Lara Rodrigues é mineira, de Uberlândia. Graduada em Letras pela Universidade Federal de Uberlândia, e mestre em Estudos Literários pela mesma instituição. Em suas pesquisas, a literatura, o cinema e a psicanálise se sobressaem. Embora seja ainda tímida no fazer literário, no momento, está (ar)riscando na escrita.
Numa parceria denominada O Clube das Exaustas, as mineiras Julia Branco, Luiza Brina e Sara Não Tem o Nome nos trazem a música Exausta. No trecho “Deitada, fazendo vários nada / Pensando como não sentir aquela culpa / De tudo” as artistas sintetizam o sujeito hodierno, sempre em culpa quanto à sua performance na atual sociedade do desempenho – termo cunhado pelo professor de filosofia e estudos culturais Byung-Chul Han, no livro A Sociedade do Cansaço (2017).
Segundo Byung-Chul Han, a sociedade disciplinar foucaultiana foi substituída, na contemporaneidade, pela sociedade do desempenho, marcada pela violência da positividade resultante da superprodução, do superdesempenho e da supercomunicação. Isto é, o indivíduo não é mais cerceado por proibições e não deve nada a ninguém, sendo, então, livre e chefe de si mesmo. Assim, o sujeito do dever dá lugar ao sujeito do poder.
O autor ressalta, porém, que o poder não cancela o dever e que esse novo sujeito do desempenho continua disciplinado – ou seja, não acontece uma ruptura e sim uma continuidade. A diferença é que, agora, o sujeito da positividade violenta obedece apenas a si mesmo, e sofre com a pressão do desempenho. Os sintomas de depressão e a Síndrome de Burnout marcam a alma consumida de uma contemporaneidade em que tudo é possível, desde que o indivíduo tenha responsabilidade própria e iniciativa. Disso, surgem os sujeitos autoagressivos, mestres na arte da autoacusação destrutiva, que resulta numa sociedade em guerra consigo mesma, depressiva e/ou hiperativa por conta da massificação do positivo e sempre “pensando em não sentir aquela culpa / De tudo”.
Segundo Freud, na vida adulta o humor é uma metonímia do brincar da infância e isso se revela por meio da linguagem. Com base nisso, os memes presentes na internet apontam, por meio do riso, traços dos transtornos contemporâneos. São muitas as piadas sobre a decadência da saúde mental, principalmente por jovens, cheios de expectativas quebradas já no início da vida. Como dizem, jocosa e sabiamente, “se tudo depende de mim, então estamos perdidos”. E é isso: o novo indivíduo, submisso apenas a si mesmo, compreende que a liberdade e a coação se equiparam nesse sistema que superestima o desempenho.
O excesso de atividade que marca essa sociedade é responsável, ainda, pela perda da capacidade contemplativa, porque exige que o indivíduo reaja a qualquer estímulo, o que leva, por sua vez, a uma domesticação. Isso, devido a outra habilidade glorificada pela positividade violenta: a aptidão de se fazer várias coisas ao mesmo tempo. Para Byung-Chun Han, a multitarefa é uma volta à primitividade e vai ao encontro dos animais selvagens que, enquanto se alimentam, tomam cuidado para não serem eles próprios devorados, ao mesmo tempo em que vigiam seu parceiro e sua prole, inviabilizando, portanto, que contemplem o alimento e o ato de se alimentarem.
O excesso de atividades impossibilita, portanto, qualquer experiência, porque, ao contrário do que afirmam, experienciar volta-se mais à interrupção que à ação. Conforme o estudioso espanhol Jorge Larrosa, a experiência:
requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2014, p. 25).
Jorge Larrosa afirma que o sujeito deve ser um território de passagem que afeta e é afetado pelo mundo, se colocando num espaço em que têm lugar os acontecimentos. É preciso que o indivíduo se mostre em sua vulnerabilidade e não em sua fortaleza, que se exponha ao risco de ser um Cowboy Fora da Lei e não o Pedro, das canções de Raul Seixas. Afinal, aos pedros, “onde você[s] v[ão] eu também vou”. O destino é inexorável e um apenas, não importa o caminho, se o do careta ou o do vagabundo. Por isso, também, é necessário abrir-se à hesitação, de forma que a atividade não se resuma ao trabalho remunerado, porque, conforme Friederich Nietzche, “os ativos rolam como rola a pedra, segundo a estupidez da mecânica” – é preciso sair da automatização cotidiana para se ter experiências.
A incapacidade de contemplação, ou do ver, como Byung-Chul Han reflete em A sociedade do cansaço, impossibilita, ainda, o sujeito de sentir ira, sentimento que se volta ao olhar para o outro e ao poder interromper um estado para dar vazão a uma outra condição mental/emocional. A ira representa uma negatividade ao indivíduo da positividade violenta. Da mesma forma, o amor se torna uma impossibilidade, porque requer um abandono de si para que se veja a alteridade do outro.
