Guilherme Talerman Pereira (25) é formado em Direito pela Universidade de São Paulo e cursa Filosofia também na mesma instituição. Deseja mudar de carreira (se uma mudança antes do início de uma carreira significa realmente uma mudança de carreira em si) e ser professor. Seus escritos são abertos à crítica, mas serão defendidos ferrenhamente. Escreve no blog ContraTalerman. É colaborador-fixo de literatura na Aboio.
No capítulo 8 do livro VII da obra Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), quando da despedida do protagonista Wilhelm e Mignon, temos o seguinte diálogo:
– Meister! – disse ela -, conserva-me a teu lado; isso será meu bem e meu mal!
Fez-lhe ver que ela já estava crescida e que deveria fazer alguma coisa para sua posterior formação.
– Já estou bastante formada – replicou ela – para amar e sofrer.
A criança, contra a justificações de seu protetor para esse afastamento, por fim, atesta:
– A razão é cruel – replicou ela -, melhor é o coração.
Para compreendermos essa recusa, faz-se necessário compreender seus elementos constitutivos, a saber, “formação” e a própria Mignon.
Pois bem. O conceito de formação (Bildung, em alemão), “o mais alto pensamento do século XVIII”, e que deu “ao conceito da humanidade, esse ideal da razão esclarecida, um conteúdo fundamentalmente novo”, já é um conhecido conceito-guia para a filosofia e ciências do espírito do século seguinte. Da amálgama entre o pensamento inicial de Johann Gottfried von Herder e as formulações teóricas posteriores de Immanuel Kant e Georg Wilhelm Friedrich Hegel, podemos tê-lo em mente como integrante do conceito de cultura, designando-o como “a maneira humana de aperfeiçoar suas aptidões e faculdades.”
Uma vez que o ser humano rompe com a natureza e o imediato, necessita da formação, que, pelos comentários de Hans-Georg Gadamer, constitui-se em Hegel como verdadeira elevação à universalidade e possibilidade do homem tornar-se um ser espiritual. Pela mencionada importância, a formação deve ser tomada como referência diretiva, que “Exige um sacrifício do que é particular em favor do universal”, pautando a particularidade “com medida e postura”, tendo em vista o universal. Daí que a formação deva necessariamente processar-se no/pelo/através do indivíduo e não de forma coletiva, pois ele se sacrifica para tanto.
Na formação prática, temos a autoconsciência laboriosa (o outro, o estranho) como produto da formação da consciência que encontra a si mesma, e, assim, reconhecemos
a determinação fundamental do espírito histórico: a de se reconciliar consigo mesmo, a de reconhecer-se a si mesmo na diversidade.
Na formação teórica esse ponto é nítido, “ois, comportar-se teoricamente já é, como tal, um alheamento”, um trabalho com o não-imediato. É, em suma, um movimento do espírito que volta a si através do estranho, diferente:
Reconhecer no estranho o que é próprio, familiarizar-se com ele, eis o movimento fundamental do espírito, cujo ser é apenas o retorno a si mesmo a partir do diferente.
Na latência filosófica da prosa de Wilhelm Meister, cuja gênese remonta o trabalho de quase duas décadas de construção – essa aqui considerada como reconsiderações do manuscrito de 1777 através da vivência de viagens e das intensas discussões epistolares com o merecido não-coautor Friedrich Schiller -, observamos a Bildung como motivo fundamental e dominador.
Na carta que escreve para seu então prestes-a-ser cunhado, quando soube pelo mesmo da morte de seu pai (Livro V, capítulo 3) e, por isso, viu-se aparentemente livre, no sentido formal, das amarras burguesas, Wilhelm anuncia claramente seu propósito, a formação:
Para dizer-te em uma palavra: formar-me plenamente, tomando-me tal como existo, isto sempre foi, desde a primeira juventude e de maneira pouco clara, o meu desejo e a minha intenção.
