Adriane Figueira é paraense, nascida e criada às margens do Tapajós, mas vive há mais de uma década na capital carioca. Entusiasta da escrita e pesquisadora. Revoada do dragão (Patuá, 2021) é seu primeiro livro.
“A memória é, de forma dolorosa, a única relação que podemos ter com os mortos.”
(Susan Sontag)
Após assistir a uma fala da professora e tradutora de Atos Humanos (Todavia, 2021), Ji Yu Kim, percebi o quão ainda somos irredutíveis ao que é distante, estranho, ou — como ela se refere à literatura produzida na Ásia — marginal. Percebi também que há em mim uma necessidade em adentrar certos espaços literários pela própria falta de um entendimento mais amplo em línguas estrangeiras.
Pergunto se Atos Humanos, como o título foi traduzido no Brasil, a partir das versões em língua inglesa , seria amplamente reverenciado se a editora optasse pelo literal 소년이 온다 (Sonyeoni onda) — algo como “O menino vem” ou “O menino está chegando”. Seria assim tão comercial ou atraente? Talvez não. Talvez eu deixasse passar. Meu olhar está acostumado demais ao que é “comercial” ou que soa poético. É um movimento involuntário, quase mecânico, de buscar nas prateleiras de livrarias e sebos os títulos e autores “legíveis”, de acordo com o que está convencionado nas próprias letras do nosso alfabeto romanizado. Não estamos familiarizados com outros códigos e ideogramas, nem com outros modos de transmitir mensagens.
Faço todo esse bordejamento para chegar até a obra e meu comentário emocionado, já que não conheço quase nada das literaturas produzidas na Coreia do Sul, mas me encontro absolutamente rendida diante da grandeza da escrita de Han Kang (1970) e seu trabalho ainda pouco difundido no Brasil.
Eu nunca havia lido obras da literatura sul-coreana até me deparar com A vegetariana (Todavia, 2018), de Han Kang, e ficar fascinada com um estilo de escritura tão distante do que estou acostumada. Com Atos humanos me vi ainda mais tomada por essa vertigem lírica e violenta que é a escrita de Kang — poética e dilacerante. Para mim, ainda não é possível dizer o que essa descoberta significou, mas os gritos se expandem em ecos por toda parte e, inevitavelmente, as lágrimas correm pela face. Uma pancada atrás da outra, uma narrativa em muitas vozes e tonalidades: vida-morte, matéria-espírito, medo-coragem.
Atos Humanos é uma obra que traz o Massacre de Gwangju como mote para os acontecimentos e os cruzamentos entre as personagens e suas histórias. Durante os anos de 1961 a 1979, a Coreia do Sul vivenciou um período de ditadura que findou com o assassinato do então presidente Park Chung Hee. Uma falsa sensação de liberdade se instalou e o povo sul-coreano se preparou para uma abertura democrática que não aconteceu. Houve um clamor popular, os estudantes tomaram as ruas de Gwangju, cidade próxima à capital Seul, em 18 de maio de 1980. O “conflito” se estendeu por 9 dias ininterruptos de violência, marcado pelo uso abusivo das forças bélicas e da tortura como método coercivo sob o regime autoritário e sanguinário de Duwhan Jeon, que persistiu no poder até 1988.
Cada capítulo de Atos Humanos é narrado sob uma perspectiva nova. Em cada parte, tomamos conhecimento sobre as múltiplas faces e fases da dor enlouquecedora e do sofrimento humano: o sublime e o bárbaro coexistindo. O livro não se coloca como ficção histórica, tampouco como documento fiel daquele contexto, porém parte das entrelinhas e do ordinário para trazer à superfície as memórias dos desaparecidos, dos invisíveis para a História oficial, daqueles que não receberam honrarias, e que mesmo assim enfrentaram a morte banal, a desumanização e o desespero sem sentido imposto pelos agentes do Estado.
Han Kang resgata suas lembranças e vai traçando poeticamente os destinos das suas personagens. Avançamos pelas páginas, ora tomados pela sede de vingança e a revolta pela injustiça brutal, ora abatidos pela debilidade física, o trauma e a tristeza que parecem não ter fim. Mas a não-desistência de algumas personagens nos faz querer continuar empurrando a pedra.
