Adriane Figueira é paraense, nascida e criada às margens do Tapajós, mas vive há mais de uma década na capital carioca. Entusiasta da escrita e pesquisadora. Publicou Revoada do dragão (Editora Patuá) em 2021, e Voragem (Editora Folheando) em 2022.
“(…) tudo estava escuro…
Como se fosse o interior de um espelho cego… dentro de um sonho cego…”
(Bae Su-ah)
Esse texto foi erguido a partir de um lugar externo, de um ponto de referência outro, a epígrafe que conversa com a imaterialidade líquida do que é desconhecido, a humanidade que se remodela de dentro para fora em ciclo ininterrupto. Aliás, desconhecido é uma palavra-chave aqui, pois nos empurra para o abismo do qual nada sabemos ou podemos prever, não há uma preparação possível, mergulhamos na profundidade escura sem qualquer perspectiva de êxito.
É curioso perceber o quanto as produções artísticas da Coreia do Sul são assentadas em uma espécie de aura violenta. Basta pensarmos no filme Parasita (2019), do diretor Bong Joon-ho, e outros títulos ainda desconhecidos de grande parte do público. Até alguns doramas que, no primeiro momento, parecem românticos e bobos, acabam por apresentar tramas secundárias que envolvem desfechos sangrentos e perturbadores. Seja na tela, ou na escrita, os coreanos consideram a violência, física ou psicológica, um caminho fértil para criar linguagens e outras possibilidades de sentido.
You-jeong Jeong (1966-) é uma escritora sul-coreana conhecida pelos seus romances no gênero thriller. Dois de seus títulos foram traduzidos e publicados no Brasil pela Todavia: O bom filho (2019) e Sete anos de escuridão (2022). O bom filho, com tradução de Jae Hyung Woo, matéria desta reflexão, é narrado em primeira pessoa pelo protagonista Yu-jin, com ele percorremos histórias da infância, da adolescência e o cotidiano do homem de 25 anos, sua mãe e seu irmão adotivo vivendo num confortável apartamento em Seul. Há também rastros de sangue e mistério.
Fiquei pensando por muito tempo se deveria escrever essas ponderações e uma questão que não parava de ecoar na minha mente era: Por que contar a história de um jovem atleta de natação em ascensão e sua família comum de classe média? Quando li a sinopse, confesso que não parecia promissora a narrativa, ainda mais em se tratando de thriller/suspense — gênero literário que jamais me interessou —, mas as coreanas são incríveis até mesmo no improvável.
Já peço desculpas antecipadas, pois, alguns spoilers são inevitáveis, mas tentei manter o suspense para que você, ao fazer sua leitura, possa desfrutar dessa narrativa tão bem estruturada e intrigante que flerta com o obscuro e testa o tempo todo a tolerância do leitor: A brutalidade é justificável? Poderá alguém da realidade ser, assim, tão sortudo? O acaso existe?
“Não se engane. O vencedor é quem continua vivo.”
O comportamento do ser “racional” pode ser medido ou aperfeiçoado por meio do uso de medicamentos contínuos? Frequentar especialistas auxilia na domesticação das feras retidas na escuridão da mente humana? Lanço muitas perguntas a partir da minha leitura inquieta, da sensação paralisante e do arrepio assombroso que a obra O bom filho, de You-jeong Jeong, causou por aqui.
O narrador/protagonista dessa história é um homem que na infância perdeu o pai e o irmão mais velho em um “acidente” ocorrido durante as férias da família na primavera coreana. Depois disto, ele e a mãe Ji-won Kim — os sobreviventes — não mais falaram sobre aquele dia, o assunto se tornou proibido e os pormenores da situação bastante nebulosos.
Yu-jin adolescente, por volta dos 15 anos, tinha um amigo chamado Hae-jin. Este, seu único amigo, havia se tornado órfão e fora adotado por sua mãe para “ocupar o lugar” do filho falecido Yu-min. Do pai, sobrara uma velha navalha de barbear com as iniciais M.S.H. gravadas que Yu-jin havia tirado de uma caixa no escritório e guardado em seu quarto, e que após longos anos seria a arma utilizada para cometer crimes bárbaros.
Após a morte do filho mais velho, a mãe passou a prestar mais atenção na criança mais nova, notando que ela, desde o ventre, era bastante quieta e silenciosa — quase imperceptível. Yu-jin frequentava consultórios médicos e vivia sob efeitos de remédios que inibiam seus sintomas, porém desencadeavam outros efeitos colaterais. A superproteção e preocupação da mãe e da tia Hye-won — psiquiatra e diretora de uma Clínica Pediátrica — é um ponto de bastante incômodo e um gatilho para determinados comportamentos do protagonista. Ou, simplesmente, uma justificativa frágil que ele utiliza para se manter no controle de sua vida, no papel de “vítima” do acaso.