Contra a atividade lucrativa e dos negócios, burguesa, expectativa mais do que comum para seu berço familiar, o protagonista impõe seu “forte impulso de autoaprimoramento” interno, que pode ser entendido, mais ainda, como um impulso de salvação:
De que me serve fabricar um bom ferro, se meu próprio interior está cheio de escórias? E de que me serve também colocar em ordem uma propriedade rural, se comigo mesmo me desavim? (p.284)
O teatro, em seu caso, foi o meio escolhido para tanto. E o caminho revelou-se necessariamente pedregoso, cheio de erros, mas como importante – se não essencial – característica da formação prática, pois, ao contrário da lógica pedagógica tradicional, na qual o material, objeto de estudo, é simples meio para um fim, temos naquela a preservação e assimilação de tudo que ocorre, nela própria desabrochando. E esse é um fator distintivo do “mero cultivo de aptidões pré-existentes, do qual ele [o conceito de formação] deriva.”
É, portanto, no sentido supramencionado que podemos questionar a recusa de Mignon à formação. Entretanto, faz-se necessário brevemente apresentar a personagem, mantendo (sempre) em mente sua paralela condição de símbolo, uma vez que o próprio Goethe o assume na conversa com o chanceler von Müller, ao declarar-se satisfeito de o romance “ser inteiramente simbólico e por trás das personagens apresentadas esconder-se algo geral e superior”, e, ademais, se considerarmos sua perspectiva do “símbolo” como o universal particularizado por meio de condicionamentos vivos e limitados, bem aclarada em suas Máximas e Reflexões, obra compilada por Eckermann e Riemer e publicada em 1840, mais especificamente na de número 314 (numeração de Max Hecker):
O verdadeiro simbolismo ocorre quando o particular representa o que é mais universal, mas não como sonho e sombras, como revelação viva e instantânea do que é imperscrutável.
Encontrada por Wilhelm num grupo de saltimbancos, Mignon de cara atraiu a sua atenção, e é primeiro descrita como
uma jovem criatura, que vinha descendo os degraus aos pulos. Uma jaqueta curta de seda, com mangas recortadas à espanhola, e bombachas com borlas assentavam muito bem à criança. Seus compridos e negros cabelos frisados estavam presos ao redor da cabeça em cachos e tranças. Olhou assombrado aquela figura, sem poder atinar se devia tomá-la por um menino ou uma menina. Mas logo se decidiu por esta última e, ao passar a criança por ele, deteve-a (…). Ela lhe relanceou um olhar negro e penetrante, desvencilhou-se dele e correu para a cozinha, sem dar qualquer resposta.
Ela, depois, revela-lhe o nome, Mignon, nome masculino francês já conhecido na Alemanha do século XVIII, cujo significado é “encantador”, “gracioso” e “querido”, e a idade como desconhecida. O protagonista estima que a misteriosa criatura tinha, à época, 12 ou 13 anos. Mignon respondia às perguntas de Wilhelm
num alemão canhestro e com um ar estranhamente cerimonioso, levado a cada vez as mãos ao peito e à cabeça e inclinando-se profundamente.
E, vista mais de perto,
era bem-formada de corpo, se bem que seus membros prometessem um crescimento mais vigoroso, caso não fossem um prenúncio de um certo atraso. Suas feições não eram regulares, mas surpreendentes; a fronte, misteriosa, o nariz, de uma beleza extraordinária e a boca, embora parecesse cerrada demais para sua idade, e ela tremesse com frequência os lábios, ainda era bastante cândida e encantadora. (…) Tal aparência ficou profundamente gravada em Wilhelm, que continuava a fit mais e mais, calado e esquecido dos outros, mergulhado em suas reflexões.
Após brigar com seu dono, Wilhelm a compra e, desde então, ela lhe serve de muitas funções, a princípio de serva no sentido mais estrito e, posteriormente, a de filha. Seu passado, aparentemente turbulento, só será revelado ao final como de fato trágico.
Nota-se a importância de Mignon para a obra, uma vez que é uma das personagens mais bem descritas, mesmo sendo secundária à trama principal, e a deliberada escolha de o fazê-lo sempre através dos olhos de Wilhelm, tentando decifrá-la, como, por exemplo, em:
Em tudo que fazia, a criança tinha algo de singular. Não subia nem descia as escadas, saltava-as; trepava na balaustrada do corredor e, antes que percebessem, já estava sentada no alto de um armário e ali ficava um instante quieta. Wilhelm havia notado também que para cada pessoa tinha ela um modo especial de cumprimentar. Já há algum tempo, cumprimentava-o com os braços cruzados sobre o peito. Costumava passar dias sem dizer uma só palavra; às vezes, respondia demasiadamente a diferentes perguntas, sempre de um modo estranho, não sendo possível saber se o fazia por malícia ou ignorância do idioma, pois falava um alemão canhestro, entremeado de francês e italiano.
