voz à Sophia, recitando seus poemas marítimos, tentando fazer com que ela surgisse presente por mim; depois, eu pensava em minha vida, lembrava de coisas minhas e só minhas. Com Safo, entretanto, me parece acontecer algo diferente.

Em 22/04/2021, às 22h28, enviei para Maria o Fragmento 147 de Safo — na verdade, o primeiro fragmento que enviei a ela nessa história toda de dormir longe um do outro:

     Fragmento do texto de Safo: "sei que alguém no futuro também lembrará de nós", escrito em grego e em português

“sei que alguém no futuro também lembrará de nós” ou, em grego antigo transliterado, “mnásesthaí tiná faimi kaí rêteron amêón” (silaba tônica, em ambas as palavras com dois acentos, situada na sílaba do primeiro acento).

Achei fortíssimas essas palavras. Leiam aí, em voz alta, a tradução em português. Testem isso, por favor. O que primeiro passa na sua cabeça? Quem primeiro passa na sua mente? Na minha, me veio Maria, como se — olhem isso — , como se eu, Guilherme Talerman Pereira, em 22/04/2021, estivesse criando essa frase e a dedicando para quem mais amo hoje. Uma promessa de amor eterno.

Diferente de antes, não me veio querer dar voz à Safo, mas achar nesse verso sem pontuação e, principalmente, nessa ideia o meu espaçamento entre as palavras, minhas pausas e respiradas, a minha própria ênfase. Em suma, a minha própria voz.

Eu, como estudante de grego, vejo a musicalidade no verso original, dada a forma em que foram arranjadas as palavras e sua consequente acentuação. Porém, ainda assim, leio com minha voz.

Depois, inversamente ao que ocorria antes, me veio  pensar nas circunstâncias em que Safo poderia ter formulado esse verso. Será que ela estava apaixonada por alguém? Talvez. Era morena? Provavelmente sim. Como teria sido o primeiro escutar desse verso pela pessoa amada? Imortal.

Pouco se sabe de Safo. Foi uma musicista e poeta, da qual sua música foi perdida na história e sua poesia uma sobrevivente  “[de um] período eminentemente oral até ser compilada de modo escrito, (…) a partir do século III a.C.” (p. 8). Somente um poema por inteiro chegou até nós. O resto, fragmentos nos mais diferentes estados de conservação.

(…) temos uma performance tão especial que conseguiria, por sua vez, fazer renascer, no instante da récita poética, a poeta. Safo, pela voz dos outros, fala e vive, tornando-se, mais do que apenas sua poesia, ela mesmo eterna.

Safo foi, acima de tudo, “uma mulher que viveu na cidade de Mitilene, a principal da ilha de Lesbos, nas últimas décadas do século VII a.C. e primeiras décadas do século VI a.C.” (p. 8). Do mais, alguns dados familiares, uma possível origem aristocrática, descrição física como “baixa, morena e feia”, e “[Q]ue tinha relações sexuais com jovens garotas da ilha”, suas alunas — dela, talvez, tenha nascido o termo “lésbico”, designando “alguém de Lesbos”. Nada, entretanto, é confiável ou atestável: 

O que resta, então, é uma figura de fato mítica: uma mulher, compositora e poeta, num mundo arcaico patriarcal (atentem que, em Atenas, por exemplo, as mulheres casadas mal saíam de casa, se bem que pouco sabemos sobre as práticas de Mitilene), que, se não chegou a ser caso único, já que conhecemos outras poucas poetas gregas, tais como Corina ou Erina, é certamente única no impacto que teve. (…)

Num mundo arcaico, uma mulher com poesia sobre mulheres (talvez para mulheres, talvez realmente para seduzir mulheres), alcançou o patamar divino por meio da poesia. (p. 9)

Resumindo: nada conhecemos realmente de Safo como pessoa. Conhecemos Safo por sua poesia, e sua poesia é Safo. Isso se amplifica, entretanto, por um motivo adicional: as peculiaridades da noção de autoria na poesia oral. Assim arremata o tradutor:

Começo pelo grande golpe: não precisamos acreditar piamente que os poemas aqui traduzidos sejam de Safo, da pessoa Safo, dessa mulher que viveu em Mitilene no século VII. Mais importante que isso é atentarmos para como funciona a autoria num mundo eminentemente oral, por isso faço um convite ao leitor: pense que os poemas, estes poemas sáficos, tiveram sua vida pela Grécia sob o nome de Safo e que, em geral, quem cantasse qualquer um deles teria, inevitavelmente, de incorporar Safo, tornar-se Safo por um átimo (…) (p. 9)