Há pistas plantadas pela narrativa que encaminham a leitura para um sentimento de quase empatia, afinal, o protagonista no início dessa história é apenas um garoto contraditório em busca de estímulos, manipulado por duas adultas que em teoria deveriam protegê-lo, garantindo o seu bem-estar: “Eu me sentia uma criatura poderosa e superior, em pleno domínio de minha própria vida. No entanto, ainda restavam algumas insatisfações. Jamais me sentia superior a minha mãe e minha tia. Essas mulheres me tratavam como uma almofada de poltrona: sentavam-se em cima da minha vida e a esmagavam.”
Desde o início, o leitor já é alertado para o estado de confusão mental e a inescrupulosidade que permeiam o comportamento do narrador que é também o protagonista dessa história dividida em cinco partes: “Um chamado na escuridão”, “Quem sou eu?”, “Predador”, “A origem das espécies” e “Epílogo”. A narrativa revela nas primeiras páginas que estamos diante de um psicopata que manipula suas próprias memórias para conseguir prosseguir e conviver entre pessoas sem levantar suspeitas: “Dizem que um ser humano normal mente cerca de dezoito vezes por hora. Minha média, contudo, deve ser mais alta. Tenho certo talento para a desonestidade. Sou capaz de inventar histórias automaticamente e quando necessário.”
Yu-jin é esse personagem desonesto e nebuloso, sua memória é deficitária. Sempre que provocado veste uma espécie de máscara, desligando a ferocidade aparente e ativando o botão do cinismo e da autopiedade. Dissimula, mente, cria cenários para encobrir seus atos: “… me convenci de que a culpa é uma questão de verossimilhança, e a moralidade tratava-se apenas de pintar um quadro que se apresente de forma convincente aos olhos dos outros.” Um predador que utilizava o silêncio e a mentira para escapar da sua própria realidade.
A vida de Yu-jin havia sido, até o momento em que encontrou o diário de sua mãe após matá-la e limpar o seu sangue espalhado pelos cômodos da casa, uma sucessão de mal-entendidos, um borrão em que o esquecimento fora a chave mobilizada para não precisar abrir a “caixa de pandora” que era o seu cérebro: “Uma linha foi atravessada, e agora não havia mais retorno. A única opção era seguir em frente… No momento em que lembrasse, teria de abandonar o mundo onde nasci e cresci. Minha vida anterior estaria terminada. E eu não estava preparado para partir. O esquecimento era a única maneira de lidar com o irremediável.”
Muitas perguntas, nenhuma resposta e algumas citações da obra. O bom filho é um retrato embaciado do comportamento de um psicopata, um jovem nadador que para não ser reprovado nos exames médicos, suspende por conta própria o uso dos remédios que o mantinham ativo e sem convulsões, o que faz com ele perca a possibilidade de prosseguir na sua carreira de atleta, por fim uma fera indomada que quando adulto “recolhe” cada um dos obstáculos que se interpõem em seu caminho, sem lágrimas ou remorso.
A mente humana é como o oceano que mesmo atraindo tanta atenção e estudos segue sendo absolutamente desconhecido e pantanoso. Yu-jin escapa das consequências óbvias, da lei dos homens, tudo opera a seu favor. Movido pela força do seu poder assassino, pelo desejo de controle e domínio, ele goza com o cheiro do sangue e do medo de suas vítimas aleatórias. Os rostos familiares elimina por impulso, raiva, pois estas pessoas do seu convívio já não são mais úteis para os seus propósitos. Ele retroalimenta sua indiferença, se refaz sozinho — quase como uma recompensa por seus atos brutais, mas não sente culpa e está sempre disposto a perseguir seus desejos — sortudo, um caçador: “No meio do nevoeiro, lá na frente, alguém estava caminhando. Ouvi os passos dela. O cheiro de sangue flutuou em minha direção no vento salgado.”.
Arte: A Smart Blow, de Mary Blood Mellen.
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Mais sobre a obra
“Eu nunca escrevi diários! Isto aqui é um extravasamento, um inventário estilhaçado, sem datas fixas no calendário, sem horários demarcados — guiado por Kairós”. Assim escreve no preâmbulo a autora de cacos retidos na margem, nomeando Kairós como preceptor de sua jornada entre a prosa e a poesia e, nesse simples ato, recusando a medida, a exatidão e a linearidade.
O tempo da palavra de Adriane Figueira é o do extravasamento. Os textos desse livro são desenhos sutis, quase oníricos, de um labirinto de memórias e vertigens que, solitário e vigilante, assoma como possibilidade de um contágio verbal que desoculta as tempestades da nossa experiência.