Atos Humanos é organizado em seis capítulos e um epílogo que soa bastante autobiográfico. Cada uma dessas partes retoma a figura do menino Dongho que, na busca pelo seu vizinho e amigo Jungdae, se envolve no trabalho de limpar, catalogar e preparar os corpos que se amontoavam nas salas do edifício Docheong, sob supervisão de Jinsoo. É a partir de Dongho que tudo se descortina e que as ações da trama se imiscuem: “O passarinho que parte quando a pessoa morre, em que parte do corpo ele fica quando a pessoa está viva?” é uma pergunta que o menino faz dentro de sua cabeça e que tem me perseguido o juízo desde então.
Escalando pela narrativa de Han Kang vamos tentando deixar que o pássaro tome fôlego e possa voar livremente, seja pelas vias da realidade, ou pelas vias do delírio. Vale mencionar os nomes dos capítulos Em ordem : Passarinho; Fôlego preto; Sete tapas; Ferro e sangue; Pupila da noite; Para o lado das flores e Lâmpadas cobertas de neve (epílogo). Podemos tentar perceber aqui como essa narradora onipresente se mistura às vozes dos vivos e dos mortos.
Em que altura do sono complacente a gente acorda e revida? Quanta dor, sofrimento e humilhação o corpo humano pode suportar? No confronto armado, insensato e desigual, a gente deve ficar ou fugir? Tantas contradições, fragmentos de sonhos, pensamentos, conversas e a impossibilidade de (r)existir, a humanidade é mesmo essa máquina autodestrutiva com tecnologia de aniquilamento cada vez mais sofisticada? A linearidade é engolida pela pupila da noite, os corpos dilacerados se multiplicam pela cidade, se decompõem e exalam seu odor, depois ardem em fogueiras enormes no bosque, profanados, empilhados, disformes: “De onde será que o sangue escorre quando não se tem olhos, onde será que se sente a dor?”.
Num gesto paralisado de uma voz inaudível que profere súplicas, o espírito não sente a angústia da carne que se dissolve, mas se ergue reluzente e esvaziado — um pássaro com as asas arrancadas. Os sobreviventes se debatem diante do horror e da passagem do tempo, sem justiça e nem consolo: “O que é ser humano? O que temos que fazer para o ser humano não deixar de ser humano?” Eunsuk Kim se questiona, pois já não pode confiar nas pessoas a sua volta e nas possibilidades que talvez existam fora dos limites da maldade humana. As sombras dos mortos cintilantes e solitárias se apagam, mas o afeto permanece dentro do adeus para sempre adiado.
Transcrevo aqui um trecho mais longo para refletir junto com você que me lê agora: “Espero que o tempo me varra como água barrenta. Espero que a memória da morte suja, que carrego noite e dia, me largue completamente ao encontrar a morte verdadeira. Estou lutando. Luto todos os dias, sozinho. Luto contra a vergonha por ter sobrevivido, por ainda estar vivo. Luto contra o fato de que sou um ser humano. Luto contra o pensamento de que a morte é a única maneira de escapar desse fato. O senhor, ser humano igual a mim, qual resposta poderia me dar?” e eu como leitora pergunto: há alguma resposta capaz de justificar o impulso violento e desconhecido, o poder que alguém exerce sobre o corpo do outro, a maldade que circula pelas veias e cega o olhar? Eu não sei e me confundo.
A obra de Han Kang é imensa e urgente, pois ela nos mostra, além de tudo o que um belo texto ficcional pode proporcionar do ponto de vista estético, o quanto é necessário sair da passividade diante da dor do outro, deixar sempre a luz da nossa humanidade acesa — aquela pequena chama transparente que cintila. A Literatura como esse móvel lugar de passagem, de resgate, linguagem e memória, ocupando mais espaços de maneira democrática, para que possamos saber ser, compartilhar e (re)existir no mundo: “Por que você vai no escuro? Vamos lá, praquele lado, pro lado das flores”.
Foto de Anna Carolina Rizzon.
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Mais sobre a obra
“Eu nunca escrevi diários! Isto aqui é um extravasamento, um inventário estilhaçado, sem datas fixas no calendário, sem horários demarcados — guiado por Kairós”. Assim escreve no preâmbulo a autora de cacos retidos na margem, nomeando Kairós como preceptor de sua jornada entre a prosa e a poesia e, nesse simples ato, recusando a medida, a exatidão e a linearidade.
O tempo da palavra de Adriane Figueira é o do extravasamento. Os textos desse livro são desenhos sutis, quase oníricos, de um labirinto de memórias e vertigens que, solitário e vigilante, assoma como possibilidade de um contágio verbal que desoculta as tempestades da nossa experiência.