Porém, parece que é o contrário que ocorre, na maioria das vezes: Mignon, através de suas canções, danças e atos, intuitivamente espelha o momento e movimento interior de seu mestre Wilhelm. Podemos bem observar essa sua característica em sua primeira dança dos ovos, realizada de maneira privada ao protagonista, justamente quando a velha ferida amorosa com Mariane foi reaberta:
(…) Wilhelm estava completamente arrebatado por aquele estranho espetáculo e esquecia suas preocupações seguindo todos os movimentos da amada criatura, maravilhado de ver com que primor se manifestava naquela dança o caráter da menina.
Suas canções, como a famosa Kennst du das Land, que abre o Livro III, foram objeto de posteriores reproduções e adaptações por grandes compositores europeus. Na mencionada, a Itália é o país d a criança sofre real nostalgia, apesar de nunca tê-lo visitado.
Nesse sentido, podemos claramente observar seu papel poético-lírico, junto do harpista, da encarnação do romântico, essa forma de interior subjetividade espiritual da arte, que trabalha “no âmbito das manifestações humanas do ânimo e do sentimento” e é marcada pela liberdade e infinitude, sem necessária pretensão à universalidade, tornando-se, assim, “talvez um dos terrenos mais privilegiados de manifestação da subjetividade na época moderna”, em contraste com a objetividade da épica (primazia do evento) e o caráter subjetivo-objetivo do drama/romance (primazia da ação).
A própria obra de Goethe demonstra-se exemplar no trato da poesia lírica, como podemos observar pelas reiteradas citações de seu trabalho por Hegel no respectivo trato do tema em seus Cursos de Estética. Goethe é referência pois
na poesia de Goethe se espelha todo o processo de consolidação do conceito (Begriff) da poesia lírica: nos Lieder, desde os da juventude até os da maturidade, podemos ler uma espécie de história das possibilidades da poesia lírica, uma vez que a lírica consiste tanto em dar expressão ao sentimento mais imediato (…) quanto em se desenvolver para uma espécie de dimensão intimista intersubjetiva.
Distanciando-se da canção popular, fonte de inspiração de muitos Lieder, Goethe ressalta na trivialidade do mundo “uma subjetividade interior dominante”. Em suas baladas, como “A rosinha do campo” (“Heidenröslein”) e “A violeta” (“Das Veilchen”), situações ingênuas – o puramente natural eticamente agradável (máxima 59) – são universalizadas “a partir de traços rápidos, semelhantes a poucas (mas precisas) pinceladas.” O que é acentuado, em verdade, é “o caráter próprio do poeta” que utiliza-se do objeto quase mero instrumento, como podemos ver em seus denominados poemas de ocasião (Gelegenheitsgedichte), que transformam o mundo em poesia.
Assim, acredito, podemos nos voltar ao início e compreender a recusa de Mignon à formação. A justificava que essa dá àquela é que já estava bastante formada para amar e sofrer, bem como que a razão seria cruel e melhor o coração. Se formação é o sacrifício do particular em vistas ao universal, seu alheamento para posterior retorno de si para si, mas alterado pela assimilação de tudo, e Mignon sendo a encarnação do lirismo, essa interioridade intimista própria, podemos claramente concluir que a personagem, como símbolo, jamais conseguirá deixar-se aberta para esse movimento em espiral, essa suprassunção dialética (Aufhebung) de recolocação do ser no mundo através do mundo, porque ela, para existir enquanto Mignon, seu interior repleto de escórias e nostalgia sempre deve abnegar a razão.
A aparente universalização da poesia lírica é isso mesmo, aparente, pois apenas consegue generalizar um momento, fazendo-o por vários, potencializando o instante e a imediatez, como Alexander Gottlieb Baumgarten tratou por clareza extensiva do conhecimento sensível e o poder das percepções passadas. Nessa questão, entretanto, sempre em jogo é o indivíduo enquanto indivíduo, apenas. O diferente não é aqui uma questão e, portanto, também não o é a formação, pois sua essência – retorno do alheamento – não está presente.