Interessante essa reflexão. Num contexto oral, a autoria de um verso não se dá pela assinatura ao final da página, o que daria àquele verso mais chances de sobreviver ao passar da história, mas pela sua sobrevivência factual por meio da real performance de cantores através do tempo, numa forma e musicalidade específica, sujeitando o verso ao famoso ditado “quem conta um conto, aumenta um ponto”, “numa espécie de longo telefone sem fio” (p. 11), mas, de modo algum, o desnaturando.

Mais ainda, temos uma performance tão especial que conseguiria, por sua vez, fazer renascer, no instante da récita poética, a poeta. Safo, pela voz dos outros, fala e vive, tornando-se, mais do que apenas sua poesia, ela mesmo eterna. “(…) Safo sobreviveu ou se criou por uma série de corpos hoje anônimos” (p. 11).

Citando semelhante reflexão do professor Gregory Nagy sobre performance na Ilíada e Odisseia de Homero, temos que:

(…) podemos ter perdido um autor histórico, sobre o qual nunca conhecêramos realmente nada, porém recuperamos, no processo, um autor mítico que é mais do que um simples autor: ele é Hómēros, herói cultural do helenismo, um professor muito querido de todos os helenos, que irá renascer com cada performance de sua Ilíada e de sua Odisseia. (Questões Homéricas, p. 79)

Com Safo, temos o mesmo:

Porque no mundo oral não há como estancar o canto, e Safo só pode ser Safo porque muitos corpos cantaram poemas que remetiam ao corpo de uma Safo; porque muitos corpos cantam tornando-se essa Safo autoral, mesmo que o poema cantado nunca tenha passado efetivamente pela Safo biográfica, ou que tenha vindo até de muito antes do período arcaico e o tenha atravessado, talvez via Safo. Isso que parecia aporia é, na verdade, a condição do funcionamento do corpus dos poetas arcaicos gregos como um todo, porque sua poesia só foi ser, de fato, sistematizada em escrita muitos anos, ou até séculos, depois da morte de cada um deles. (p. 10)

Nesse sentido, uma troca ocorre, troca que vivenciei e vivencio por breves momentos — a potencialidade vocal de Safo tornando-se, simultaneamente, sujeito ativo e passivo no recitar poético:

Nesse incorporar de Safo, como em qualquer poesia do mundo grego oral, o(a) cantor(a) dava sua voz à poesia sáfica para tornar-se performática e performativamente Safo; porém, ao mesmo tempo, e isso é o que mais nos interessa aqui, o inverso deveria acontecer: quem cantava também dava à voz Safo (assim, com essa crase aparentemente mal empregada), transmudava o que originalmente se cria Safo em sua própria voz, apropriava-se, colocava o próprio corpo em jogo e, com ou sem consciência disso, alterava o texto sáfico por meio do canto que, paradoxalmente, perpetuava Safo. (p. 10)

E, nessa toada, venho repetindo tal verso sem mais conferir se o faço de maneira perfeita, adicionando ou retirando, aqui ou ali, alguns pontos sem querer. Em suma, uma nova forma de ler poesia me foi apresentada.

Ler Safo vem sendo um desafio, porque sua poesia está quebrada, omissa, desmontada. E vou tentando, com menos humildade do que o normal — mas, nesse caso, talvez, como uma necessidade -, encaixar os significados e palavras do poder-ser.

Temos, portanto, um quebra-cabeça lexical, ou, mais ainda, uma viagem no tempo, da qual não sei se fui eu que voltou para VII a.C. ou se foi Safo que veio para 2021, para estas sujas (e vivas) gentes de São Paulo.

Mas, felizmente, hoje não serei obrigado a ler mais um verso, poema ou fragmento de Safo: esta noite durmo com Maria.


TEXTOS CONSULTADOS

Safo, Fragmentos completos, tradução Guilherme Gontijo Flores – 1.ed. – São Paulo: Editora 34, 2017.

Nagy, Gregory, Questões homéricas, tradução Rafael Rocca dos Santos – 1. ed. – São Paulo: Perspectiva, 2021.


Foto de Maria Cecília Chaves Machado.

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