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“… na beira do precipício invisível que se renova minuto a minuto”: O livro branco, de Han Kang 

por Adriane Figueira
Fotografia: Alexandra - km 16,200, altura 10,50 metros – Arthur Wischral (Acervo Instituto Moreira Salles).

Adriane Figueira é paraense, nascida e criada às margens do Tapajós. Perdida e achada na capital paulista. Entusiasta da escrita e pesquisadora. Publicou Revoada do dragão (Editora Patuá) em 2021, e Voragem (Editora Folheando) em 2022.


Noite, noite branca – assim o desastre, essa noite à qual 
a obscuridade falta, sem que a luz a clareie. 
Maurice Blanchot 

Tem sido uma experiência fascinante ler Han Kang (1970-) em línguas que não são a minha, nem a dela. Eu desabo diante das contradições semânticas, tantas maneiras de manusear os significados me confundem, mas o sentido está ali, ao alcance do olhar. 

Eu não sei nada sobre a estrutura gramatical da língua coreana, porém faço muitas suposições e vou tentando caminhar por entre as palavras e suas combinações semânticas. Han me convida para a dança e eu aceito o desafio, pois há nessa transposição idiomática um fio que não se rompe e reúne a um só tempo a poesia e o cotidiano. 

Não importa se planta, espíritos cintilantes, objetos brancos, ou vocábulos gregos desenhados com giz num quadro. Não importa se estamos na Coreia do Sul, na Áustria ou na Alemanha, é com as estranhezas de um tempo desordenado nesses espaços quase sempre gelados que o mistério se revela num átimo. 

Pensando com a epígrafe escolhida para abrir essas reflexões, as palavras de Maurice Blanchot em sua escritura do desastre dialogam com as perspectivas trazidas por Han Kang. A noite branca do filósofo e a noite branca da escritora, nesse contexto são complementares. A imagem projetada de uma noite que não escurece e nem irradia luz: o desastre, o futuro, o precipício invisível. 

Vinte e quatro horas de um clarão que não é capaz de iluminar o entorno, como velhas e novas dores que não desaparecem dentro dessa brancura desconhecida, fria: “A velha dor ainda não se esvaziara por completo, e a nova dor ainda não se expandira por inteiro.” (p. 105) 

Talvez eu também tenha aberto os meus olhos no escuro e olhado 

Li, em 2022, a obra Branco(흰), de Han Kang, publicado na Coreia do Sul pela primeira vez em 2016, cujo título em inglês ficou The White Book. Foi mais um emocionante encontro com a escrita da coreana. Em outubro de 2023 foi lançado no Brasil, pela Todavia, O livro branco, mantendo o título da edição inglesa como já havia acontecido com A vegetariana (2018) e Atos Humanos (2021) publicados aqui pela mesma editora. 

Branco é uma obra sobre o olhar, as memórias e o luto. Talvez uma tentativa desesperada de reconstruir o impossível que a ausência imprime na vida de quem por ela é atravessada, ou um convite para voltar o olhar com mais atenção a tudo o que há em volta e cintila de qualquer ângulo e que geralmente não nos damos conta 

A cor branca circunda e navega pelas páginas numa lista repleta de “itens” que se desdobram em lembranças e nítidas imagens, a partir de uma observação poética minuciosa. O branco da espuma das ondas, das gaivotas, do leite materno, da lua, do bolinho de arroz, dos ossos, dos cubos de açúcar, da neblina, da neve, das vestes de recém nascida transformadas em sudário, depois cinzas consumidas pelo fogo, o sal… o branco que cega e confunde. 

Nesta obra as cidades funcionam como organismos pulsantes e não apenas cenário, pano de fundo. Elas compõem a narrativa, são personagens que desenham sentidos e acendem faíscas capazes de nos fazer enxergar para além do aparente. Cada cidade como um enorme corpo drenando e liberando fluxos, mobilizando o afeto e o sentido da leitura. Han Kang sobrevoa e reconstrói os escombros gráficos, sua literatura é sua assinatura, sua maneira estranha e bonita de estar no mundo. Neste livro é o seu modo de “emprestar” à sua irmã a possibilidade de existir. 