Por outro lado, podemos também reconhecer na formação uma condição outra que pressupõe o cerne da lírica: é necessário um indivíduo para formar-se enquanto indivíduo, pois a formação, como direção ética, requer uma consciência que assim o delibere.
Talvez por essa razão Goethe tenha iniciado pela lírica sua vivência estética e mantido essa produção poética durante toda a vida, pois tomou consciência de si dessa forma, abriu-se para si dessa forma, assim como foi necessário que o mundo no qual cresce tenha sido “um mundo formado humanamente no que diz respeito à linguagem e ao costume. A diferença se faz quando o indivíduo cede à desmedida do particular, para onde tende a lírica. Talvez pela mesma razão Os sofrimentos do jovem Werther (1774) tenha nascido antes de Wilhelm Meister (1795). Werther foi consumido pela lírica do transbordante amor por Charlotte para que Meister pudesse, já no livro I, simplesmente sobreviver à Mariane.
Uma verdadeira formação deve passar na arte, e essa, antes da própria imitação simples da natureza, é condicionada pelo olhar interessado, que também tem sua gênese própria:
Para onde quer que eu olhasse, enxergava um quadro. E tudo o que me chamava à atenção, tudo o que me encantava eu queria logo capturar. Foi assim que, de modo especialmente desastrado, comecei a desenhar a natureza.
Assim, Mignon, por deliberadamente recusar à formação, pode ser equiparada, por exemplo, ao burguês Werner, que, em verdade, não tem seu coração aberto à dúvida de seu próprio ser, seus desejos e destino, e que, por isso, nem necessitou recusá-la? Não me parece justo pela perspectiva da arte.
[1] “(…) em suma, tenho de pensar em mim mesmo tal como estão agora as coisas, e no modo como hei de salvar a mim mesmo e conseguir o que para mim é uma necessidade indispensável.” Ibid., p. 286.
[2] “Não nos esqueçamos que Goethe viveu uma vida longa e produtiva – sete e meia dezenas de anos – e que seus versos vão desde os que, menino ainda, dedicou em 1757 aos seus avós, até os que, intercalados no Fausto, podem ser lidos como poemas independentes, ou o seu extraordinário Divã, saído de sua pena quando tinha mais de 60 anos, ou as poesias de um idoso apaixonado por uma jovem de 19 anos nas Elegias de Marienbad.” Goethe: poesias escolhidas / apresentação Samuel Pfromm Netto (org.). – Campinas, SP: Editora Átomo: Edições PNA, 2005. – (Série raízes clássicas), 2ª edição, p. 10.
Referências bibliográficas
ALBERT, ANNE E., D.M.A. Fragments: A Psychoanalytic Reading of the Character Mignon on Her Journey Through Nineteenth Century Lieder; Dissertação apresentada para a Faculdade da Carolina do Norte em Greensboro como requisito parcial para o doutorado em Artes Musicais, 2009. Encontrado em: https://libres.uncg.edu/ir/uncg/f/Albert_uncg_0154D_10127.pdf
Gadamer, Hans-Georg, Verdade e método / tradução de Flávio Paulo Meurer. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
Goethe, Johann Wolfgang von, De minha vida: poesia e verdade / Johann Wolfgang von Goethe; coordenação Mario Luiz Frungillo; tradução Mauricio Mendonça Cardozo. – 1ª Edição – São Paulo: Editora Unesp, 2017.
Goethe, Johann Wolfgang von, Escritos sobre arte; introdução, tradução e notas de Marco Aurélio Werle. – 3ª Edição – São Paulo> Imprensa Oficial do Estado de São Paulo 2021.
Goethe, Johann Wolfgang von, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister / tradução de Nicolino Simone Neto; apresentação de Marcus Vinicius Mazzari; posfácio de Georg Lukács. – São Paulo: Editora 34, 2020 (3ª Edição).
Goethe: poesias escolhidas / apresentação Samuel Pfromm Netto (org.). – Campinas, SP: Editora Átomo: Edições PNA, 2005. – (Série raízes clássicas), 2ª edição.
Werle, Marco Aurélio, A aparência sensível da ideia: estudos sobre a estética de Hegel e a época de Goethe – São Paulo: Edições Loyola, 2013.
Foto de Maria Cecília Chaves Machado.