Eros é aquilo que resta sem resto, que caminha em direção a uma perda, isto é, em direção a si mesmo – à experiência, ao inútil, recusado pelo capital.
Em A Agonia de Eros (2017), Han afirma que a pornografia, antítese de Eros, é também um produto do excesso de atividades, em que as verdadeiras experiências não têm vez. Os sentidos e a imaginação se perdem e a consequência é uma crise tanto artística quanto política, já que o narcisismo coletivo operante substitui totalmente o bem-comum.
Segundo Byung-Chul Han o amor acontece em um não-lugar – outra negatividade inaceitável na sociedade do cansaço, pois, a positividade violenta faz com que se compare tudo e todos e se nivele num lugar, narcísico, do igual. Dessa maneira, não há espaço para uma atopia, principalmente a do outro. O consumismo requer lugares heterotópicos, a fim de eliminar uma alteridade atópica e consolidar as diferenças consumíveis.
Na tomada de lugar da atopia para a heterotopia, vemos, cada vez mais, marcas e empresas se apropriarem de causas sociais, como as LGBTQIA+, antirracistas, feministas e outras. Em nome de um amor sem alteridade, todos os sujeitos devem ser amados e respeitados por serem “iguais”. As informações sobre as minorias se propagam, mas não dão vazão às experiências que de fato poderiam mudar as realidades. Cancela-se, por um tempo, na internet, os LGBTQIA+fóbicos, os racistas e os machistas. Contudo, não existe uma interrupção para olhar os sujeitos minoritários em suas alteridades.
Os “grupos” nas redes sociais são um dos símbolos da exclusão da diferença. Aconselha-se todos os sujeitos não-universais a procurarem “os seus iguais”, como se toda a comunidade LBTQIA+, por exemplo, fosse composta por sujeitos iguais; ou como se toda pessoa negra devesse abraçar o outro negro, não importa o quê; ou como se fosse acontecer uma identificação instantânea entre todas as pessoas com deficiência. Forma-se um certo autoritarismo em que toda minoria deve amar e se identificar com os de sua casta. Uma mulher não pode não gostar da outra e assim por diante. Não existe individualidade e nem atopias. Todos os sujeitos possuem sua etiqueta e devem se unir aos que estão, segundo as regras do capital, em seu time.
É nesse lugar de impossibilidade das diferenças que Eros agoniza. É na “erosão do Outro”, conforme Byung-Chul Han, que o amor desaparece. É no narcisismo, entendido pelo estudioso como uma falta de limite do sujeito, que a incapacidade do indivíduo de encontrar sentido onde não se reconhece, surge. A depressão, então, é uma condição narcísica, em que o indivíduo se cansa de si mesmo, enredado em seu ego, vítima de uma depressão do sucesso. Apenas o amor, por possibilitar uma experiência do outro, respeitando sua alteridade, é que pode tirar o indivíduo desse lugar – eros, para o autor, representa o “dom do outro”.
O amor vence a depressão ao se apresentar como um desastre – a queda do astro, conforme Maurice Blanchot afirma na obra Escritura do Desastre. Eros é aquilo que resta sem resto, que caminha em direção a uma perda, isto é, em direção a si mesmo – à experiência, ao inútil, recusado pelo capital. O amor abre espaço às negatividades imprescindíveis ao sujeito desejante: à hesitação, à experiência. E conduz às transformações do pensamento atópico e a todo caminho intransitado pelo utilitarismo.
O que resta do sujeito sem amor? Talvez, o único sentimento que Pandora guardou em sua caixa – a esperança: de que reaprendamos o outro como lugar atópico e não mais como um objeto intrusivo; que a intolerância, única negatividade permitida pelo neoliberalismo, dê lugar a aberturas de experiências com o outro. Que possamos parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar – e conseguir, tudo isso, devagar. Que possamos parar, enfim. É preciso acreditar que Eros fará do mundo, novamente, uma casa em que ainda se compense viver.
Comment (1)
Uma resenha perfeita pra ilustrar a correria que a gente se mete, sem saber porque e nem o que estamos evitando. Achei muito bem escrita a ponte que você faz entre a sociedade do cansaço – que promove a estamina infinita – com a frivolidade dos temas lgbt comercializados como uma banca no Ver o Peso. A gente vira uma massa disforme forçada a um denominador comum, porque simplesmente é mais fácil, na Sociedade do Cansaço e da Transparência, ser parte de algo e se deixar dominar pelas multitarefas desse algo, ser classificado por esse algo e ser só esse algo, sem descanso. Parabéns pelo texto e obrigada r compartilhar! <3