O livro branco é considerado um livro de não-ficção, uma obra sensorial/visual, sob uma perspectiva formal é experimental, uma autobiografia fragmentada dividida em três partes: eu; ela; toda a brancura. A narradora vai costurando o texto recuperando a voz nunca pronunciada, inaudível da sua irmã mais velha.

Amalgamadas estão essas duas figuras, eu e ela, que em determinado momento já não é possível distinguir quem narra e quem é narrada nesse grande mosaico branco que se ergue na escrita. A autora — a que escreve e rememora — e essa voz “inexistente” que ganha vida, corpo e história a partir dessa união. 

Han Kang caminha pelas ruas da cidade outrora devastada e no presente reconstruída, ela é uma estrangeira que observa pelas janelas a neve cair em finos flocos ou em forma de nevasca, ela que sofre e repete como um mantra as palavras proferidas pela sua mãe no momento da perda: “Não morra. Por favor, não morra.” (p.33). Agora é uma adulta entre sua casa em Seul e seu apartamento alugado em Varsóvia — onde viveu por um tempo e escreveu as duas primeiras partes desse livro.

A cidade branca, destruída quase completamente durante os anos da Segunda Guerra e totalmente restaurada, funciona como uma metáfora. A autora aproxima a reconstrução deste espaço com a possibilidade de trazer em escrita, a partir do seu próprio reflexo, sua irmã de volta à vida: “Não morra. Viva.” (p. 149) 

Han Kang oferece a sua literatura, a sua voz e seu corpo a essa criatura estranha para ela e para a leitora, como um modo de se desculpar por ter sobrevivido, por habitar esse mundo — lugar que a primeira filha de sua mãe nunca pode desfrutar: “Ela, que carrega o mesmo destino que a cidade. Que no passado morreu ou foi destruída. Que se reconstruiu sozinha com perseverança sobre os escombros enegrecidos pelo fogo. Que, portanto, é uma nova pessoa.” (p. 26) 

Há, nesta história, uma mãe que não pôde amamentar a sua primeira filha nascida prematura, viva apenas por duas horas após o parto. Esta jovem mãe que deu à luz sozinha em casa, limpou e vestiu sua bebê à espera de uma espécie de resgate, sussurrando em súplica ao universo pela vida de sua criança. Há uma irmã que não conheceu sua unnie (언니) e que se questiona, pois às vezes sente que é uma impostora ocupando o lugar da outra: “se eu estou viva agora, você não dever existir.” (p. 129) 

Há esta brancura misteriosa, não a que se opõe à escuridão, mas aquela que escorre pela ampulheta e se derrama no espaço e desintegra com a passagem do tempo. Senti frio, medo, dor, solidão, ouvi o lamento das ondas em eterno processo de morte e renascimento, as súplicas silenciosas do cachorro branco acorrentado, observei de perto as asas quase translúcidas da borboleta em voo, as paredes brancas refeitas sobre os escombros: “Ela cresceu dentro dessa história.” (p. 117) 

Caminhei com Han Kang, presa pelo fio invisível que nos aproxima enquanto humanas soltas no mundo, e com o espectro de sua irmã mais velha que viveu e vive em cada uma das linhas, nas lacunas entre cada palavra e além página: “Dentro desse branco, de todas as coisas brancas, respirarei o último suspiro que você deu.” (p. 151)


Fotografia: Alexandra – km 16,200, altura 10,50 metros – Arthur Wischral (Acervo Instituto Moreira Salles).


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Mais sobre a obra

“Eu nunca escrevi diários! Isto aqui é um extravasamento, um inventário estilhaçado, sem datas fixas no calendário, sem horários demarcados — guiado por Kairós”. Assim escreve no preâmbulo a autora de cacos retidos na margem, nomeando Kairós como preceptor de sua jornada entre a prosa e a poesia e, nesse simples ato, recusando a medida, a exatidão e a linearidade.

O tempo da palavra de Adriane Figueira é o do extravasamento. Os textos desse livro são desenhos sutis, quase oníricos, de um labirinto de memórias e vertigens que, solitário e vigilante, assoma como possibilidade de um contágio verbal que desoculta as tempestades da nossa experiência.

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